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Full text of "Coloquios dos simples e drogas da India"

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COLÓQUIOS 


DOS 


SIMPLES  E  DROGAS 

DA  índia 

POR 

GARCIA    DA    ORTA 


EDIÇÃO  PUBLICADA 

POR  DELIBERAÇÃO  DA 

> 

ACADEMIA  REAL  DAS  SCIENCIAS  DE  LISBOA 

DIRIGIDA  E  ANNOTADA 

PELO 

CONDE  DE  FICALHO 

Sócio  eíTectivo  da  mesma  academia 


VOLUME  II 


LISBOA 

IMPRENSA   NACIONAL 
1895 


COLÓQUIOS 


DOS 


SIMPLES    E   DROGAS 

DA  ÍNDIA 


COLÓQUIOS 


DOS 


SIMPLES  E  DROGAS 

DA  índia 

POR 

GARCIA    DA    ORTA 


EDIÇÃO  PUBLICADA 

POR  DELIBERAÇÃO  DA 

> 

ACADEMIA  REAL  DAS  SCIENCIAS  DE  LISBOA 

•    DIRIGIDA  E  ANNOTADA 

PELO 

CONDE  DE  FICALHO 

Sócio  effectivo  da  mesma  academia 


VOLUME  U 


LISBOA 

IMPRENSA  NACIONAL 
1895 


R 


/ 


COLÓQUIO    VIGÉSIMO    SEXTO    DO 

GENGIVRE,  E  NAO  SERVE  ESTE  COLÓQUIO  SENÃO  PÊRA 
Europa  porque  tudo  isto  he  noto  na  índia  porque  he  do  Gengivre. 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA,  SERVA 

RUANO 

Seguese  o  gengivre,  que  nos  dias  de  peixe  nos  dá  sabor 
ás  mesas,  e  excita  o  apetito  com  as  saladas  feitas  delle  em 
conserva  (a  que  as  vosas  escravas  chamam  achar);  e  pare- 
çeme  que  isto  foi  pêra  reitificar  o  peixe,  e  está  escrito  pollos 
nosos  doutores. 

ORTA 

Certamente  não  era  neseçario  fallar  neste  simple,  porque 
nelle  não  ha  duvida  alguma  que  escrever;  mas  dirvosei  delle 
o  que  sabem  todos,  com  tal  condiçam  que  não  amostreis  isto 
a  nenhuma  pesoa  na  índia,  senão  lá  em  Espanha;  porque 
nam  cuidem  todos  que  quanto  vos  diguo  he  desta  manei- 
ra. Mas  porque  não  vades  debalde,  diguovos  que  se  chama 
gengivre  acerca  de  nós,  e  acerca  dos  Arábios  e  Pérsios  e 
Turcos,  giniiibil,  e  os  Guzarates  e  Decanins  e  Bengallas, 
quando  he  verde  lhe  chamam  adrac,  e  sequo  siicte;  e  o  Ma- 
lavar  em  verde  e  em  sequo  imgi,  e  em  Malaio  se  chama 
alia.  E  he  huma  raiz  e  erva  como  espadana,  ou  como  lirio 
espadanai;  e  a  raiz  he  tam  grande,  e  a  folha  he  mais  verde 
escura,  e  a  asta  com  a  folha  he  de  dous  e  três  palmos; 
e  em  verde  não  he  tanto  agudo  no  sabor,  em  especial  o  que 
naçe  em  Baçaim,  que  he  mais  doce,  ou,  por  fallar  mais 
direitamente,  nam  he  de  sabor  tam  agudo,  por  ser  da  terra 
mais  húmida;  porque  a  secura  maior  do  neseçario  faz  a 
cousa  ser  mais  quente*,  e  daqui  veo  aquelle  dito  comum, 
que  a  secura  he  lima  do  calor,  e  casi  isto  sentem  os  autores 


*  Avicena,  Prima  primi  (nota  do  auctor). 


6  Colóquio  vigésimo  sexto 

falando  do  gengivre,  dizendo  que  não  esquenta  tão  asinha 
por  sua  humidade,  como  esquenta  a  pimenta.  Este  geiígivre 
verde  comese  meudo  na  salada,  mesturado  com  outras  her- 
vas  e  azeite  e  vinagre  e  sal,  e  nos  pasteis  de  peixe  fresco;  e 
alguns  o  comem  nos  pasteis  da  carne.  Naçe  em  todos  estes 
portos  da  índia,  scilicet,  os  que  sabemos,  se  o  semeão,  por- 
que todo  he  de  semente  e  raiz;  e  não  duvido  aver  algum 
que  naçe  sem  se  semear,  mas  he  tam  pouco  que  delle  nam 
se  faz  caso;  o  mais  que  naçe  he  no  Malavar,  e  he  o  com  que 
mais  folgam  os  Arábios  e  Pérsios;  e  o  outro  ha  em  Bengalla, 
e  outro  em  Dabul  e  Baçaim,  e  em  toda  esta  costa.  Dentro 
no  sertam  ha  muyto  pouco,  e  não  vem  a  nós  algum;  nas 
ilhas  de  Sam  Lourenço  e  do  Comaro,  que  confinão  com  a 
Etiópia,  também  o  ha,  e  dahi  tomarão  ocasiam  os  que  dixe- 
rão  que  o  havia  na  Trogoldita  e  na  Arábia.  Colhese  em  de- 
zembro e  janeiro,  e  secase,  e  embarramno  pêra  lhe  tapa- 
rem os  buracos  por  nam  apodrecer,  nem  o  embarram  por 
pesar  mais,  nem  o  picam  pêra  o  embarrar,  nem  lhe  pÕem 
este  barro  senam  por  estar  mais  fresco,  e  porque  lhe  con- 
serve sua  humidade  natural;  e  se  o  não  barrão  bem,  co- 
memno  os  bichos,  por  o  achar  mais  húmido  e  de  mais  sabor. 

RUANO 

Poucas  duvidas  se  levantam  neste  simple,  mas  Sarapio* 
lhe  chama  lingibil;  he  chamado  asi  de  algumas  nações? 

ORTA 

Já  O  perguntei,  e  não  achei  quem  o  asi  chanaáse;  por 
onde  deve  ser  este  nome  corruto. 

RUANO 

Galeno  diz**  que  vem  a  nós  de  Barbaria. 


•  Sarapio,  cap.  36  (nota  do  auctor). 

**  Galenus,  Simplicium  (nota  do  auctor). 


Do  Gengivre  7 

ORTA 

Se  por  Barbaria  entende  a  costa  de  Berbéria,  não  tem 
razam  nem  he  verdade;  mas  se  por  Barbaria  entende  re- 
giam estrangeira,  diz  verdade,  porque  riam  pode  ser  mais 
estrangeira  que  a  índia:  mas  isto  he  falar  muito  em  geral. 

RUANO 

Dioscorides  diz*  que  o  ha  na  Trogoldita  e  na  Arábia? 

ORTA 

Na  Trogoldita  e  nas  ilhas  de  Comaro  o  ha,  as  quaes  con- 
finam com  essa  mesma  terra;  e  também  o  ha  na  Etiópia, 
segundo  tive  por  informaçam;  mas  he  pouco,  e  não  he  mais 
que  o  que  abasta  pêra  a  terra;  e  o  que  dixe  Dioscorides  que 
o  ha  na  Arábia,  com  seu  perdão,  não  falou  verdade,  antes 
he  mercadoria  pêra  lá;  e  no  que  diz  que  se  usa  muyto  no 
principio  da  mesa  verde,  dixe  verdade,  e  conforme  ao  que 
fazemos  os  dias  de  peixe,  porque  o  comemos  feito  em  sa- 
lada, como  já  dixe:  e  também  põe  exemplo  dizendo,  como 
nós**  arruda,  e  pode  ser  que  arruda  se  usáse  mais  nesse 
tempo  que  agora,  por  ser  forte  cheiro;  e  mais  entonçes  usa- 
riam da  arruda  medicinalmente,  por  ser  contra  a  peste  e 
contra  o  veneno ;  e  também  alguns  práticos  receitam  salada 
feita  de  arruda  e  de  outras  cousas,  no  regimento  da  peste. 

RUANO 

Diz  que  sam  as  raízes  pequenas,  como  as  da  Junca  ave- 
lanada. 

ORTA 

Não  sam,  senão  grandes  no  comprimento  e  na  grosura, 
e  também  sam  maiores  muyto  que  a  junca. 


*  Dioscorides,  lib.  2,  cap.  i52  (nota  do  auctor). 

*♦  Quer  dizer  «como  nós  comemos  arruda».  O  texto  de  Dioscorides 
na  versão  diz :  Hujus  herba  virente  cocta  ad  multa,  perinde  ac  nos  ruta, 
utuntur.  . . 


8  Colóquio  vigésimo  sexto 

RUANO 

Todavia  dizeis  que  se  am  de  escolher  as  raizes  que  não 
sejam  furadas  ou  tapadas  com  barro;  porque  dizem  que,  por 
ser  podre,  as  tapam. 

ORTA 

Não  diguo  eu  que  o  que  for  buracado  com  o  bicho  he 
bom;  mas,  que  o  barrado  não  tamsomente  não  he  tam  bom; 
mas  antes  diguo  que  he  melhor,  porque  aquelle  barro  o 
guarda  do  ar  e  do  bicho,  e  pêra  este  efeito  se  lhe  faz  isto. 
E  ao  que  diz  que  o  levam  em  canteiros  pêra  a  Itália,  pode 
ser  isto,  mas  fazse  melhor  embarrandoo  primeiro.  E  dizer 
que  fazem  camará  com  elle  traz  razam,  scilicet,  fazendo  boa 
digestam:  e  os  outros  que  dizem  que  estanca  o  ventre,  tam- 
bém tem  razam,  porque  as  camarás  causadas  de  indigestam 
sesam. 

RUANO 

Diz  que  se  extende  e  trepa  como  grama. 

ORTA 

Não  ha  tal  cousa,  mas  está  hirto  como  espadana;  nem 
se  pode  dizer  arbusto  como  diz  Sarapio. 

RUANO 

Pois  O  Musa,  deligente  escriptor,  diz  também  que  trepa 
como  grama,  e  que  tem  a  folha  como  cana. 

ORTA 

Não  fez  boa  comparaçam  porque  o  gengiin-e  he  hirto  das 
folhas,  como  a  espadana,  e  as  folhas  da  cana  não  sam  hirtas. 

RUANO 

E  também  diz  que  o  feito  em  conserva  leixa  fios  na  boca. 

ORTA 

Isso  he  em  o  que  não  he  bom,  ou  he  falseficado,  e  podre 
o  fizeram  em  conserva  por  encobrir  a  malicia;  porque  nam 
o  ha  máo  se  o  fazem  em  conserva  de  açucare  maduro  e  bem 


Do  Gengivre  g 

curado  em  muytas  agoas;  e  he  picado  com  buracos  para 
lhe  entrar  a  agoa,  e  se  lhe  fazem  isto  muytos  dias,  e  o  fartam 
bem  de  açucare,  he  muyto  bom,  e  nam  queima,  nem  leixa 
fios  na  boca;  e  porque  o  açucare  lhe  lançam  em  abastança 
em  Bengala,  por  isso  he  melhor-,  e  também  o  fazem  bem 
as  molheres  em  Chaul  e  Baçaim  e  Dabul;  e  o  de  Batecalá, 
por  não  ser  feito  como  disse,  e  ser  escala  onde  o  compram 
e  fazem,  não  he  tam  bom,  nem  com  tam  bom  açucare. 

RUANO 

O  que  me  destes  os  outros  dias  onde  he  feito? 

ORTA 

Em  casa;  e  doutro  tam  bom  como  este  vos  darei  huma 
jarra,  que  me  veo  de  Bengala.  Trazelha,  moça,  á  mostra. 

SERVA 

Eyla  aqui. 

RUANO 

Sam  ambos  tam  bons,  que  não  sey  qual  he  melhor:  beijo 
as  mãos  de  vossa  mercê  (i). 


Nota  (i) 

O  gengibre,  muito  «noto»  na  expressão  de  Orta,  é  effectivamente 
uma  planta  bem  conhecida  e  vulgarissima  na  índia,  Zingibex'  of- 
ficiiia,le,  Roscoe  {Atnomum  Zingiber,  Linn.),  pertencente  á  grande 
família  das  Scitaminece,  da  qual  já  temos  fallado  varias  vezes  e  ainda 
teremos  de  fallar  muitas  mais. 

Os  nomes  vulgares,  citados  no  texto,  são  também  conhecidos  e  fá- 
ceis de  identificar,  postoque  estejam  um  tanto  alterados: 

—  «Gimzibil»  entre  «Arábios  e  Pérsios  e  Turcos»;  é  a  conhecida 

designação  oriental  J-^-nst^J  ^indjebil,  empregada  por  árabes  e  per- 
sianos. 

—  «Adrac»,  applicado  ao  gengibre  verde  pelos  Guzerates  e  outros 
indianos,  é  o  sanskrito  5T^^  ãrdraka,  simplificado  em  adrak  nas 
línguas  modernas;  emquanto  «sucte»,  applicado  ao  mesmo  rhizoma  de- 


1  o  Colóquio  vigésimo  sexto 

pois  de  secco,  é  uma  corrupção  dos  nomes  sukku,  sont,  sTinthi,  pelos 
quaes  em  diversas  partes  da  índia  se  designou  e  designa  esta  droga. 

—  «Imgi»  no  Malabar;  encontra-se  na  forma  inji,  ou  inchi,  como  sendo 
o  nome  tamil  da  droga  fresca. 

—  «Aliáo  em  «Malayo»;  vem  citado  na  mesma  forma  em  diversos  li- 
vros modernos  de  auctoridade  (Cf  Dymock,  Mat.  med.,  762;  Ainslie, 
Mat.  Jnd.,  i,  i52;  Crawfurd,  Dict.,  142). 

O  rhizoma  do  gengibre  era  conhecido,  como  vimos,  de  Dioscorides; 
e  depois,  durante  toda  a  Idade  media,  continuou  a  ser  trazido  á  Eu- 
ropa, como  de  resto  succedeu  com  quasi  todas  as  especiarias  mais 
importantes  da  índia.  Vinha,  porém,  pelos  caminhos  demorados  e  dif- 
ficeis  do  Mar  Vermelho  e  do  Golfo  Pérsico,  e  chegava  aos  mercados  me- 
diterrânicos sobrecarregado  com  muitas  despezas  de  transporte.  Sendo 
assim  uma  especiaria  conhecida  e  apreciada,  devia  desde  logo  attrahir 
as  attenções  dos  portuguezes,  como  de  feito  attrahiu.  O  anonymo  auctor 
do  Roteiro  da  viagem  de  Vasco  da  Gama  notava  que  em  Alexandria 
podia  valer  um: 

«quintall  de  gingivre  onze  cruzados.» 

E  logo  em  seguida,  pondo  em  relevo  o  que  se  podia  ganhar  n'esta 
mercadoria,  acrescentava: 

«e  em  Calecut  vali  hum  bachar,  que  tem  cinquo  quintaees,  vinte 
cruzados.» 

Sem  adquirir  a  importância  que  a  pimenta  tomou  desde  logo  no 
nosso  commercio  com  a  índia,  nem  a  que  um  pouco  mais  tarde  ad- 
quiriu o  cravo,  o  'gengibre  figurou  largamente  nas  cargas  das  naus 
da  índia.  El-rei  D.  Manuel  recommendava  a  Affonso  de  Albuquerque, 
que  lhe  enviasse  grandes  quantidades  de  gengibre;  e  este  respondia 
em  carta  de  20  de  Agosto  de  i5i2:  «quanto  he  ao  jemjivre,  cada  vez 
averá  vos  alteza  mayor  soma  dele,  porque  espertou  muito  aos  laura- 
dores  dele  procurarmos  nós  pollo  aver,  e  não  duvido  aver  se  dobrada 
a  soma  do  que  desejaes».  Esta  passagem  é  interessante,  porque  mos- 
tra como  em  volta  dos  portos  do  Malabar  mais  frequentados  pelos  nos- 
sos navegadores,  Cananor,  Cochim  e  outros,  a  procura  da  especiaria 
havia  já  feito  desenvolver  a  cultura  da  planta. 

Por  estes  primeiros  tempos  do  nosso  commercio  deviam  provavel- 
mente usar-se  umas  designações  de  procedência,  conhecidas  nos  sécu- 
los anteriores  dos  negociantes  italianos,  os  quaes  distinguiam  o  gengi- 
vre  belledi  ou  beladi,  o  colombina  e  o  mecchino:  o  primeiro  procedente 
de  diversas  regiões,  pois  beladi  se  pode  traduzir  pela  expressão  portu- 
gueza  da  terra;  o  segundo  mais  especialmente  do  porto  de  Coulão, 
então  chamado  Colombo;  o  terceiro  da  Mecca,  não  que  ali  cultivassem 
a  planta,  mas  provavelmente  porque  por  ali  conduziam  parte  da  droga. 
Vê-se  que  isto  devia  ser  assim,  porque  Duarte  Barbosa  ainda  falia  do 
gengibre  beledi  de  Calecut  e  de  Bengala,  e  do  gengibre  dely  do  norte 


Do  Gengivre  1 1 

do  Malabar;  assim  como  Affonso  de  Albuquerque  falia  do  jemjivre 
beledy.  Estas  designações,  porém,  pertenciam  propriamente  aos  há- 
bitos do  commercio  mediterrânico,  e  seriam  pouco  usadas  na  índia, 
vindo  depois  a  cair  em  completo  desuso,  pois  Orta  nem  as  menciona. 
Como  vimos,  unicamente  se  refere  ao  estado  de  conservação  do  rhizoma, 
e  ao  facto  de  estar  mais  ou  menos  «embarrado».  E  esta  era  a  distin- 
cção,  que  se  fazia  geralmente  no  seu  tempo:  gengibre  sem  barro,  ou 
argilla,  chamado  branco;  e  gengibre  coberto  de  argilla,  chamado  ver- 
melho. Gaspar  Corrêa  explica  muito  bem  a  operação  e  os  seus  mo- 
tivos : 

: . . .  «e  diante  um  grande  terreiro  (na  fortaleza  de  Cananor,  man- 
dada fazer  por  D.  Francisco  de  Almeida)  em  que  se  concertava  o  gen- 
gibre com  barro  pêra  a  carga,  porque  sem  assy  ser  barrado  entrava 
nelle  o  bicho  que  lhe  fazia  muyto  dano,  e  o  barro  o  conserva  e  faz 
mais  forte  em  sua  perfeição  pêra  sempre.» 

As  vezes,  porém,  o  barro  era  posto  em  excesso,  como  meio  de  au- 
gmentar  fraudulentamente  o  peso,  e  assim  succedeu  no  primeiro  gen- 
gibre que  levaram  a  Vasco  da  Gama : 

«Mas  o  barro  era  tanto  sobejo  do  que  abastara»  — diz  o  mesmo  Gas- 
par Corrêa —  «que  muito  mais  pesava  o  barro  que  o  gengivre,  no  que 
aos  nossos  fazião  grande  roubo,  que  o  feitor  bem  entendia. . . » 

D'este  peso  do  barro,  resultava  que  o  gengibre  branco,  sem  ser  me- 
lhor que  o  verynelho,  era  no  emtanto  um  pouco  mais  caro,  como  se  vê 
bem  do  Lyvro  dos  Pesos  e  da  Letnbrança  das  cousas  da  Imdea. 

(Cf.  Rot.  da  Viagem  de  Vasco  da  Gama,  ii5;  Cartas  de  Affonso  de 
Albuquerque,  70  e  268;  Yule,  Marco  Polo,  11,  370;  Duarte  Barbosa,  Li- 
vro, 383;  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  1,  92  e  728;  Subsídios,  no  Lyvro  dos 
Pesos,  16,  e  na  Lembrança,  42.) 


COLÓQUIO    VIGÉSIMO    SÉTIMO    DE 

DUAS  MANEIRAS  DAS  HERVAS  CONTRA  AS  GAMARAS, 

os  nomes  das  quais  se  diram  neste  colóquio,  e  de  huma  herva  que 
nam  se  leixa  tocar  sem  se  fazer  murcha. 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA,  SERVA,  MOÇO 

RUANO 

Segundo  vejo  nos  emfermos  que  neste  esprital  ha,  e  nos 
que  vos  vejo  curar,  as  peiores  emfermidades  sam  colérica 
passio  e  as  camarás;  e  por  isso  queria  que  falasemos  na 
agoa  da  lierva  com  que  curais  as  camarás;  porque,  segundo 
se  diz  em  Portugal,  muito  estanca. 

ORTA 

A  colérica  passio,  segundo  vistes,  he  muyto  forte  e  peri- 
gosa emfermidade;  e  as  camarás  que  ficam  antigoas  (a  que 
chamamos  crónicas)  sam  muyto  más  de  curar;  e  as  de  hu- 
mor quente  sam  mu3rto  periguosas,  as  quaes  curamos  cá 
com  mais  medo  que  em  Portugal,  e  com  mais  cuidado,  por- 
que qualquer  error  nelas  cometido  he  dificultoso  de  emen- 
dar. Chama-se  a  herva,  ou  frutiçe  mais  verdadeiramente 
dita,  em  lingoa  canarim,  que  he  a  de  Goa,  coru;  e  nós  a 
chamamos  herva  do  Malabar,  porque  os  Malavares  curam 
bem  desta  emfermidade;  e  aqui  andam  alguns  que  vos 
amostrarei;  e  certamente  que  asi  elles  como  nós  outros  cu- 
ramos bem  desta  emfermidade,  depois  de  muyta  parte  da 
matéria  evacuada.  A  maior  parte  destas  matas  sam  do  ta- 
manho de  medronheiro,  e  mais  pequenas,  e  as  folhas  sam 
como  pexegueiro,  e  as  flores  que  deitam  sam  brancas  e 
cheirão  a  madresilva,  e  das  cortezas  da  raiz  usamos  secan- 
doas  primeiro,  porque  frescas  deitam  algum  leite. 

RUANO 

Deve  ser  quente. 


14  Colóquio  vigésimo  sétimo 

ORTA 

Asi  o  cuidava  eu  ante  que  a  prováse,  e  desque  a  provei 
que  a  achei  emsipida  e  fria,  e  lhe  vi  os  efeitos  que  fazia,  a 
graduei  em  fria  e  seca,  com  mais  secura  que  frialdade;  e 
asi  a  graduam  cá  os  desta  terra. 

RUANO 

Vede  o  que  dizeis,  porque  o  licenciado  Álvaro  Fernan- 
des (i)  me  dixe  o  outro  dia,  que,  tendo  humas  camarás  muito 
periguosas,  tomara  per  vosso  conselho  a  herva  7iialapar  da 
maneira  que  a  dam  os  Malavares,  e  nam  estilada  como  a  dam 
os  Portuguezes,  e  que  sentio  a  mais  amarga  cousa  que  avia 
no  mundo,  por  onde  me  parece  que  cousa  tam  amarguosa 
não  pode  ser  fria. 

ORTA 

Bem  pode  ser  ter  diversas  conpreisÕes  em  diversas  par- 
tes, asi  como  tem  a  \argatoa;  e  quanto  ao  sabor  amarguoz 
que  tem,  não  he  muyto,  porque  o  ópio,  sendo  tam  frio  como 
he,  amargua;  e  por  esta  rezam  me  parece  ser  fria:  ao  me- 
nos sejamos  conformes  em  dizer  que  estanca.  Tornando  ao 
caso,  diguo  que  fazemos  as  cortezas  desta  raiz  em  pó,  e  to- 
mamos deste  pó  quanto  cabe  em  huma  caçola  de  alambi- 
que, e  amaçamolo  muyto  bem  com  leite  azedo;  e  tomamos 
ameos*,  semente  de  aipo  e  coentro  sequo,  e  cominhos  pi- 
sados pretos,  dos  que  vem  de  Ormuz;  tudo  isto  torrado 
misturam  em  huma  onça  de  manteigua  crua,  e  asi  o  pomos 
a  estilar;  e  desta  aguoa  estilada  damos  ao  enfermo  quatro 
onças,  misturadas  com  duas  onças  de  aguoa  rosada,  ou  de 
pés  de  rozas,  ou  de  chantagem.  E,  quando  he  mais  neseça- 
rio,  lhe  misturamos  pós  de  trosiscos  de  hei^va  malavar,  os 
quais  se  fazem  da  mesma  maneira  que  se  faz  a  aguoa,  ti- 
rando que  não  levam  manteiga,  e  sam  formados  com  alguma 
aguoa  das  sobreditas.  E  também  usamos  dar  esta  aguoa  em 
cristeis,  pêra  ter  de  noite;  e  he  cousa  com  que  me  a  mi  so- 
cedeo  muyto  bem  muitas  vezes;  e  deitamos  estes  cristeis 


*  No  Colóquio  undécimo,  Orta  explicou  que  ameos  é  o  cominho  rús- 
tico, provavelmente  a  semente  de  uma  espécie  de  Ammi,  ou  de  Sison. 


Das  herras  contra  as  camar^as  i5 

autoalmente  frios,  por  a  terra  ser  muyto  quente,  por  se  re- 
ter mais,  e  também  he  isto  custume  dos  físicos  indianos:  nam 
vos  pareça  mal.  E  se  a  neseçidade  he  muyta,  damos  esta 
aguoa  duas  vezes  a  beber  no  dia,  scilicet,  huma  polia  ma- 
nhãa  ás  seis  horas,  e  outra  ás  duas  depois  do  meo  dia. 
Nestes  dias  damos  a  comer  ao  emfermo  leite  azedo  mistu- 
rado com  arroz,  e  franguos  delidos  em  aguoa  deste  arroz 
(a  que  elles  chamão  canjej  e  segundo  vemos  na  fraqueza  do 
emfermo,  asi  lhe  damos  a  comer:  ao  menos  vinho  em  ne- 
nhuma maneira  o  dam  os  Malavares,  nem  nós  o  damos, 
senão  avendo  muytas  causas  pêra  isso  em  camarás  antiguas. 
E  posto  que  esta  mesinha  seja  muyto  boa,  e  com  ella  me 
soçedeo  bem  muyto  tempo,  não  posso  leixar  de  confesar 
que  não  faz  obra  tam  apresurada  e  tam  certa  como  a  erva 
que  dam  os  Malavares,  a  qual  he  muyto  toscamente  feita,  e 
fazse  das  mesmas  cousas  que  estoutra  se  faz,  pulverisa- 
das  e  delidas  em  leite  azedo,  ou  em  aguoa  de  arroz  muyto 
cosido  e  casi  desfeito;  outros  fazem  esta  aguoa  desta  erva 
verde  pisada,  e  he  muyto  forte  de  tomar,  e  muito  amar- 
guoza;  e  desta  potagem  dam- ao  emfermo  polia  manhãa 
sete  onças  e  outras  tantas  á  tarde,  se  ha  neseçidade  disso. 
E  porque  a  erva  nam  he  aprazível  no  gosto,  lhe  dam  pêra 
emxagoar  a  boca  algum  leite  azedo. 

RUANO 

Com  qual  maneira  de  aguoa  se  acham  milhor  os  emfer- 
mos? 

ORTA 

Com  a  dos  Malavares  se  acham  muyto  milhor;  e  nós 
quando  vemos  que  a  nosos  emfermos  não  lhe  aproveitam 
nosas  mezinhas  brandas,  entregamollos  ao  Malavar,  pêra 
que  lhe  dê  a  sua  mezinha  rija;  e  nós  ja  aguora  sem  os  Ma- 
lavares lhe  damos  a  aguoa  sua;  e  ha  já  feyta  no  esprital  de 
elrey,  e  se  os  Malavares  vêem  que  ha  necesidade  maior, 
mesturam  ópio  a  esta  mezinha:  e  alguns  Arábios  curam  to- 
das as  camarás  com  ópio  retificado  com  iio:{.  E  eu  vi  curar 
asi  a  hum  Arábio,  quando  andava  com  aquelle  grande  sul- 


i6  Colóquio  vigésimo  sétimo 

tam  Badur  na  guerra,  em  companhia  de  Martim  Aífonso 
de  Sousa,  meu  amo  (2).  E  hum  íidalguo  onrado  e  descreto 
que  de  Portugal  veo,  me  dixe  que  Dom  Manoel  Telo  de  Me- 
nezes curava  em  Portugal  algumas  pessoas  desta  maneira  ao 
parecer;  porque  a  mezinha  estancava,  e  juntamente  com  isto 
cheirava  a  ópio,  a  qual  física  aprendeo  em  Xael  sendo  lá 
cativo  (3);  mas  eu  não  tenho  isto  por  cousa  segura. 

RUANO 

E  a  mim  asi  me  parece  usada,  ao  menos  no  principio, 
porque  outras  couzas  ha  melhores  pêra  retificar  o  ópio,  que 
a  1107. 

ORTA 

Os  Malavares  nunca  querem  confesar  que  lhe  deitam  ópio; 
e  eu  curei  a  hum  fidalgo  mu3'to  onrado,  o  qual  tem  nome 
em  toda  Espanha,  e  estava  á  morte;  e  porque  teve  devaçam 
a  hum  Malavar  que  o  avia  restituído  á  vida  de  humas  ca- 
marás deficultosas,  e  achandose  doente  em  esta  cidade  de 
Goa  de  humas  camarás  muj^to  faciles,  o  mandou  chamar; 
e  elle  por  yr  por  caminho  mais  curto  curouo  loguo  com 
a  mezinha  que  levava  ópio;  e  sendo  eu  chamado  o  achei 
casi  á  morte,  estúpido,  e  parecendo  nelle  mu3'tos  sinaeis 
de  homem  que  tomava  ópio;  o  qual  eu  curei,  e  ouve  cedo 
saúde;  e  o  mesmo  Malavar  nunqua  quis  confessar  que  levava 
ópio  a  mezinha  que  lhe  dera,  e  mostrava  as  mezinhas  com 
que  o  curava,  as  quais  eu  conhecia  tam  mal  como  minha 
may;  e  porque  esta  mezinha  sara  de  improviso,  me  parece 
que  lhe  deitam  ópio.  E  fui  mais  certificado  disso  quando 
curei  este  fidalguo.  Aproveita  esta  mezinha  em  grande  ma- 
neira, quando  he  muyta  parte  da  matéria  evacuada,  e  doutra 
maneira  recaem  muitas  vezes  (4). 

RUANO 

Aproveita  esta  mezinha  pêra  mais  emfermidades? 

ORTA 

Pêra  vómitos,  e  pêra  fraquezas  do  estomaguo,  tomada  com 
alguma  mistura  de  agiioa  de  ortelãa  e  alguns  pós  de  almé- 


Das  herpas  conU\i.  as  camarás  17 

cega.  Ha  também  nesta  ilha  uma  arvore  pequena,  e  porém 
de  maior  cantidade  que  estoutra  frutiçe;  tem  as  foUias  e  a 
flor  como  murta,  e  dá  a  fruta  como  murtinhos,  e  do  mesmo 
sabor  e  mais  estiticos,  e  chamão  esta  erva  avacarí.  Esta, 
me  dixe  hum  português  velho  de  muito  tempo  nesta  terra, 
que  mora  no  monte  em  huma  sua  quinta,  que  aproveita 
muito  pêra  camarás  antiguoas  de  causa  fria;  e  que  teve, 
por  espaço  de  hum  anno,  huma  filha  emferma  de  camarás, 
e  que  as  outras  mezinhas  lhe  nam  aproveitavam,  e  com 
esta  foy  restituida  á  saúde;  e  pergunteilhe  quem  lhe  dixera 
que  esta  pranta  era  boa  para  camarás,  e  dixe  que  hum 
destes  físicos  da  terra  lhe  dava  a  corteza  pisada  e  lançada 
em  agoa  de  arroz,  feita  a  modo  de  tisana,  que  he  o  modo 
que  tem  no  esprital  de  curar.  Esta  raiz  desta  mata  dizem 
que  cheira  a  trevo;  e  perguntei  aos  físicos  desta  terra  por 
ella,  e  dixeramme  que  era  boa  pêra  camarás,  e  que  mistu- 
ravam com  outra  herva  chamada  coru:  e  que  he  muyta  boa 
mesturada  (5).  Isto  he  o  que  sey  destas  mezinhas,  e  eu  vos 
levarei  a  ver  emfermos  que  curam  os  Malavares  e  os  Ca- 
narins,  e  sabereis  melhor  tudo. 

SERVA 

Esta  ahi  um  moço  dos  frades  de  Sam  Francisco,  com 
hum  cesto. 

ORTA 

Não  será  cheo  de  cousas  pêra  comer,  pois  são  frades 
que  tem  necesidade. 

MOCO 

Eis  aqui  as  hervas  que  pedistes. 

.     RUANO 

Humas  sam  roseiras;  e  estoutra  he  medicinal? 

ORTA 

Não,  mas  tem  huma  propriedade  estranha,  que  he  nam 
querer  que  a  toquem;  he  herva  que  nam  se  consente  tocar, 
porque  pondolhe  a  mam  vereis  como  se  encolhe  loguo. 


i8  Colóquio  vigésimo  sétimo 

RUANO 

Cousa  he  essa  muyto  de  notar,  ser  esta  herva  tam  limpa 
e  tam  ciosa,  que  não  consente  tocarse;  vós  especulai  esa  fi- 
losofia; porque  se  parece  ás  folhas  que  deita  o  polipodio; 
tem  flores  amarelas,  e  desta  herva  não  falaram  Plinio,  nem 
Dioscorides  (6);  mas  o  autor  do  livro  da  Nova  Espanha  diz 
que  ha  no  Peru  huma  herva  que,  como  lhe  tocam,  as  folhas 
se  secam,  E  porque  me  parece  que  estareis  já  emfadado,  será 
bem  que  comamos. 


Nota  (i) 

O  licenceado  Álvaro  Fernandes  devia  ser  um  dos  médicos  do  Hos- 
pital de  Goa.  No  Regimento  do  hospital  real  da  cidade  de  Goa,  assi- 
gnado  pelo  provedor  e  irmãos  da  mesa  a  23  de  agosto  do  anno  de  i585, 
em  tempo  do  vice-rei  D.  Francisco  Mascarenhas,  vem  a  seguinte  nota: 
.  .  .«e  o  provedor  da  Santa  Miseiicoidia  Dom  Christovão  de  Menezes, 
e  outros  provedores  que  lhe  socederáo.  acrecentarão  o  ordenado  do 
medico  em  vinte  e  cinco  xerafins  cada  mez,  que  era  o  licenciado  Ál- 
varo Fernandes,  e  assi  foi  correndo».  Esta  nota  refere-se  evidentemente 
a  uma  determinação  tomada  muitos  annos  antes  do  de  i585,  e  por- 
tanto nos  tempos  do  nosso  Orta,  o  que  torna  provável  ser  este  o  Álvaro 
Fernandes  dos  Colóquios  (Cf.  Arch.  port.  oriental,  fascículo  5.",  1044). 

Nota  (2) 

Esta  phrase,  e  outra  igualmente  succinta  em  um  dos  Colóquios  se- 
guintes, são  as  únicas  referencias  de  Orta  a  um  successo  importante 
da  sua  vida — ao  facto  de  elle  ter  acompanhado  o  conhecido  Bahadur 
Scháh  na  sua  aventurosa  expedição  contra  os  soldados  mongões  de  Hu- 
máyun.  N'essa  expedição,  Orta,  que  seguia  o  seu  amo  Martim  AfFonso 
de  Sousa,  atravessou  toda  a  peninsula  de  Kathiawar  desde  Diu  até  ás 
portas  de  Ahmedábád,  e  teve  assim  a  única  occasiao  de  examinar  o 
aspecto  e  vegetação  do  norte  da  índia,  pois  não  nos  consta  que  ali  vol- 
tasse depois.  Pode  ver-se  o  que  eu  disse  acerca  d'esta  viagem  em  Gar- 
cia da  Orta  e  o  seu  tempo,  p.  99  e  seguintes. 

Nota  (3) 

O  D.  Manoel  de  Menezes,  de  quem  falia  o  nosso  escriptor,  havia  sido 
njandado  por  Nuno  da  Cunha  á  costa  da  Arábia  em  um  galeão,  a  fim 


Das  herpas  contra  as  camarás  19 

de  se  informar  do  fundamento  que  tinham  certas  queixas  do  rei  de  Xael, 
relativas  a  desmandos  e  violências  feitas  por  alguns  portuguezesn'aquel- 
la  costa.  As  queixas  tinham  todo  o  fundamento,  pelo  menos  assim  se 
deprehende  da  própria  narrativa  de  João  de  Barros;  mas,  como  muitas 
vezes  succede,  pagou  o  justo  pelo  pecador,  e  D.  Manoel  ficou  retido 
pelo  povo  e  rei  de  Xael,  sendo  entregue  mais  tarde,  quando  se  assenta- 
ram de  novo  pazes  com  Xael,  e  D.  Fernando  de  Lima  foi  ali  expressa- 
mente buscal-o.  Vê-se  pelos  Colóquios,  que  este  D.  Manoel  de  Menezes, 
filho  bastardo  de  D.  Tello,  voltou  para  Portugal  e  se  entretinha  em 
applicar  na  sua  pátria  as  noções  de  medicina  que  recebera  na  Arábia. 

Gaspar  Corrêa  conta  também  a  historia  do  captiveiro  e  resgate  de 
D.  Manoel;  mas  a  sua  versão  afasta-se  bastante  da  que  encontramos 
em  João  de  Barros. 

(Cf.  Barros,  Ásia,  iv,  vui,  i5  e  16;  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  iii,  844.) 


Nota  (4) 

A  herva  malavar  de  Orta  deve  ser  a  Holax^i-lieiia  a.iiti- 

dlysenterica,  Wall.,  uma  planta  da  familia  dos  Apocynace<^.  Em 
primeiro  legar,  a  curta  descripção  de  Orta  concorda  de  modo  bastante 
satisfactorio  com  os  caracteres  da  planta;  a  forma  das  folhas,  a  côr 
e  perfume  das  flores,  a  presença  de  leite  ou  látex  na  casca,  o  sabor 
extremamente  amargo  d'esta  mesma  casca,  tudo  isto  não  desdiz  do  que 
sabemos  dos  caracteres  d'aquella  apocynacea.  Unicamente  poderia  le- 
vantar alguma  duvida  o  facto  de  Orta  lhe  chamar  herva  ou  mesmo 
«frutice»,  pois  a  Holarrhena  tem  um  porte  arbóreo;  mas  o  próprio 
Orta  diz  que  a  sua  herva  chegava  a  ter  a  dimensão  dos  medronheiros, 
e  a  Holarrhena  não  é  uma  arvore  grande,  attingindo  apenas — segundo 
dizem —  de  20  a  3o  pés  de  altura.  Alem  d'isso  é  possivel  que  Orta  não 
visse  exemplares  bem  desenvolvidos.  Em  segundo  logar,  o  nome  vul- 
gar de  «coru»,  citado  por  Orta,  parece-se  bastante  com  os  nomes  hin- 
dustanis,  vulgares  em  Bombaim,  de  kureya,  ou  kúra;  e  sobretudo  com 
a  ultima  parte  do  nome  de  khaocurro,  que,  segundo  Dymock,  applicam 
á  casca  da  Holarrhena  nas  terras  de  Goa.  Por  ultimo  as  propriedades 
medicinaes  attribuidas  á  herva  malavar  e  á  Holarrhena  são  absoluta- 
mente idênticas. 

A  Holarrhena  antidysenterica,  também  chamada  Wrightia  antidy- 
senterica,  Echites  antidysentericum  e  Nerium  aníidysentericum,  porque 
acerca  da  sua  classificação  se  deram  bastantes  erros  e  confusões,  gosa 
na  índia  de  uma  grande  reputação.  Não  só  os  médicos  indianos,  senão 
também  muitos  inglezes  concordam  com  a  opinião  favorável  do  nosso 
medico  portuguez  do  xvi  século;  e  sir  Walter  EUiot,  por  exemplo,  con- 
siderou-a  um  dos  mais  valiosos  productos  medicinaes  da  índia.  A  casca. 


20  Colóquio  vigésimo  sétimo 

que  se  encontra  no  commercio  local,  e  é  conhecida  pelos  nomes  de 
codaga  pala,  de  conessi  bark,  e  ainda  por  outros,  chegou  a  ser  impor- 
tada na  Europa;  mas  perdeu  depois  parte  da  sua  acceitação,  talvez 
pelo  facto  de  lhe  misturarem  a  casca,  relativamente  inerte,  da  Wri- 
ghtia  tiiictoria.  Continua,  todavia,  a  ser  applicada  na  índia,  e  — como 
o  seu  nome  especifico  indica —  no  tratamento  das  mesmas  enfermida- 
des para  que  Orta  a  recommendava.  Dos  curiosos  artigos,  que  acerca 
d'esta  planta  se  encontram  na  Matéria  medica  of  Western  índia  do 
sr.  Dymock,  e  na  Pharmacopceia  of  índia,  se  vê  que  o  modo  de  fazer 
os  preparados  da  casca,  misturando-lhe  algumas  vezes  substancias  aro- 
máticas, e  outras  ópio,  não  differem  essencialmente  dos  que  descrevia 
ha  três  séculos  o  nosso  medico  portuguez.  Este  foi,  em  todo  o  caso, 
o  primeiro  europeu,  que  mencionou  a  planta  e  as  suas  propriedades 
medicinaes  (Cf.  Dymock,  1.  c,  497;  Pharmac.  of  índia,  iSy  e  455). 


Nota  (5) 

Não  me  foi  possível  averiguar  o  que  seja  este  «avacari»,  posto  que 
não  julgue  difficil  essa  averiguação  para  quem  esteja  familiarisado  com 
a  flora  local  das  terras  de  Goa.  Pelo  que  diz  Orta  se  vê,  que  não  era 
um  medicamento  largamente  conhecido  e  de  uso  geral,  como  a  casca 
da  «herva  malavar»,  ou  Holarrhena;  mas  pelo  contrario  uma  receita 
particular  e  pouco  vulgarisada.  Um  portuguez  velho,  que  vivia  na  sua 
quinta,  fora  de  Goa,  soubera  de  um  medico  gentio,  um  vydia,  que  a  casca 
do  «avacari»  aproveitava  no  tratamento  da  dysenteria,  ou  das  «cama- 
rás antigas  de  causa  fria».  É  claro  que  estes  remédios  caseiros  deviam 
abundar  e  variar  de  localidade  para  localidade,  e  não  se  identificam 
tão  facilmente  como  outros  de  maior  nomeada.  A  única  cousa  que  é  li- 
cito affirmar,  é  que  o  avacari  era  uma  planta  da  familliá  das  Myrta- 
cecv;  Orta  tinha  bastante  tacto  botânico,  para  se  não  enganar  quando 
insistia  na  semelhança  da  planta  com  a  «murta».  As  Myrtacece  abun- 
dam na  índia,  nomeadamente  as  espécies  do  género  Eugenia;  algumas 
têem  cascas  notavelmente  adstringentes  que  podem  ter  a  applicação 
indicada,  e  é  provável  que  entre  ellas  se  encontre  o  avacari. 


Nota  (6) 

Esta  entrada  em  scena  do  moço  dos  frades,  é  uma  d'aquellas  notas 
familiares,  que  Orta  gostava  de  introduzir  nos  seus  Colóquios,  e  tanto 
contribuem  para  lhes  dar  vida  e  caracter.  Vê-se  que  o  nosso  velho 
medico  devia  ser  um  commensal  do  grande  convento  de  S.  Francisco, 
junto  do  qual  e  ao  longo  de  cuja  cerca  elle  passava  todas  as  manhãs. 


Das  liervas  contra  as  camarás  2  í 

quando  descia  do  centro  da  cidade  para  o  hospital,  situado  no  cães  de 
Santa  Catharina. 

Quanto  áquella  planta  que  «se  nam  leixa  tocar  sem  se  fazer  murcha», 
a  primeira  impressão  seria  identifical-a  com  uma  espécie  de  Mimosa, 
mas  nem  a  côr  das  flores,  nem  o  porte  da  planta  concordam  com  as 
espécies  sensitivas  d'aquelle  género.  Christoval  Acosta,  cujo  livro  tenho 
citado  poucas  vezes,  porque  em  geral  é  uma  simples  paraphrase  do  de 
Orta,  dá-nos  n'este  ponto  esclarecimentos  valiosos.  Não  só  descreve 
mais  detidamente  a  planta,  sob  o  nome  de  Yerva  Biva,  como  a  desenha, 
posto  que  grosseiramente;  e  das  suas  indicações,  concordes  com  as  de 
Orta,  deduz-se  dever  ser  uma  espécie  muito  sensitiva  da  familia  das 
Geraniacece,  Biopliytxiiii  sensitlATim,  D.  C.  (Oxalis  sen- 
sitiva, Willd.J,  que  é  bastante  frequente  na  índia,  e  da  qual  Rumphius 
fallou  também,  dando-lhe  o  nome  de  Herba  sentieyis.  Segundo  diz 
Acosta,  era  considerada  na  índia  uma  planta  sagrada,  ou  feiticeira, 
especialmente  consultada  em  questões  amorosas  (Cf.  Acosta,  Tractado 
de  las  drogas,  236,  Burgos,  iSyS). 


COLÓQUIO  VIGÉSIMO  OITAVO 

QUE  TRATA  DA  JACA  E  DOS  JAMBOLÕES  E  DOS  JAMBOS 

E  DAS  JANGOMAS 


INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA,  SERVA,  CAPITÃO 

RUANO 

Que  fruita  he  aquella  que  he  do  tamanho  de  nozes  gran- 
des? 

ORTA 

Já  comestes  das  castanhas  que  tem  dentro,  e  dixestes  que 
asadas  sabiam  a  castanhas;  e  agora  comereis  as  cascas  que 
a  cobrem,  e  sam  amarelas  e  tem  bom  sabor. 

RUANO 

Sabem  a  melam,  não  tam  bom  como  os  milhores. 

ORTA 

Asi  he;  e  sam  per  sua  viscusidade  más  de  degerir,  ou, 
por  milhor  dizer,  não  se  degereín;  e  muitas  vezes  saiem 
pola  camará  sem  nenhuma  permutaçam;  e  eu  nam  uso  muito 
delias.  Chamamse  em  ma\a.\ ar  Jdcas;  em  canarim  e  guza- 
vaXQ  panai ;  ^  ^^  fralda  do  mar  as  ha.  Somente  se  sequam 
estas  castanhas  de  dentro,  e  comemnas  asadas  e  ás  vezes 
cozidas.  O  arvore  delias  he  alto  e  grande,  e  ellas  nacem  no 
pao  do  tronquo  pêra  sima,  e  não  nos  ramos  como  as  outras 
fruitas;  e  por  fazer  mais  certo,  aqui  vos  amostrarei  a  jaca, 
donde  estas  foram  tiradas.  E  vedela  aqui,  que  he  tamanha 
como  hum  melão  muyto  grande,  e  ha  outras  maiores;  e  a 
corteza  que  cobre  estas  castanhas  todas  he  muita  grossa, 
como  vereis,  e  dura,  e  pêra  nada  serve. 

RUANO 

Não  ha  melão  tam  grande,  nem  tam  fermoso,  como  estç 
pomo. 


24  Colóquio  vigésimo  oitavo 

ORTA* 

He  verde  escuro,  e  todo  cercado  de  espinhos,  mais  pe- 
quenos que  os  do  ouriço  quacheiro;  mas  estes  não  picam, 
como  o  piquo  delle:  e  não  me  parece  bem  comerdes  esta 
jaca  senão  ao  cabo  de  comer,  e  entonçes  comereis  as  casta- 
nhas assadas  deste  mesmo  pomo,  que  já  o  outro  dia  co- 
mestes (i). 

RUANO 

Comerei  estas  azeitonas,  que  asi  o  parecem^  mas  sam 
muyto  ponticas,  porque  apertam  muyto;  e  no  demais  pa- 
recem azeitonas  cordovesas  já  maduras. 

ORTA 

Chamamse^aw^o/óes^  e  naçem  no  campo  em  huma  mata 
que  parece  como  murta,  e  nas  folhas  parece  medronho;  mas 
asi  esta  fruita  como  s^jáca  não  se  tem  por  fruita  muito  sadia 
da  gente  desta  terra  (2).  Mas  esta  que  vos  mostro  he  muyto 
estimada  nesta  terra;  veo  de  Malaca  a  esta  terra  ha  pou- 
quo  tempo,  porque  ha  muytas  naquellas  partes.  Mas  dizei 
a  que  vos  parece  este  pomo,  pois  he  do  tamanho  de  hum 
ovo  de  pata,  e  algum  tanto  maior:  já  vedes  como  a  cor 
delle  he  feita  de  branco  e  vermelho,  e  cheira  a  aguoa  ro- 
sada, de  maneira  que  aos  dous  sentidos  he  aprazível.  Agora 
he  necesario,  porque  parece  bem  á  vista  e  ao  cheiro,  que 
seja  ao  gosto;  e  por  isso  provaio. 

RUANO 

Já  o  provei,  e  sabe  muito  bem;  convém  a  saber,  hum 
sabor  que  não  emsita  muito  o  gosto  por  ser  aquoso  este 
fruito;  e  pêra  mim  o  sabor  he  muyto  bom;  mas  o  cheiro 
e  a  vista  parece  como  humas  bugualhas  grandes,  quando  sam 
novas  (a  que  chamamos  maçans  de  cuquo),  e  dizeime  como 
se  chama  esta  fruita  nesta  terra  onde  a  ha. 


*  Falta  a  palavra  «Orta»  na  edição  de  Goa;  o  que  se  torna  evidente 
pelo  sentido,  e  por  que  vem  a  seguir  as  duas  observações  de  Ruano. 


Da  Jaca  25 

ORTA 

Em  Malaca  he  chamada  jambos;  e  asi  lhe  chamão  nesta 
terra. 

RUANO 

Melhores  sam  estes  que  os  Jatiibolóes;  porque  já  ouvi  gua- 
bar  muyto  esta  fruita;  diguo  que  também  he  aprazível  aos 
ouvidos  com  a  fama,  de  modo  que  apraz  a  quatro  sentidos. 
He  certo  que  he  esta  fruita  pêra  comer  hum  príncipe  na 
nossa  Espanha;  e  mais  não  me  parece  que  fará  mal,  se  a 
comerem  antes  do  comer;  e  bem  vejo  que  he  fria  e  húmida; 
e  portanto  me  dizei  a  feiçam  do  arvore. 

ORTA 

Desta  varanda  vereis  nesta  orta  minha  os  arvores:  aqueles 
pequenos  sam  postos  ha  dous  annos,  e  em  quatro  dão  muyto 
boa  fruita,  e  carreguão  muyto,  muitas  vezes  no  anno;  asi  o 
arvore  como  a  fruita  sam  de  feição  oval*,  e  sam  do  tamanho 
como  huma  amexeira;  a  frol  he  mu3'to  cheirosa  e  he  roxa; 
e  o  sabor  he  das  azedas;  a  folha  he  como  hum  ferro  de 
lança,  grande  e  larguo,  e  de  hum  verde  muyto  aprazível; 
as  raizes  deste  arvore  entram  muito  dentro  na  terra,  pêra 
sustentar  o  arvore  quando  carrega,  porque  dá  muytas  vezes 
fruita  no  anno :  asi  da  fruita  como  da  frol  se  faz  conservas  (3) . 

SERVA 

Hum  homem  está  aly,  que  traz  requado  do  rendeiro  de 
Bombaim. 

ORTA 

Venha  qua. 

C\PITÃO 

Estas  cartas  me  deu  o  vosso  rendeiro,  e  este  cesto  de 
jamgomas. 


*  Comprehende-se  que  o  fructo  seja  oval,  mas  não  sei  bem  o  que 
Orta  quer  dizer  em  relação  á  arvore. 


26  Colóquio  vigésimo  oitavo 

ORTA 

As  cartas  lerei  despois;  a  fruita  provemos,  e  apertaia  pri- 
meiro entre  os  dedos,  porque  se  quer  asi. 

RUANO 

Sabe  bem,  e  parece  na  feiçam  como  sorva  pequena,  e 
no  sabor  como  ameixa;  he  no  sabor  estitiqua. 

ORTA 

Ha  muitas  nas  ortas  de  Baçaim  e  Chaul,  e  também  as 
vi  em  Batecalá;  o  arvore  delias  he  como  amexieira  e  asi 
na  folha;  enfloreçe  com  flores  brancas;  tem  mu3^tos  espinhos 
no  tronquo  ao  sobir,  a  modo  de  pinha.  Chamam-seyamg*o- 
mas,  e  pella  ma3'or  parte  naçem  no  campo:  também  se  dam 
trasplantadas;  e  homens  dinos  de  fé  me  dixeram  que  a  me- 
lhor maneira  de  semear  era  comendoas  huma  certa  ave,  e 
no  esterquo  delia  se  acha  a  simente,  a  qual  semeam,  mistu- 
rada com  este  esterco  (4);  e  naçe  e  dá  mais  asinha  fructo  (5). 


Nota  (1) 

A  jaqueira  — designação  applicada  á  arvore  pelos  portuguezes,  e 
derivada  do  nome  do  fructo —  é  o  bem  conhecido  Artocarpixs 
integ^i-ifolia,  Linn.,  Jack-tree  dos  inglezes,  da  grande  familia  das 
Urticacece.  Chamam-lhe  no  norte  da  índia  phanas  ou  panasa,  o  «panaz» 
de  Orta;  e  em  lingua  tamil  pila  ou  pala,  sendo,  porém,  o  nome  de  jaca, 
com  variadas  orthographias,  aquelle  que  todos  os  viajantes  da  Europa 
e  do  Occidente  adoptaram  sempre  de  preferencia. 

O  nosso  escriptor  está  longe  de  ser  o  primeiro  que  fallou  d'esta 
planta,  de  porte  muito  notável,  e  que  em  todos  os  tempos  attrahiu  a  at- 
tencão  dos  viajantes,  mesmo  d'aquelles  que  se  não  dedicavam  espe- 
cialmente ao  estudo  da  historia  natural.  Vimos  nas  notas  ao  Colóquio 
vigésimo  segundo,  como  sir  H.  Yule  pretendeu  identificar  a  pala  de  Plí- 
nio com  a  jaqueira.  Esta  opinião  — guardado  todo  o  respeito  devido 
áquelle  illustre  indianista —  levanta,  porém,  não  pequenas  objecções; 
e  eu  julgo  mais  segura  a  que  identifica  simplesmente  a  pala  de  Plí- 
nio com  a  bananeira.  Posto  de  lado  Plinio,  ficam-nos  muitos  viajantes 
da  Idade  media,  os  quaes  fallaram  da  jaqueira  de  modo  tão  claro,  que 


Da  Jaca 


27 


nos  não  podem  deixar  duvidas.  O  ingénuo  fr.  Jordão,  por  exemplo,  tem 
nas  suas  Mirabilia  a  seguinte  phrase :  . .  .  nam  sunt  qua'dam  arbores  quce 
fructus  fachint  valde  grossos,  qui  Chaqtii  vocantur,  et  sunt  friictus  tantce 
magmtudinis,  qiiod  unus  sufficiet  circiterpro  quinque personis,  phrase  que 
sem  duvida  alguma  se  applica  ájaca  q  jaqueira.  Ainda  mais  explicito  é  fr. 
João  de  MarignoUi;  descrevendo  as  arvores  do  paraiso  terrestre,  e  pa- 
recendo que,  em  tão  difficil  assumpto,  se  devia  limitar  a  algumas  vagas 
indicações,  dá-nos  no  emtanto  uma  descripção  exactíssima  e  correctís- 
sima da  Jaca,  a  que  chama  chakebaruhe.  Depois  de  fr.  João,  vários  via- 
jantes, como  Ibn-Batuta,Varthema  e  outros,  fallaram  áajaca,  e  da  ar- 
vore que  a  produz.  É  certo,  pois,  que  Garcia  da  Orta  nos  não  diz  nada 
de  novo,  dando-nos  no  emtanto  algumas  indicações  interessantes  e  exa- 
ctas (Cf.  Mirabilia  no  Recuei!  de  Voyages,  iv,  42;  Yule,  Cathay,  362; 
e  para  mais  indicações  o  interessante  artigo  de  Yule  e  Burnell,  no 
Gloss.  335). 

Nota  (2) 

Os  jambolões  de  Orta  são  o  fructo  da  Eug-enia  janiljo- 
lana,  Lam.,  uma  arvore  da  familia  das  Myrtacece,  bastante  com- 
mum  na  índia.  O  nome  hindustani  do  fructo  é  .^o^sa.  djamún;  e  em 
Bombaim  chamam-lhe  lamhtTnjámbúl,  pare^cendo  que  o  nome  dejam- 
bolão  — pelo  menos  na  sua  desinência —  seria  um  arranjo  portuguezi. 
Este  fructo,  que  comem  na  índia  apesar  de  muito  «pontico»,  tem  uma 
notável  semelhança  com  as  azeitonas,  semelhança  que  um  puro  alem- 
tejano,  como  era  o  nosso  escriptor,  não  podia  deixar  de  notar.  Dois 
séculos  antes,  um  viajante  também  *das  nossas  partes  do  Occidente 
e  da  Hespanha,  o  mouro  Ibn  Batuta,  tinha  do  mesmo  modo  comparado 
o  jdmún  com  a  azeitona. 

Nota  (3) 

O  jambo  é  o  fructo  de  uma  espécie  do  mesmo  género  Eugenia 
—posto  que  planta  e  fructo,  e  sobretudo  este,  sejam  no  gosto  e  no 
aspecto  muito  diversos—  a  Eug-enia  malaccensis,  Linn, 
Note-se  que  Orta  conhecia  a  sua  procedência  de  Malaca,  e  nos  indica 
que  a  introducção  d'esta  planta,  depois  vulgarissima  na  índia,  não  era 
então  muito  antiga. 

Nota  (4) 

As  jangomas  são  o  fructo  da  Elacourtia  catapln'a- 

cta,  Roxb.  fFlacourtia  jangomas,  Miq.,  Stigmarosa  jangomas,  Lou- 
reiro, Roíimea  jangomas,  Sprengel).  Esta  synonymia,  assim  como  a 


'  Se  não  é  simplesmente  o  nome  malayo  /j^*?")  djambelan. 


28  Colóquio  vigésimo  oitavo  da  Jaca 

descripção  de  Orta,  a  menção  dos  numerosos  espinhos  do  tronco,  o 
aspecto  do  fructo,  não  podem  deixar  duvida  sobre  a  identificação.  Ainda 
hoje  em  Bombaim  chamam  ao  ívuciojaggam,  o  que  Dymock  considera 
como  uma  corrupção  dejangoma.  Este  ultimo  nome,  que  era  vulgar  no 
tempo  de  Orta,  e  foi  adoptado  pelos  antigos  botânicos  que  descreve- 
ram a  planta,  devia  ser  — como  já  observámos  a  propósito  áosjambo- 
lões —  um  arranjo  portuguez,  especialmente  usado  nos  nossos  estabe- 
lecimentos da  costa,  onde,  nas  hortas  de  Chaul,  Baçaim  e  outros  pontos, 
'se  encontrava  com  frequência  a  planta  cultivada  (Cf.  Dymock,  Mat. 
med.,  74;  para  a  synonymia,  Hooker,  Fl.  of  British  índia). 


Nota  (5) 

Este  Colóquio  dá-nos  duas  indicações  valiosas  para  a  biographia  do 
nosso  escriptor.  Em  primeiro  logar  mostra-nos,  que  elle  habitava  em 
Goa  uma  casa  sua,  em  cuja  horta  fazia  plantações  de  arvores,  com  a 
segurança  de  um  proprietário,  ou  pelo  menos  de  um  arrendatário  a 
longo  praso;  e  em  segundo  diz-nos  que  elle  tinha  arrendado  da  sua 
mão  — como  foreiro  que  era —  a  ilha  de  Bombaim.  De  um  e  outro 
ponto,  e  particularmente  do  ultimo,  tratei  já  com  certa  largueza  na 
Vida  de  Garcia  da  Orta. 


COLÓQUIO  VIGÉSIMO  NONO 

DO  LACRE 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RUANO 

Aguora  cae  a  vez  do  lacre  que  tanto  se  gasta  nesta  terra 
em  serrar  cartas  e  pôr  outros  sêllos,  em  lugar  de  cera. 

ORTA 

Antes  a  cera  se  gasta  por  falta  do  lacre;  porque  o  lacre 
he  mau  de  despegar,  e  não  se  tira  o  sêllo  senão  quebrando. 
Chamase  lacre  o  que  nos  livros  de  botica  chamamos  laca; 
em  arábio  e  pérsio  e  turquesco  locsiimiitri ,  casi  lacre  de 
Çamatra;  e  nam  porque  Çamatra  confine  com  Pegú,  onde 
o^  ha,  senam  porque  vinha  dessas  partes,  cuidaram  os  Ará- 
bios e  outras  nações  que  era  delia,  e  por  isso  lhe  puseram 
o  tal  nome;  em  Bengala  e  no  Balagate  e  no  Malavar,  onde 
o  ha,  também  lhe  chamam  asi,  porque  aprenderam  dos 
Mouros,  mas  na  lingua  da  propia  terra  he  lac;  e  em  Pegú 
e  Martabam,  donde  he  o  milhor,  chamamlhe  trec;  e  alli 
dizem  alguns  que  vem  de  Jamay,  e  daly  vem  também  o 
almiscre;  e  levam  os  Martavanes  e  Pegús  a  vender  esta  fa- 
zenda a  Çamatra;  e  por  isso  lhe  chamaram  os  Arábios  loc- 
sumiitri;  e  os  Pegús  traziam  em  retorno  pêra  sua  terra  pi- 
menta. 

RUANO 

Dizei  que  cousa  he,  e  como  se  faz,  e  em  que  se  cria,  por- 
que des  que  dixerdes  a  verdade  que  sabeis,  virei  com  meu 
contraponto,  e  dirvosei  o  que  acho  escrito  nos  livros  anti- 
guos  e  modernos. 

ORTA 

Muyto  tempo  fui  emganado;  porque  diziam  que  em  Pegú 
saiam  os  rios  da  madre,  e  que  na  lama  que  ficava  punham 


3o  Colóquio  vigésimo  nono 

paos  pequenos,  e  que  ali  se  criavam  humas  formiguas  mu3^to 
grandes,  com  asas,  que  avoavam  e  punham  o  lacre  muito 
nos  paos;  e  que  por  isso  avia  lacre  muito  nos  paos  metido. 
E  eu  perguntava  isto  a  estes  homens,  se  o  viram  com  seus 
olhos;  e  porque  lá  se  ganhava  mais  em  comprar  robis,  e  ven- 
der roupa  de  Paleam  e  de  Bengala,  diziamme  que  não  esta- 
vam lá  tam  ociosos  como  isso;  mas  que  ouviram  aquillo,  e 
que  era  a  fama  comua :  até  que  falou  comiguo  hum  homem 
bem  criado  que  lá  estivera,  e  era  curioso,  e  me  dixe  que  era 
hum  arvore  grande  em  cantidade,  com  folhas  que  pareciam 
de  amexueira,  e  que  lavravam  nos  ramos  pequenos  daquelle 
arvore  este  lacre  as  formigas  grandes,  criadas  na  vasa  e  em 
outras  partes;  e  que  tiravam  deste  arvore,  como  de  causa 
material,  esta  guoma,  lavrando  no  pao  como  a  abelha  faz 
no  mel;  e  que  esta  era  a  verdade.  E  que  depois  tiravão  os 
ramos  daquele  arvore  em  pedaços,  e  os  punhão  a  secar  á 
sombra,  até  que  despediam  o  pao,  e  ficava  em  canudos,  e 
em  alguns  delles  ficava  o  pao  metido  dentro;  e  quanto  me- 
nos pao  tem  deste  se  ha  por  melhor,  porque  dizem  loguo, 
tem  muyto  pao  este  lacre,  ou  tem  pouco.  E  mais  me  dizia 
que  algum  era  muyto  cujo,  e  punhamno  a  derreter,  e  que 
fazião  pó,  e  que  este  era  o  somenos,  por  ser  mesturado  com 
terra;  e  despois  mandei  saber  a  Pegú  isto,  e  achei  ser  muita 
verdade.  E  andando  eu  no  Balagate,  onde  ha  algum,  e  o 
ajuntam  pêra  o  trazerem  a  vender  aos  portos  do  mar,  que 
vem  da  terra  do  Cotamaluco,  me  dixeram  o  mesmo;  e  aqui 
em  Goa  me  trouxe  hum  moço  hum  ramo  delle  tirado  de 
huma  arvore  que  chamamos  maçeira,  e  os  Decanins  ber, 
de  que  acima  faley  já,  e  aqui  está  nesta  orta,  e  por  meus 
olhos  o  vi;  e  porque  este  he  pouco  lacre  não  fazem  conta 
delle,  que  não  será  a  terra  disposta  pêra  o  gerar.  E  muytos 
me  dixeram  que  o  viram  nas  maçeiras,  e  que  as  formigas 
o  geravam  nellas;  e  he  claro  ser  isto  verdade,  porque  muytas 
vezes  vem  as  asas  das  formigas  mesturadas  no  lacre.  E  este 
lacre  de  que  falamos,  quando  he  mastiguado,  tinge  de  fino 
roxo,  e  asi  o  provam  e  delle  fazem  estes  paos  que  vedes 
pêra  cerrar,  e  os  tingem,  e  acrescentamlhe  a  cor  neçesaria 


Do  Lacre  3i 

de  que  querem  os  paos,  scilicet,  a  tinta  que  faz  a  tal  cor; 
e  destes  paos  ou  de  pastas  larguas  tingem  os  carpinteiros 
ou  torneiros  ao  torno  os  paos  que  querem,  trazendo  o  lacre 
pollo  pao  ao  torno;  e  com  este  lacre  enchem  a  prata  e  o 
ouro,  que  he  vazio,  para  fazer  suas  obras  maiores.  E  por- 
tanto sabei  que  não  he  o  arvore  similhante  á  murta,  nem 
na  folha  nem  na  grandura;  senão  he  ás  vezes  tamanho  como 
uma  nogueira,  e  ás  vezes  mais  pequeno;  nem  se  chama  aec, 
como  lhe  chamava  o  Pandetario,  nem  ancusal,  que  sam  no- 
mes corrutos  (i). 

RUANO 

Aviçena*  lhe  chama  luc**,  na  traduçam  emendada  pello 
Belunense,  e  alegua  a  Paulo,  que  diz  que  o  arvore  delle  he 
semelhante  ao  arvore  da  mirra,  e  que  he  bom  cheiro,  e  mais 
que  he  neçesario  que  se  administre  com  cautela,  e  que  ou- 
tros erraram  e  dixeram  que  era  como  carabe,  e  que  a  ver- 
dade he  que  tem  a  virtude  do  carabe  em  muitas  cousas: 
que  sentis  disto? 

ORTA 

Que  Aviçena  não  conheceo  o  lacre,  senão  falou  congeitu- 
rando;  e  pôde  ser  que  o  não  vio  em  pao;  e  ao  que  diz  que 
o  arvore  he  similhante  ao  da  mirra,  por  isto  juraria  eu  que 
Aviçena  não  vio  arvore  delle.  E  eu  também  não  conheço 
o  da  ynirra,  pêra  confutar  seus  ditos;  mas  sey  que  a  goma 
do  lacre  he  feita  per  cima  dos  paos  forrandoos,  e  a  outra 
he  estilandose  do  arvore;  e  a  mirra  tem  cheiro,  e  o  lacre 
não  o  tem,  posto  que  Aviçena  diz  que  o  tem.  E  chamárse 
luc  por  o  Belunense,  pode  ser  que  asi  o  achou  escrito  nos 
originaes  antigos;  porém  aguora  os  Arábios  todos  o  chamam 
locsumiííri;  e  em  reprender  aos  que  dizem  que  é  carabe. 


*  Aviçena,  Livr.  2,  482  (nota  do  auctor). 

•*  Esta  passagem  é  uma  das  que  mereceram  mais  severa  correcção 
da  parte  de  Scaligero,  o  qual,  notando  que  '>jju  tanto  se  pôde  ler 
loc  como  luc,  acrescenta :  quare  cum  Garcias  ubique  Arabismi  se  peri- 
tum  habere  vult,  satis  prodit  se  ne  legere  quidem  scivisse. 


32  Colóquio  vigésimo  nono 

bem  fez  Aviçena;  mas  errou  em  dizer  que  tem  as  proprie- 
dades do  carabe,  que  isto  he  falso,  porque  o  carabe  he  con- 
glutinativo  e  estitico,  e  o  lacre  aperitivo;  e  por  ser  muyto 
aperitivo  diz  Aviçena  que  se  ha  de  administrar  com  cautela; 
e  asi  como  vós  melhor  sabeis,  primeiro  usamos  de  cousas 
aperitivas,  menos  que  usemos  delle;  senão  o  que  sinto  de 
Aviçena  he,  que  creo  elle  que  o  lacre  era  o  cancamo*  de 
Dioscorides;  porque  Paulo  parece  que  fala  por  a  sua  boca; 
e  craramente  consta  ser  falso;  porque  o  nosso  lacre  carece 
de  cheiro,  e  o  cancamo  he  cheiroso  e  auto  pêra  perfumes; 
e  outra  cousa  diz  Aviçena  dina  de  reprensam,  que  faltando 
o  lacre  se  ponha  em  seu  logar  sangue  de  drago,  que  também 
he  mezinha  estitica. 

RUANO 

Porque  lhe  chamam  locswmitri?  Ha  o  por  ventura  em 
Camatra? 

ORTA 

Não,  senam,  como  vos  já  dixe,  ha  o  em  Jamay,  e  dahi  o 
levavam  a  Camatra;  e  de  lá  trazião  em  voXovno  pimenta: 
mas  agora  este  caminho  não  he  tam  usado,  porque  o  lacre 
não  o  vendem  senão  Pegús  aos  Portuguezes,  e  nós  o  ven- 
demos aos  Arábios  e  Pérsios  e  Turcos ;  e  o  levamos  a  Por- 
tugal, onde  se  gasta  pêra  Africa  e  outros  cabos;  por  onde 
agora  não  ha  rezam  de  lhe  chamar  locswmitri,  como  ante, 
que  os  Chins  que  o  levavam  a  Ormuz  e  a  esoutras  terras 
não  cuidavam  que  era  senão  de  Camatra,  e  por  de  Camatra 
o  vendiam;  mas  em  Camatra  não  o  ha;  e  se  ha  algum  he 
tão  pouquo  que  não  sae  da  terra;  mas  até  o  presente  não 
soube  senão  que  o  não  avia  lá. 


*  A  palavra  cancamo  vem  escripta  na  edição  de  Goa  com  variadas 
orthographias,  cuhamo,  cauchomo,  cauchamo,  que  em  parte  são  erros 
de  imprensa,  e  reduzimos  á  mais  geralmente  usada.  A  forma  preferida 
por  Orta  é  evidentemente  cauchamo,  o  que  seria  uma  incorrecta  tran- 
scripção  do  grego  /.5t7)ta{i.5v,  ou  do  latino  cancamum,  como  escrevem 
Dioscorides  e  Plinio. 


Do  Lacre  33 

RUANO   . 

Ora  já  examinamos  Avicena,  examinemos  a  Serapiáo*, 
que  diz  sac,  scilicet,  laca,  e  alega  a  Dioscorides,  por  tra- 
duçam  do  Abtabharic,  que  diz  que  he  goma  que  naçe  na 
Arábia,  similhante  ao  arvore  da  mirra;  e  alega  a  Rasis,  que 
diz  que  cae  do  ceo  sobre  os  ramos  da  giibera,  e  alega  Isac 
e  diz  que  he  cousa  vermelha,  que  cae  sobre  os  paos  su- 
tis,  e  que  tingem  com  elles  os  panos;  e  também  diz  que  o 
trazem  da  Arménia,  terra  bem  sabida  na  índia;  por  onde 
me  direis  a  verdade  de  tudo  isto. 

ORTA 

Sac  he  nome  corruto;  e  o  lacre  de  Dioscorides  não  es- 
creveo  Dioscorides  delle,  nem  Serapiam  o  conheceo;  porque 
elle  cuidou  que  era  o  cancamo  de  Dioscorides,  e  diz  ser  si- 
milhante á  mirra  e  ao  estoraque:  bem  vedes  que  este  la- 
cre não  cheira  cousa  alguma;  e  onde  alega  o  Galeno  por  a 
traduçam  do  Abathabarich**,  alguns  presumem  ser  Paulo***, 
porque  falia  da  mesma  maneira;  e  nem  Serapio  nem  Paulo, 
com  seu  perdam,  dizem  verdade,  nem  ainda  que  o  dixera 
Galeno,  não  lhe  déramos  fé;  pois  diz  que  he  goma  de  hum 
arvore  que  naçe  na  Arábia,  similhante  a  jnirra;  e  se  este 
lacre  não  o  ha  em  Arábia,  pois  he  mercadoria  pêra  lá,  le- 
vada de  cá  da  índia,  pêra  que  he  dar  fé  a  taes  ditos?  Tam- 
bém alega  a  Rasis  que  diz  que  cae  do  çeo  sobre  os  ramos 


*  Lib.  2,  cap.  432  (nota  do  auctor).  Isto  é  evidentemente  um  erro; 
Orta  repete  a  citação  do  logar  de  Avicenna,  querendo  citar  o  cap.  181 
de  Serapio. 

**  O  nome  vem  escripto  acima  com  uma  orthographia  um  tanto  di- 
versa. Deve  dizer-se,  que  não  foi  só  o  nosso  escriptor  quem  o  alterou; 
na  versão  latina  de  Serapio  (edição  de  Brunfels,  i53i)  encontram-se 
as  formas  Athabarich,  Albatarich,  Atabari,  que  julgo  se  devem  applicar 
todas  ao  mesmo  escriptor  arábico,  traductor  de  Galeno. 

***  Ser  Paulo  e  não  Galeno,  é  o  que  Orta  quer  dizer;  a  versão  de 
Clusius  n'este  ponto  não  é  exacta. 

3 


34  Colóquio  vigésimo  nono 

da  gubera,  e  he  falso,  porque  guhera  no  arábio  quer  dizer 
sorva,  e  não  ha  sorva  em  toda  a  índia;  e  ao  Nizamoxa 
lhas  trazem  da  Pérsia  e  do  Coraçone,  e  eu  as  vi  em  sua  caza. 

RUANO 

Oulhai  se  por  ventura  he  nespra;  porque  outros  livros  di- 
zem sobre  os  ramos  da  nespereira. 

ORTA 

Está  mal  treladado;  porque  gubera  he  soj^va,  e  aniurut 
he  nespra;  quanto  mais  que  nem  huma  nem  outra  ha  em 
toda  a  índia;  e  ao  que  diz  que  se  traz  da  Arménia  he  falso, 
porque  na  Arménia  não  o  ha  também. 

RUANO 

Dizem  os  Frades  italianos  que  escreverão  sobre  Mesue, 
que  não  vio  homem  algum  o  verdadeiro  lacre  em  nossas 
partes;  e  que  nam  he  de  crer  que  a  natureza  faltase  aguora 
nelle;  ainda  que  muitos  cream  ser  o  cancamo  de  Dioscori- 
des,  porque  a  descriçam  delle  por  Paulo  e  Dioscorides  lhe 
convém;  mas  este  cancamo  não  o  vio  pesoa  alguma;  posto 
que  alguns  dizem  ser  o  que  chamamos  benjoim;  e  que  pois  o 
não  conhecemos,  per  conselho  de  muitos  bons  físicos  se  pôde 
pôr  sangue  de  drago. 

ORTA 

A  mim  me  parece  bem  o  que  dizem  os  Frades  em  dizer 
que  a  natureza  não  avia  de  faltar  neste  simples;  e  dizem 
nisto  bem,  porque  as  terras  sam  mais  sabidas,  e  o  uso  das 
mezinhas  he  mais  conhecido;  mas  em  dizer  que  o  não  ha, 
dizem  mal,  e  milhor  diriam  em  dizer  que  o  ha;  pois  o  trazem 
da  índia  cada  dia  e  o  usam  por  lacre  todos  os  Mouros  e 
Gentios.  E  porém  fora  muito  milhor  dito  que  o  não  conhe- 
ceram Serapio  nem  Avicena,  ou  quem  treladou  os  sinais  de 
Paulo  e  Dioscorides  no  cancamo  de  que  carecemos;  mas 
que  he  este  que  usamos,  e  que  o  cancamo  não  sabemos 
delle,  pois  não  he  benjoim;  e  isto  he  noto,  pois  não  o  ha  na 
Arábia,  como  vos  já  dixe,  falando  do  benjoim;  e  que  se  po- 


Do  Lacre  35 

nha  no  seu  logar  sangue  de  drago,  já  reprovei  isso  acima; 
por  onde,  levandovos  Deos  a  Espanha,  usai  lá  do  lacre  com 
muyta  ousadia;  porque  cá  os  físicos  mouros  letrados  no  Ba- 
legate  usam  de  dialaca,  a  que  chamam  dallaca;  e  ai  he  ar- 
ticulo do  genitivo,  e  asi  o  diatiirbit  chamam  daltiirbit,  que 
he  composição  de  tiirbit;  e  asi  chamão  todos  os  mais  das 
composições,  onde  nós  pomos  dia,  pÕe  elles  dal.  E  vós  que 
sois  bom  grego,  sabeis  se  he  bem  dito  dia,  porque  eu  já 
ouvi  dizer  que  não  he  bom  grego;  e  nisto  não  fallo  mais, 
por  não  meter  a  mão  em  a  fazenda  alhea. 

RUANO 

Isso  derradeiro  vos  diguo  que  me  parece  bem,  mas  nam 
posso  julgar  nisso  porque  não  sam  bom  grego;  e  Ruelio, 
escritor  douto  e  curioso,  se  acha  nisto  duvidoso. 

ORTA 

Tem  rezão;  mas  vós,  se  lhe  falareis,  o  tirareis  de  duvida. 

RUANO 

Bem  será  que  vos  diga  o  que  sinto  neste  caso,  não  obstante 
quanto  dixestes;  e  he  que  não  ha  verdadeiro  lacre;  por- 
que, se  os  Gregos  o  conheceram,  he  por  cancamo;  e  se 
o  não  conheceram,  he  o  de  Avicena  e  Serapio:  e  asi  hum 
como  outro  não  tem  cheiro  nem  aproveita  pêra  profumar  as 
vistiduras;  e  misturado  com  mirra  e  estoraque  não  acresenta 
e  causa  cheiro,  antes  o  diminue.  E  asi  concluo  que  não 
temos  o  lacre,  nem  o  cancamo. 

ORTA 

Vós  o  dizeis  e  o  desdizeis;  porque  dixestes  primeiro  que 
a  natureza  não  avia  de  ser  defeituosa  em  estas  mezinhas 
tam  celebradas  dos  Gregos  e  Arábios,  e  aguora  dizeis  que 
carecemos  delias. 

RUANO 

Assi  o  torno  a  dizer,  até  que  me  deis  rezão  por  onde 
mude  o  propósito. 


36  Colóquio  vigésimo  nono 

ORTA 

Não  he  menos  inconveniente  nam  conhecer  Serapio  nem 
Avicena  o  lacre,  e  errar  em  dizer  que  falece*  natureza; 
pois  sabeis  que  o  lacre  he  este  que  vedes  hir  da  índia  a  Por- 
tugal; e  por  tal  o  tem  todas  estas  regiões,  e  Ásia,  e  Africa, 
e  muita  parte  da  Europa ;  e  o  que  mais  he  chamarse  asi  acerca 
dos  índios;  e  por  vós  nam  terdes  que  o  he,  nem  os  Frades, 
nem  outros,  não  se  mudam  as  cousas  do  que  sam**.  E  diguo, 
como  já  dixe,  que  Serapio  se  emganou,  crendo  ser  o  cancamo 
de  Paulo  e  de  Dioscorides;  e  Avicena  mu3'to  mais  se  emga- 
nou, pois  dixe  as  cousas  do  cancamo,  e  fez  capitulo  de  chei- 
chem***  como  se  fossem  duas  cousas;  e  o  que  dixe  do  outro, 
como  se  foram  duas  mezinhas:  ora  pois  quem  tam  crara- 
mente  errou,  não  he  muyto  errar  em  não  conhecer  o  lacre. 

RUANO 

Bem  me  persuadis  nisso;  mas  o  cancamo,  como  carece- 
mos delle? 

ORTA 

Menos  mal  he  carecermos  de  hum  simple,  que  de  dous; 
e  porém  eu  vos  direi  qual  he  o  cancamo,  segundo  meu  pa- 
recer, posto  que  pêra  concluir  isto  não  tenha  rezÕes  eviden- 
tes; mas  quem  me  der  outras  milhores  estou  aparelhado  pêra 
aprovar  o  contrario. 


*  Parece  faltar  a  palavra  «na». 

**  Arip.  I,  Periarmemas  (nota  do  auctor);  nota  cheia  de  erros  de  im- 
prensa, e  que  se  deve  ler,  creio  eu,  Arist.  i,  Peri  Hermenias.  No  tratado 
de  Aristóteles,  intitulado  em  algumas  versões  latinas  antigas  Peri  Her- 
menias sivc  de  interpretatione,  vem  no  livro  i.  cap.  2,  De  nomine,  varias 
phrases,  que  Orta  podia  citar  em  apoio  do  seu  dito,  de  que  os  nomes 
não  influem  na  natureza  das  cousas. 

*»*  Por  outra  keiken  ou  keikhem,  de  que  Avicenna  falia  no  cap.  Sgi; 
e  que  é  a  mesma  substancia  de  que  volta  a  tratar  no  cap.  432.  Este 
nome  keikhem,  lido  como  quer  Sprengel  jL^;:Í,  kankeham  ou  melhor 

qanqeharn,  deve  ser  a  transcripção  arábica  de  xá-jxajAov. 


Do  Lacre  3 7 

RUANO 

Pareceme  que  quereis  dizer  que  he  benjoim,  e  isso  não 
me  quadra,  porque  benjoim  nam  o  ha  na  Arábia,  como  já 
discotimos. 

ORTA 

Nem  isso  diguo,  senão  que  he  anime;  porque  he  bom  pêra 
cheiro  e  em  perfumes  usado.  E  vem  a  Portugal  de  Etiópia, 
terra  confim  á  Arábia. 

RUANO 

Certamente  que  me  contenta  isto ;  mas  alguns  dizem  que 
o  anime  he  uma  especia  de  carabe? 

ORTA 

Isso  me  ajuda  mais,  porque,  segundo  alguns,  o  cancamo 
he  espécie,  e  Avicena,  reprendendo  estes,  diz  que  não  he 
carabe,  mas  que  he  na  virtude  como  elle;  mas  cá  não  o  ha, 
scilicet,  o  anime. 

RU.VNO 

Hum  coronista  das  índias  de  Castella  diz  que  ha  anime 
em  Çirvamlha,  perto  de  Maluco,  e  que  o  ha  em  as  terras 
do  Brasil. 

ORTA 

Os  Castelhanos,  se  me  derdes  licença,  sam  gente  que 
acresenta  muyto;  e  porém  não  diz  verdade,  porque  o  que 
diz  he  hum  certo  breu  pêra  calefetar  os  navios,  do  qual  vem 
muyto  cá,  por  o  aver  em  Çamatra,  e  em  muitas  partes;  mas 
não  tem  o  cheiro  do  cancamo,  nem  cheira  senão  como  qual- 
quer goma  outra;  e  per  esta  maneira  tendes  lacre,  e  tendes 
cancamo,  até  que  achais  outra  mezinha  a  que  mais  verda- 
deiramente convenhão  os  sinaes  delia  (2). 

RUANO 

Deos  seja  louvado,  eu  sam  satisfeito  do  cancamo  e  lacre, 
e  por  aguora  me  parece  bem;  mas  pois  na  terra  onde*  esta 
goma  principalmente  se  chama  trec,  donde  veo  a  lhe  chamar 
lac,  ou  loc  ou  luc? 


*  Deve  faltar  o  verbo  «ha». 


38  Colóquio  vigésimo  nono 

ORTA 

Falais  como  que  esse  error  não  seja  muyto  comum  ás 
pesoas,  porque  essa  foi  causa  de  muitos  errores:  se  ao  es- 
podio  que  aguora  chamamos,  chamaram  tabaxir,  como  se 
chama  onde  naçe,  como  ao  diante  vos  direi,  nam  ouvera 
tantos  erros,  nem  tantas  contendas  entre  os  Arábios  e  La- 
tinos e  Gregos;  porque  as  mezinhas  não  conhecidas  ande 
ter  o  nome  que  tinham  no  seu  naçimento;  mas  esta  goma 
vendoa,  e  tendo  neçesidade  delia  pêra  tingir  e  curar,  porque, 
deretida,  ficava  basta  como  loc  (que  he  hum  ponto  alto  mais 
que  xarope)  chamaram  entam  a  esta  guoma  luc;  e  asi  lhe 
ficou  o  nome  dos  Arábios,  que  desta  terra  a  levavam,  ou 
lá  a  compravam  aos  Chins.  E  depois  de  a  pedirem,  ha  mu3to, 
cá  por  este  nome  lac,  ficou  também  em  uso  ás  gentes  Índias 
de  a  chamar  asi;  e  isto  que  vos  digo  he  mujto  verisimile, 
€  sem  duvida  passou  asi  (3). 

RUANO 

Afirmailo  tanto,  que  já  não  posso  negarvolo;  e  em  espe- 
cial pois  dais  razões  tam  verisimiles.  E  aguora  vos  quero 
perguntar  huma  pergunta  de  mercadoria;  e  he  que  traz  meu 
cunhado  licença  pêra  poder  levar  loo  quintaes  de  lac?'e  pêra 
Portugal  ou  pêra  Ormuz,  e  parece-me  que  o  levará  pêra 
Portugal;  porque  lhe  dizem  que  vai  aguora  quatro  vezes 
menos,  do  que  valia  quando  elle  cá  andou. 

ORTA 

Eu  volo  direi:  tinhao  os  capitães  de  Ormuz  trato  e  fei- 
toria em  Bácora,  cidade  de  Mesopotâmia,  a  que  vinham  com- 
prar os  de  Alepo  mercadorias;  e  vendendose  seo  lacre  muito 
bem  primeiro,  o  tornou  a  trazer  o  feitor  do  capitão  de  Or- 
muz, que  tinha  sem  o  vender,  nem  avendo  esperança  disso; 
e  quando  elle  vio  isto,  sem  síiber  a  causa,  lhe  dixe  hum 
mercador  muyto  grande  de  Alepo,  que  elle  lhe  daria  a  re- 
zam disso,  dizendo  desta  maneira — havia  hum  tintureiro 
muyto  rico  em  Alepo,  e  foy  mixiricado  ao  guovernador  (a  que 
elies  chamam  baxáj  dizendo  que  aquelle  muito  dinheiro  que 


Do  Lacre  89 

tinha  pertencia  a  elrey,  e  dando  busca  na  sua  casa  acha- 
ram que  tinha  100  mil  venezeanos,  e  dixelhe  o  guovernador: 
tu  es  tintureiro  e  hum  tintureiro  riquo  não  pôde  ter  mais 
que  mil  venezeanos  e  pois  como  tens  tu  100  mil  venezeanos? 
E  asi  lhos  tomou  todos;  e  porque  contra  os  reis  mouros 
não  se  acha  justiça,  fez  este  homem  queixume  ao  gram  rey 
dos  Turcos,  e  per  concerto  lhe  descubrio  huns  montes  na 
sua  terra,  cheos  de  tinta,  ou  de  arvores  ou  matas  que  a 
dam,  os  quais  sam  milhor  tinta  que  o  lacre,  e  escusam 
este  lacre,  e  não  he  neçesario  nas  suas  terras;  e  estas  terras 
que  a  dam  rendem  ao  Gram  Turco  mais  de  100  mil  cruzados 
cada  anno;  e  por  o  serviço  que  fez  ao  Gram  Turco,  lhe  deu 
o  seu  dinheiro  todo,  e  lhe  deu  grandes  liberdades  outras; 
e  por  esta  causa  ora  se  não  gasta  em  Ormuz  senam  muito 
pouquo  lacre  pêra  a  Pérsia,  com  que  trazem  as  alcatifas; 
e  pêra  a  Turquia  e  Arábia  e  outras  partes  não  levam  cousa 
alguma  delle. 

RUANO 

E  que  tinta  he  esa?  olhai  não  seja  grãa,  porque  também 
gi^ãa  ha  em  Espanha,  e  em  outras  partes. 

ORTA       • 

Isso  nam  soube  até  aguora,  e  porém  podeo  ser;  mas  o 
que  vos  dixe,  sey  que  pasa  asi.  Huma  cousa  vos  peço,  por 
merçe,  que  levandovos  Deos  a  Espanha,  nam  consentais 
que  deitem,  por  lacre,  sangue  de  drago  na  confeiçam  da 
laca,  nem  creais  que  laca  seja  o  que  chamam  os  Arábios 
quermes,  porque  hum  he  guoma,  e  outro  he  semente,  da 
qual  ha  muita  em  Espanha  (4). 


Nota  (1) 


Toda  esta  pagina,  na  qual  se  concentra  o  interesse  particular  do  Co- 
lóquio, porque  o  resto  é  uma  discussão  muito  confusa  e  bastante  ociosa 
de  textos  e  opiniões  antigas,  toda  esta  pagina  é  extremamente  curiosa 
e  notavelmente  bem  deduzida. 


4o  Colóquio  vigésimo  nono 

Em  primeiro  logar,  Orta  reconhece  que  a  lacca  é  uma  producção 
animal,  «lavrada»  nos  ramos  pequenos  de  uma  arvore  por  um  insecto. 
Somente  engana-se  quanto  á  natureza  do  insecto,  suppondo  ser  uma 
formiga  grande.  É  de  notar,  que  esta  falsa  opinião,  communicada  por 
"hum  homem  bem  creado»,  o  qual  estivera  em  Pegu,  esta  opinião  era 
a  que  vogava  n'aquella  região.  No  seu  livro  sobre  o  Burmá,  o  dr.  Ma- 
son  diz :  the  Karens  think  that  ihe  lac  is  produced  by  an  ant,  and  call 
it  the  lac  ant.  Portanto,  Orta  unicamente  repetia  o  que  tinham  dito  ao 
seu  informador  na  própria  região  productora.  A  verdade  era,  porém, 
que  o  insecto  gerador  da  lacca  é  um  hemiptero,  da  familia  dos  Coc- 
cidcp  e  do  género  Coccus,  o  Coccus  lacca.  N'este  género  e  es- 
pécie, o  macho,  munido  de  azas,  voa  livremente,  emquanto  a  fêmea 
_fica  toda  a  sua  existência  fixada  ao  ramo  e  é  a  verdadeira  geradora 
da  lacca.  E  possível  que  as  azas,  observadas  por  Orta  na  lacca,  fossem 
as  do  insecto  macho,  assim  como  é  possível  que  fossem  azas  de  ver- 
dadeiras formigas,  pegadas  casualmente  áquella  substancia,  emquanto 
se  achava  pastosa. 

Ao  mesmo  tempo,  porém,  que  Orta  reconhecia  ser  a  lacca  uma  pro- 
ducção animal,  reconhecia  não  ser  uma  producção  puramente  animal, 
e  notava  acertadamente  que  se  não  podia  formar  sobre  os  troncos  sec- 
cos.  Era  uma  substancia  «lavrada»  pelo  insecto  á  custa  da  planta  viva 
sobre  a  qual  se  fixava.  A  sua  phrase  é  muito  curiosa :  . . .  «tiravam  deste 
arvore,  como  de  causa  material,  esta  guoma,  lavrando  no  pao  como 
a  abelha  faz  no  mel».  Esta  phrase  mostra  uma  comprehensão  per- 
feita da  natureza  d'estas  substancias,  semi-animaes  e  semi-vegetaes, 
que,  como  a  lacca,  o  kermes,  a  cochenilha,  algumas  variedades  de 
manná,  são  o  producto  de  uma  espécie  de  collaboração  do  insecto 
com  a  planta.  Para  sermos  justos,  devemos  notar,  que  outro  portuguez 
muito  menos  instruído  do  que  Orta,  Duarte  Barbosa,  teve  a  mesma  com- 
prehensão da  natureza  da  lacca,  e  diz:  .  ..«este  laquar,  algílus  dizem 
que  he  goma  darvore,  e  outros  que  se  cria  nos  ramos  delguados  das 
arvores,  como  em  nossas  partes  se  cria  grãa  nos  carascos;  e  esta  ra- 
zam  parece  muyto  mais  natural,  porque  asy  vem  elle  em  arvores  e  va- 
ras delguadas,  que  por  rezam  não  podem  lançar  tanta  goma».  Como 
se  vê,  Duarte  Barbosa  notou  bem  a  aflfinidade  existente  entre  a  lacca 
e  a  ffrãa  dos  carrascos,  ou  kermes,  que  de  feito  é  produzida  por  uma 
espécie  do  mesmo  género  Coccus. 

Voltando,  porém,  ás  investigações  de  Orta,  vemos  que  elle  obteve 
apenas  algumas  informações,  necessariamente  vagas,  acerca  das  arvo- 
res de  Pegu;  mas  conseguiu  ver  na  índia  a  lacca,  formada  sobre  um 
ramo  de  maceira  ou  ber,  isto  é,  de  Zi^yphus  jujuba.  Averiguou,  assim, 
a  natureza  botânica  de  uma  das  plantas  sobre  as  quaes  com  mais  fre- 
quência se  cria  a  lacca.  O  sr.  W.  Theobald,  fallando  das  terras  de 
Burmá,  diz  que  a  lacca  se  forma  ali  sobre  o  Ficus  religiosa  e  outras 


Do  Lacre  41 

espécies  do  mesmo  género,  sobre  a  Biitea  frondosa,  sobre  o  Zi^yphus 
jujuba  e  outras  plantas;  e,  referindo-se  á  índia,  W.  Ainslie  menciona 
diversas  arvores  em  que  o  insecto  se  pôde  fixar,  mas  muito  particular- 
mente o  Zijyphus  jujuba,  dizendo  mesmo  que  esta  planta  se  cultiva 
com  frequência  para  aquelle  fim.  Como  se  vê,  a  observação  de  Orta 
está  perfeitamente  confirmada. 

Orta  tinha  também  conhecimento  dos  estados  em  que  a  lacca  se 
encontrava  no  commercio,  fallando-nos  da  que  vinha  «em  canudos»; 
e  da  que  havia  sofFrido  uma  certa  preparação,  pondo-a  «a  derreter».  A 
mesma  distincção  se  faz  no  Lyvro  dos  pesos,  onde  se  diz  que  o  lacre  de 
canudo  podia  valer  em  Ormuz  uma  certa  somma,  emquanto  o  de  pão  va- 
lia uma  terça  parte  menos,  sendo  emxuto.  A  primeira  forma  era  a  lacca 
bruta,  ou  crude  lac  dos  inglezes,  consistindo  na  accumulação  das  cellu- 
las  resinosas,  que  encerram  as  fêmeas  do  Coccus;  e  da  qual,  tratada  pela 
-agua,  se  obtém  a  substancia  corante,  chamada  lac  dye.  A  segunda  sorte 
devia  ser  análoga  á  que  hoje  se  prepara  pela  fusão  e  passagem  a  tra- 
vés de  um  tecido,  tendo  no  commercio  o  nome  de  shell  lac. 

Finalmente,  Orta  sabia  que  se  encontrava  alguma  lacca  na  índia» 
mas  em  pequena  quantidade,  e  que  esta  mercadoria  vinha  sobretudo 
de  Pegu  e  outros  portos  da  costa  occidental  da  Indo-China.  Isto  era 
exacto,  e  acha-se  confirmado  por  todos  os  documentos  da  epocha.  El-rei 
D.  Manuel,  no  seu  empenho  e  sofreguidão  de  obter  as  ricas  substancias 
do  Oriente,  mandava  pedir  ao  primeiro  vice-rei  D.  Francisco  de  Almeida, 
que  lhe  enviasse  abundância  de  lacre,  e  este  respondia-lhe  na  sua  ce- 
lebre carta,  transcripta  por  Gaspar  Corrêa: 

«O  lacre  que  Vossa  Alteza  diz,  que  lhe  mande,  será  maravilha  averse, 
porque  estas  nãos  partem  cedo,  e  as  nãos  que  o  trazem  de  Pegu  e  Mar- 
tabão  vem  tarde :  espero  por  boa  somma  d'elle,  porque  o  tenho  man- 
dado trazer.» 

Alguns  annos  depois,  Diogo  Lopes  de  Sequeira,  desejando  obter, 
«todo  o  álacre  que  pudesse»,  e  sabendo  que  vinha  muito  «á  costa  de 
Choromandel  polas  nãos  de  Pegu  e  Martabão»,  enviou  lá  um  floren- 
tino, «hum  frolentim  chamado  Pêro  Escroco»,  encarregado  especial- 
mente de  o  comprar — não  tinha  ainda  muita  confiança  na  perícia  dos 
nossos  portuguezes,  novatos  nas  tricas  e  subtilezas  do  commercio  orien- 
tal. Do  mesmo  modo,  Duarte  Barbosa,  sabendo  perfeitamente  que  na 
índia  havia  alguma  lacca  no  «reino  de  Narsyngua»,  indica  no  emtanto 
que  a  maior  parte  vinha  de  Pegu,  «laquar  muyto  fino  que  na  terra  nase», 
e  de  Martabão,  a  que  chamavam  «laquar  Martabam».  De  tudo  isto  se 
vê,  que  a  Indo-China,  então  como  hoje,  era  a  principal  origem  geogra- 
phica  da  lacca  do  commercio. 

(Cf.  Mason  e  Theobald,  Burma,  i,  87;  Duarte  Barbosa,  Livro,  36o 
e  36i;  Ainslie,  Mat.  ind.,  i,  188;  Lyvro  dos  Pesos,  16;  Gaspar  Corrêa, 
Lendas,  i,  900,  11,  567.) 


42  Colóquio  jngesimo  nono 

Orta  não  sabia  simplesmente  que  a  lacca  vinha  de  Pegu,  sabia  tam- 
bém que  a  traziam  de  «Jamay»  a  Pegu,  e  esta  informação  geographica  é 
interessante,  merecendo  demorar-nos  alguns  momentos.  Jamay — Chia- 
may  e  Jangamá  de  Barros  —  era  uma  provinda  ou  estado  da  terra  ou 
reino  dos  Laos,  chamada  pelos  burmeses  Zimmé,  e  pelos  siameses 
Kiang-mai  ou  Xiang-mai.  O  reino  dos  Laos  dos  nossos  escriptores  qui- 
nhentistas abrangia  vagamente  o  que  hoje  chamam  terra  dos  Schans, 
da  fronteira  do  Burmá  á  da  província  chineza  de  Yun-nan,  e  o  norte 
de  Sião,  desde  Kiang-mai  na  bacia  do  Me-nam  até  Luang-prabang  na  do 
Me-kong.  Barros  define  correctamente  o  que  chama  Chiamay  no  reino 
dos  Laos,  quando  diz :  o  primeiro  estado  dos  povos  Laos  (primeiro  do 
lado  Occidental)  «chamam  Jangamá,  cuja  principal  cidade  ha  nome  Chia- 
may, donde  muytos  por  causa  delia  chamam  ao  reyno  Chiamay». 

É  de  notar,  que  o  próprio  Barros  dá  o  mesmo  nome  de  Chiamay  a  um 
grande  lago  imaginário,  situado  ao  norte  da  Indo-China,  do  qual  pro- 
cediam vários  grandes  rios,  que  seriam  nada  menos  que  o  Brahmaputraj 
o  Iravady,  o  Saluen  e  o  Me-nam.  Pelo  seu  lado,  Fernão  Mendes  Pinto 
parece  derivar  do  lago  Chiammay  alguns  rios  do  Tong-king,  e  diz  que 
o  lago  tinha  cento  e  oitenta  léguas  de  circuito,  havendo  em  volta  minas 
de  prata,  cobre,  estanho  e  chumbo.  E  Camões  acceita  a  noção  geogra- 
phica de  Barros,  no  que  diz  respeito  ao  rio  Me-nam : 

Olha  o  rio  Menão,  que  se  derrama 

Do  grande  lago,  que  Chiamai  se  chama. 

Esta  noção  dos  lagos  interiores,  donde  saíam  muitos  rios,  era  cor- 
rente na  geographia  do  tempo,  tanto  para  a  Ásia  como  para  a  Africa; 
e  será  escusado  dizer  que  um  grande  lago,  origem  ao  mesmo  tempo  do 
Brahmaputra  e  do  Me-nam,  era  uma  pura  phantasia  sem  fundamento. 
E,  no  emtanto,  possível  que  os  portuguezes  tivessem  alguma  noticia  do 
lago  de  Tali-fu,  visitado  antigamente  por  Marco  Polo,  e  modernamente 
por  Garnier  e  por  Gill;  e  que  essa  vaga  noticia,  ampliada  e  erradamente 
ligada  com  o  nome  da  província  de  Kiang-mai,  que  ficava  muito  dis- 
tante de  Tali-fu,  desse  causa  ás  suas  affirmaçôes. 

Em  todo  o  caso,  a  província  de  Jamay  ou  Chiamay  existia,  e  de  lá 
vinha  e  ainda  vem  muito  boa  lacca;  modernamente  Theobald  diz:  the 
finest  lac  comes  from  Siam  and  the  Shan  states.  O  ahniscar  também 
procedia  da  China  norte-occidental  e  do  Thibet,  vindo  por  Ava  no 
Iravady,  como  diz  Duarte  Barbosa,  e  podendo  vir  por  Jamay,  como  diz 
Garcia  da  Orta. 

(Cf.  Barros,  Ásia,  i,  rs,  i,  e  iii,  ii,  5;  Fernão  Mendes  Pinto,  Peregr., 
cap.  41;  Lusíadas,  x,  i25;  Burton,  Commentary,  11,  541;  Yule  e  Bur- 
nell,  Gloss.,  145,  843,  385;  Yule,  Marco  Polo,  11,  65;  Gill,  The  river  of 
the  Golden  sand,  246,  London,  i883.) 


Do  Lacre  43 


Nota  (2) 

N'este,  como  em  outros  Colóquios,  o  nosso  Orta  não  soube  evitar 
a  discussão  bastante  estéril  dos  textos  antigos,  e  francamente  não  era 
fácil  fazel-o,  dados  os  hábitos  e  as  tradições  da  sciencia  do  seu  tempo. 
A  questão  em  que  se  embrenha  era  tanto  mais  complicada,  quanto 
se  tratava  de  discriminar  a  natureza  e  procedência  botânica  de  resi- 
nas em  parte  muito  similhantes.  Sem  o  seguir  passo  a  passo,  notaremos 
no  emtanto  um  ou  outro  ponto  em  que  as  suas  conclusões  são  exactas 
ou  erradas. 

Em  primeiro  logar,  concorda  com  Avicenna  em  que  a  lacca  não  é  o 
carabe,  e  tem  rasão ;  o  carabe  (arábico  \.>yíf  kahrabã)  é  uma  substancia 
absolutamente  distincta,  o  bem  conhecido  succino,  ou  âmbar  amarello. 
Em  segundo  logar,  discorda  de  Avicenna,  ou  pelo  menos  dos  seus 
traductores,  sustentando  que  a  lacca  não  é  o  cancamo  de  Dioscorides 
e  de  Paulo  de  Egina,  e  ainda  tem  rasão.  Qualquer  que  fosse  a  proce- 
dência botânica  do  cancamo,  este  era  uma  verdadeira  resina  de  arvore, 
o  que  não  era  a  lacca.  Orta  estabelece  esta  distincção  do  modo  o  mais 
claro  e  mais  correcto  na  seguinte  phrase:  «a  goma  do  lacre  he  feita 
per  cima  dos  paos  forrando-os,  e  a  outra  he  estilando-se  do  arvore». 
A  observação  é  perfeitamente  conclusiva.  Subsidiariamente,  emenda 
algumas  asserções  erradas,  fundando-se  nos  seus  conhecimentos  já 
mais  completos  de  geographia  botânica;  assim,  Rhazes  havia  dho,  que 
a  lacca  caía  do  céu  sobre  os  ramos  da  gubera  (  ^^)S  e  Orta  adverte 
que  a  gubera  (Sorbus  domestica)  não  existe  na  índia,  nem  nas  terras 
donde  vem  a  lacca,  o  que  continua  a  ser  conclusivo. 

De  tudo  isto,  Orta  deduz  que  os  escriptores  arábicos  não  conhece- 
ram bem  a  lacca,  e  fallaram  d'aquella  substancia  um  pouco  ao  acaso, 
ou  — como  elle  diz —  «conjeiturando».  Assim  devia  ser,  pois  se  elles 
porventura  tiveram  nas  mãos  a  lacca  do  commercio,  seguramente  não 
alcançaram  noticia  segura  da  sua  longínqua  procedência  geographica 
e  muito  menos  da  sua  natureza  zoologico-botanica.  Bastará  ler,  por 
exemplo,  o  artigo  lacre  do  Glossaire  de  Dozy,  para  ver  quanto  a  si- 
gnificação das  palavras  lakk  ou  lâk  foi  incerta  e  vaga  entre  os  escri- 
ptores arábicos,  mesmo  entre  os  que  vieram  muito  depois  de  Avicenna 
ou  Serapio. 

Por  incidente,  Orta  dá-nos  a  sua  opinião  sobre  a  natureza  do  cayi- 
catno  de  Dioscorides,  e  identifica- o  com  o  anime.  Concorda  n'este  ponto 


'  Segundo  Sprengel,  Rhazes  não  disse  que  caía  sobre  os  ramos  da  gubera,  e  sim  de  uma 
arvore  parecida  com  a  gubera;  em  todo  o  caso  essa  arvore  crescia  na  Arábia,  e  a  objecção 
geographica  de  Orta  fica  de  pé. 


44  Colóquio  vigésimo  nono 

com  um  dos  seus  compatriotas,  também  pharmacologista  eximio,  Amato 
Lusitano,  o  qual,  do  mesmo  modo,  identificou  o  cancamo  com  o  anime 
nos  seus  conhecidos  commentarios  a  Dioscorides.  Apesar  d'esta  con- 
cordância de  opiniões,  os  dois  illustres  médicos  portuguezes  não  de- 
viam ter  rasão.  O  velho  escriptor  grego  havia  dito  muito  claramente : 
. .  .Ká-)-y.3tu.;v  ^óxs-jív  iariv  àpaoix.oj  çjXo'j...  a  lagrima  de  uma  arvore  da 
Arábia.  Deveria,  pois,  ser  a  resina  fluida  ou  pastosa  de  alguma  arvore 
da  peninsula  arábica,  talvez  de  uma  espécie  das  Burseracecp,  como 
julgou  Sprengel,  e  na'o  uma  resina  solida,  proveniente  da  Africa,  como 
é  o  anime  branco. 

Julgámos,  que  Orta  se  quereria  referir  a  este  anitne  branco,  prove- 
niente da  Africa  oriental,  que  parece  ser  o  que  hoje  se  designa  com 
o  nome  de  copal  duro,  e  que  se  attribue  geralmente  a  uma  ou  mais 
arvores  da  familia  das  Leguminoscp,  vivas  ou  extinctasi.  E  dizemos  jul- 
gamos, pois  já  no  seu  tempo  sob  este  singular  nome  de  anime,  anime, 
aniimiim,  se  encontravam  resinas  de  diversas  naturezas  e  variadas  pro- 
cedências, o  que  nos  leva  a  hesitar  sobre  qual  d'ellas  Orta  quereria  men- 
cionar. 

E  esta  questão  do  anime,  já  enredada  antes  do  nosso  escriptor,  ia 
justamente  complicar-se  mais  no  seu  tempo — complicação  a  que  elle 
próprio  allude,  quando  falia  do  anime  americano.  Com  effeito,  come- 
çavam então  a  apparecer  nos  mercados  resinas  da  America,  similhantes 
ao  anime  oriental,  e  ás  quaes  se  deu  o  mesmo  nome.  Um  contemporâ- 
neo de  Orta,  o  conhecido  Monardes,  descreveu  algumas  sob  os  nomes 
de  anime  e  de  copal;  e  taes  confusões  se  fizeram  depois  no  commercio, 
que  o  nome  mexicano  de  copal  veiu  a  designar  a  droga  africana,  em- 
quanto  o  velho  nome  de  anime  passou  mais  especialmente  para  a  re- 
sina americana.  De  nada  d'isto  Orta  tinha,  nem  podia  ter  conheci- 
mento, e  unicamente  nos  dá  uma  opinião  menos  exacta;  mas  que  elle 
próprio  apresenta  como  uma  simples  conjectura,  mostrando-se  disposto 
a  abandonal-a  quando  lhe  dêem  para  isso  boas  rasões. 

Em  resumo,  da  longa  dissertação  de  Orta  resulta,  que  elle  possuía 
a  litteratura  especial  do  seu  assumpto  e  do  seu  tempo,  e  que,  se  não 
conhecia  bem  o  cancamo  ou  o  anime,  pelo  menos  tinha  idéas  muito 
exactas  sobre  a  lacca.  E  se  hoje  nos  interessam  mais  especialmente 
os  factos  por  elle  observados  na  índia,  é  certo  que  estas  eruditas  em- 
bora confusas  discussões  de  textos  e  opiniões  clássicas,  deviam  ser  a 
parte  mais  apreciada  pelos  seus  eruditos  contemporâneos. 

(Cf  Sprengel,  Dioscorid.,  i,  38,  ii,  36 1;  Guibourt,  Drogues  Sim- 
ples, III,  455 ;  Fliick.  e  Hanb.,  Pharmac,  1 29.) 


'  Sobre  esta  curiosa  questão  do  copal  pôde  ver-se  o  que  escrevi  nas  Plantas  úteis  da 
Africa  Portuguesa,  p.  i58  a  i63. 


Do  Lacre  45 


Nota  (3) 

Esta  etymologia  é  puramente  de  phantasia,  e  fundada  unicamente 
em  uma  similhança  de  som.  O  termo  de  pharmacia  loc,  ou  melhor  looch, 

é  o  arábico  s^j^  la'õq,  derivado  do  verbo  ,^_^  la'aq,  que  significa 

lamber.  Nunca  podia  dar  as  palavras  v_jX3  lakk,  ou  .,jS"^  ^ãk,  pelas 
quaes  os  árabes  e  persianos  designam  a  lacca,  e  que  parecem  ser  uma 
simples  abreviação  do  sanscripto  FTT^TT,  lãkshã,  com  a  mesma  signi- 
ficação (Cf.  Mareei  Devic,  no  Siipplément  a  Littré,  46;  Ainslie,  Mat. 
ind.l  1, 188). 

Nota  (4) 

E  difficil  apurar  o  que  haja  de  verdadeiro  n'esta  historia  de  cunho 
perfeitamente  oriental,  nem  mesmo  saber  se  o  lacre  tinha  diminuído 
consideravelmente  de  preço  no  tempo  de  Orta.  Pelo  Lyvro  dos  Pesos 
sabemos  nós  que  esta  mercadoria  variava  muito  de  valor,  pois  o  lacre 
de  canudo  valia  a  100  azares  o  bahar  em  Hormuz,  quando  ali  afíiuia; 
e  podia  subir  ao  dobro  quando  escasseava — o  a^ar  equivalia  a  meio 
pardaii,  e  este  pardau  era  mais  baixo  que  o  da  índia.  Isto,  porém,  nada 
nos  diz,  em  relação  áquella  substancia  corante  que  havia  substituído 
a  lacca.  Orta  mesmo  não  tinha  noticia  certa  do  que  fosse,  e  está  dis- 
posto a  admittir  que  seria  a  grãa  ou  kermes.  Também  pôde  lembrar  que 
fosse  a  ruiva,  substancia  que  — segundo  Duarte  Barbosa —  se  expor- 
tava em  grande  quantidade  por  Aden,  e  ainda  hoje  vae  da  Ásia  central 
para  a  índia. 

De  passagem  notaremos,  que  Orta  distingue  correctamente  a  lacca 
do  quennes  ou  kermes;  mas  não  aponta  as  affinidades  que  existiam  en- 
tre as  duas  substancias,  como  havia  apontado  Duarte  Barbosa. 


COLÓQUIO  TRIGÉSIMO 

DO  LINALOES 

INTERLOCUTORES  * 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

Quiseravos  perguntar  per  o  liiialoes,  e  não  o  fiz,  porque 
me  parece  que  tudo  o  que  delle  se  pode  saber  está  escrito. 

ORTA 

Mas  antes,  senhor,  o  que  mais  verdade  he,  que  pouco  se 
sabe  delle;  mas  não  he  tam  pouquo  que  a  sua  arvore  nam 
seja  já  vista  de  alguns  Portuguezes,  diguo  a  rama  delia,  e  o 
arvore  inteiro  de  muitos  escravos  nossos  christãos,  como 
adiante  vos  direi. 

RUANO 

Queriavos  dizer  o  que  dizem  os  escritores  Gregos  e  Ará- 
bios e  Latinos,  e  que  me  dixeseis  o  em  que  acertarão  e 
erraram,  e  sobretudo  o  vosso  parecer,  e  o  que  haveis  sabi- 
do. 

ORTA 

Dizei  que  sereis  servido  de  mim  no  que  souber,  postoque 
neste  simples  não  ha  que  duvidar,  no  que  releva  delle. 

RUANO 

Galeno  he  aleguado  por  Serapiam  per  huma  traduçam 
de  Albatari*,  e  diz  o  pêra  que  aproveita. 

ORTA 

Os  bons  escritores  modernos  todos  dizem  que  Galeno 
não  falia  desse  pao;  e  onde  alegua  Galeno  sam  livros  atri- 
buídos falsamente  a  elle;  portanto  este  autor  grego  deixe- 
molo  aparte. 


*  Sobre  os  nomes  dos  traductores  de  Galeno,  citados  por  Serapio, 
veja-se  a  nota  a  p.  33. 


48  Colóquio  trigésimo 


RUANO 

Dioscorides  lhe  chama  agaloe,  e  diz  que  se  traz  da  ín- 
dia e  da  Arábia,  e  que  se  usa  delle  ás  vezes  por  ençenso*. 

ORTA 

o  verdadeiro  liiialoes  nam  o  ha,  senam  nestas  partes  da 
índia,  como  ao  diante  vos  direi;  e  por  ventura  á  terra  de 
Dioscorides  era  trazido  da  Arábia;  porque,  como  muytas 
vezes  vos  tenho  dito,  todas  as  mercadorias  desta  terra  3^am 
ter  a  Gida  e  ao  Toro,  e  a  Ormuz,  e  destes  portos  do  mar 
se  proviam  o  Cairo,  e  Alexandria,  e  Alepo,  e  outras  muytas 
terras;  e  se  algum  ouve  na  Arábia,  nam  era  deste  especial 
liiialoes,  ou  era  sofesticado.  E  ao  que  diz  Dioscorides  que 
se  gasta  em  lugar  de  encenso,  nam  he  esse  dito  de  hum  tam 
grave  escritor  como  elle;  porque  menos  mal  fora  se  dixera 
que  por  falta  de  liiialoes  se  guastava  o  encenso,  porque  um 
quintal  de  encenso  vai  nesta  terra  hum  cruzado  e  meo,  do 
muito  bom;  pois  mais  barato  deve  valer  na  terra  de  Dios- 
corides; e  um  arrátel  de  aguila^  da  muito  boa,  vale  três 
cruzados;  ora  oulhay  se  he  boa  permutaçam  esta  de  Dios- 
corides. 

RUiVNO 

Pareceme  que  nisso  tendes  muyta  rezam;  pois  elles  mo- 
ravam perto  da  Arábia,  não  devia  ser  tam  caro  a  elles. 

ORTA 

Sabeis  quam  longe  he,  que  o  mais  que  vem  á  índia  he  de 
Dofar  e  Caxem,  e  Xael,  e  Barem,  como  adiante  vos  direy**. 

RU.\N0 

Avicena  examinemos  por  sua  autoridade- 


•  Dioscorides,  lib.  i,  cap.  12  (nota  do  auctor) ;  na  edição  de  Spren- 
gel  o  capitulo  em  que  trata  do  i-àXÀox.sv  é  o  21. 

**  Portos  da  Arábia,  por  onde  o  incenso  era  exportado  para  a  índia; 
o  seguimento  do  dialogo  levaria  a  crer  que  se  tratava  do  linaloes. 


Do  linaloQS  49 

ORTA 

EUe  faz  dous  capítulos,  scilicet,  o  742  de  xilaloes,  e  o  de 
agaliigem  14*. 

RUANO 

Como,  sam  duas  mezinhas? 


ORTA 

Não,  senão  huma;  e  porque  nella  estava  duvidoso  fez 
duas,  pêra  se  decrarar  melhor  na  segunda  vez  que  na  pri- 
meira, e  dizer  que  não  era  mais  que  huma  mezinha;  e  os 
nomes  quê  diz  no  Gap.  742  sam,  dizendo  as  terras  donde 
vinha,  convém  a  saber,  almudihim,  que  he  Melinde,  ou  se 
persume  ser,  porque  nessas  terras  ha  hum  pao  preto  que 
se  vay  ao  fundo  na  aguoa;  outro  diz  Aviçena  ser  trazido  de 
Sofala;  aguora  se  acha  em  Encuama  que  he  dahi  perto,  e 
não  he  inconveniente  chamar  a  Sofala  região  da  índia,  que 
asi  a  chamávamos  antiguamente**;  e  outro  chama  alcameri, 
que  he  o  cabo  de  Comori,  promontório  conhecido,  dos  anti- 
guos  chamado  promontório  Cori:  e  outro  linaloes,  dito  al- 
seiífi***  e  alberiàiio^  e  outro  de  regione  Catai  e  Seni,  e  outros 
nomes  pÕem,  que  vos  confeso  que  lhe  não  sei  dar  a  deriva- 
cam. 

RUANO 

E  dessas  partes  que  dizeis,  vem  o  linaloes  verdadeiro,  ou 
nace  nellas? 


*  Aviçena,  lib.  2,  cap.  742  (nota  do  autor);  citação  errada,  o  cap. 
é  744,  pelo  menos  na  edição  de  Benedicto  Rinio. 

•*  Isto  é  exacto,  e  muitos  auctores  antigos  alargavam  singularmente 
o  nome  de  índia;  fr.  Jordão,  por  exemplo,  inclue  Zanzibar  e  terras 
próximas  na  sua  índia  Tertia. 

***  Ha  aqui  um  erro  de  transcripção  ou  de  imprensa;  o  nome  em 
Avicenna  é  alsanji,  cuja  significação  veremos  em  uma  das  notas.  É 
certo  que  outros  nomes  citados  estão  igualmente  estropiados,  mas 
entendemos  dever  conserval-os  taes  quaes  se  encontram  na  edição 
de  Goa. 


5o  Colóquio  írigesimo 

ORTA 

Não  naçe  o  verdadeiro;  e  comtudo  he  verdade  que  nesas 
partes  do  cabo  de  Comori  e  em  Çeilam  ha  hum  pao  que 
cheira  (ao  qual  nós  chamamos  agiiila  brava);  e  cheira  asi 
como  entre  nós  cheiram  mu3'tos  paos;  e  já  este  pao  foy  por 
mercadoria  a  Bengala,  e  chamavamlhe  agiiila  brava,  e  de- 
pois se  desenganaram  os  Bengalas  e  não  o  quiseram  com- 
prar. Este  pao  he  o  que  dizem  alcameri,  e  alsijicasi  do  cabo 
de  Comori  e  de  Çeilam;  e  se  estas  derivações  vos  nam  con- 
tentam, outra  vez  vos  parecerão  bem, 

RUANO 

Aprazemme,  mas  Catai  e  Seni  que  quer  dizer? 

ORTA 

De  Cantam  (mais  celebrado  de  toda  China),  e  Seni  he 
o  Chincheo*. 

RUANO 

Ha  O  linaloes  nessa  terra? 

ORTA 

Não,  senão  como  muytas  vezes  vos  dixe,  os  Chins  nave- 
gavam este  mar,  e  traziam  o  bom  linaloes  de  Çamatra  e 
xMalaca,  e  o  mao  de  Çeilam,  e  o  compravam  bem  e  ven- 
diam; e  o  muyto  bom,  se  lho  não  compravam  muito  bem, 
levavamno  a  suas  terras,  porque  o  linaloes,  na  China,  he  mer^ 
cadoria  de  muyto  preço. 

RU.VXO 

Também  diz  Avicena  que  o  cozem  nas  terras  onde  naçe, 
e  o  cozimento  lhe  tira  a  virtude**;  dizeime  o  que  sentis  disto 
porque  o  dizem  muytos  afora  Avicena. 


*  É  quasi  inútil  notar,  que  estas  identificações,  como  varias  outras, 
estão  longe  de  ser  exactas. 

**  Clusius  e  Scaligero  notaram  que  esta  citação  de  Avicenna  é  er- 
rada; e  eifectivamente  não  encontrei  tal  affirmação  no  livro  do  me- 
dico árabe  (Cf.  Exoticorwn,  lyS  e  247). 


Do  linaloes  5i 

ORTA 

Não  he  tal  cousa,  nem  se  acostuma  cozer  este  pao,  e 
nisto  podereis  descançar;  no  fim  vos  direi  a  eleiçam  delle, 
e  como  se  prova;  e  por  aqui  podeis  responder  aos  que 
nisto  se  afirmam  ao  cozer  do  pao. 

RUANO 

Serapio*  alega  a  Dioscorides,  e  bem  creo  que  diz  nisto 
verdade,  porque  diz  que  tem  coiro  mais  verdadeiramente 
que  corteza;  e  que  tem  amargura  com  esteticidade;  e  que 
se  traz  das  terras  dos  índios  e  Arábios. 

ORTA 

Não  dizem  em  tudo  verdade;  mas  dizem  verdade  em  di- 
zer que  o  trazem  das  terras  dos  índios  e  dos  Arábios;  e  se 
dixeram  que  naçia  na  índia  e  na  Arábia,  nam  a  diziam; 
pois  naçe  na  índia**  e  vem  ter  á  Arábia  por  mercadoria.  E 
em  dizer  que  tem  coiro,  mais  verdadeiramente  que  corteza, 
não  dizem  o  que  he;  porque  tem  corteza  como  os  outros 
paos;  porém  não  cheira  bem,  senam  o  âmago  (a  que  cha- 
mam os  Portuguezes  cerne);  e  como  a  corteza  e  o  pao  de 
fora  seca,  fica  per  tempo  mais  cheiroso,  como  ao  diante 
vos  dire3^ 

RUANO 

Faz  mu3'tas  especias  do  linaloes  indo;  e  diz  que  hum  naçe 
em  huma  ilha  chamada  Fuma***;  e  que  he  melhor  o  negro  e 
variograve ;  depois  diz  que  vem  outro  de  hum  outro  lugar  da 
índia,  dito  Model;  e  depois  o  que  he  de  Sief;  e  depois  o 
que  he  de  Alcomori****.  E  que  ha  da  terra  donde  naçe  o  de 
Alcomori,  aonde  nace  o  de  Sief,  caminho  de  três  dias;  e  que  o 


*  Serapio,  197  (nota  do  auctor). 

**  Tomando  a  palavra  índia  no  sentido  mais  lato,  incluindo  a  índia 
alem  do  Ganges. 

***  Ilha  Fimua  na  traducção  latina  de  Serapio. 

****  Seif  e  alkumeri  em  Serapio. 


52  Colóquio  trigésimo 

que  mais  se  vay  ao  fundo  na  agoa  he  o  milhor,  e  que  mais  está 
no  fogo  sem  se  queimar. 

ORTA 

Estam  os  nomes  muyto  corrutos,  e  mais  vos  confeso  que 
não  sey  as  terras  firmes  por  dentro  muito  bem;  por  iso  não 
vos  digo  qual  he  a  entençam  do  Serapiam;  e  mais,  se  diz 
bem  ou  mal.  E  porém  se  por  Fuma  entende  Çamatra,  diz 
bem,  mas  a  derivaçam  he  muyto  torta;  e  no  que  chama 
Model,  confessovos  não  o  entender  senão  se  quer  dizer  Me- 
linde;  e  Alcomori  e  Sief  he  o  cabo  de  Comori  e  Çeilam, 
porque  do  cabo  de  Comori  á  ilha  de  Ceilam  per  mar  ha 
três  dias  de  caminho,  como  elle  diz;  e  que  isto  seja  verdade 
se  prova,  porque  nestas  terras,  como  vos  dixe,  ha  hum  li- 
naloes,  a  que  chamamos  aguila  brava.  E  com  esta  aguila 
brava  se  queimão  os  Baneanes  quando  morrem,  e  sam  es- 
tes Baneanes  os  que  não  comem  cousa  que  possa  morrer. 
E  os  Chins,  que  traziam  o  linaloes  de  Çamatra,  faziam  es- 
cala em  Çeilam,  e  no  cabo  Comori;  e  quando  o  vendiam,  di- 
riam donde  era.  E  mais  diz  Serapio  que  o  enterram  e  que 
o  sinal  de  ser  bom  he  vir  cheo  de  terra;  mas  bem  se}^  que 
este  sinal,  que  em  qualquer  pao  cheiroso  o  podiam  fazer. 
E  o  outro  que  diz  que  após  este  he  em  bondade,  he  o  abei 
trazido  de  Çofala,  e  não  he  de  maravilhar  que  seja  o  pao 
preto  de  Çofala  e  Moçambique;  e  fazerlhehiam  cousa  com 
que  cheirase;  porque  diz  que  fazem  delle  taboas  e  pentes. 
E  o  que  diz  que  cortam  os  ramos,  e  que  os  enterram  por 
hum  anno,  e  que  a  terra  nam  come  delles  cousa  alguma, 
e  que  vem  por  os  rios,  diz  alguma  maneira  de  verdade, 
como  adiante  vos  direy. 

RUANO 

E  também  diz  que  tem  um  fruito  vermelho  corao  pimenta. 

ORTA* 

Não  diz  cousa  nisso  que  até  agora  eu  podesse  saber;  e 
não  falemos  mais  nestes  Maometanos,  porque,  nem  Rasis, 


*  Falta  na  edição  de  Goa  a  palavra  «Orta». 


Do  linaloes  53 

nem  Avenrrois,  nem  Isac,  que  deste  pao  falam,  nam  tratam 
mais  que  no  pêra  que  aproveita  este  pao,  e  não  o  que  he 
e  donde  vem;  e  falai  nos  Latinos. 

RUANO 

Plinio  diz,  segundo  Ruelio  refere*,  que  vem  dos  confins 
donde  naçe  a  casia,  per  os  Nabateos  e  Trogoloditas;  e  po- 
rém que  os  mercadores  que  vendem  por  elle  o  aspaltiim. 

ORTA 

Não  faz  bom  caminho  Plinio,  nem  curto;  mas  podia  ser 
que  o  aspalto  pao  fosse  sofisticado  e  vendido  por  linaloes; 
e  não  me  entendaes  como  alguns  entenderam  falsamente 
por  aspalto  o  que  nós  chamamos  betume  judaico;  porque 
essa  he  huma  mezinha  de  pouco  preço,  trazida  do  estreito 
de  Meca,  e  vemse  vender  aqui  para  brear  as  náos. 

RUANO 

Também  folgo  de  saber  isso.  Sepúlveda**,  e  o  Frade  autor 
do  Modus  faciendi,  e  o  autor  de  De  propietatibus  rerum,  di- 
zem que  vem  do  paraiso  terreal. 

ORTA 

Eu  nunqua  mereci  ir  ao  paraiso  terreal;  mas  comtudo 
diguo,  que  donde  nasce  não  ha  alguns  dos  rios  que  dizem 
vir  do  paraiso  terreal,  senão  bem  longe  delle;  por  onde  não 
se  escusam  esses  senhores  de  dizer  tal  fabula. 

RUANO 

Maravilhase  hum  escritor  moderno  como  se  vai  ao  fundo 
nam  sendo  tam  mocico. 


»  Plinius  (nota  do  auctor).  É  curioso  que  elle  cite  Plinio  em  se- 
gunda mão,  quando  tantas  vezes  o  cita  directamente;  mas  desejou  tal- 
vez apoiar-se  na  opinião  de  Ruellio,  porque  é  bastante  duvidoso  que 
Plinio  se  queira  referir  ao  linaloes,  sob  o  nome  de  tariim, 

*»  Sepúlveda  (nota  do  auctor). 


54  Colóquio  trigésimo 

ORTA 

Não  tem  razão,  porque  o  miolo  ou  cerne  he  bem  moçico, 
e  algum  delle  nada  na  aguoa,  sendo  muyto  bom ;  e  por  isso 
vos  direi  outras  espiriencias,  e  provas  milhores  no  fim. 

RUANO 

Os  Frades  italianos  dizem  que  fez  mal  Aviçena  em  es- 
crever dous  capítulos  desta  mezinha,  não  sendo  mais  que 
huma  só,  e  reprendem  Savanerola*  em  fazer  deferença  de 
xilaloes  e  linaloes,  não  havendo  mais  deferença,  senam  ser 
hum  nome  grego  e  outro  latino,  e  isto  diz  Savanerola  no 
quinto  tratado  falando  de  lignis. 

ORTA 

Não  queria  eu  os  frades  reprensores  senão  no  púlpito;  e 
asi  diguo  que  Avicena  fez  dous  capítulos,  como  de  cousa 
não  bem  sabida,  e  mais  o  capitulo  deradeiro,  que  he  o  mais 
copioso,  vay  acresentado  mais  que  o  primeiro,  que  he  da 
primeira  letra  do  ABC  arábio,  que  elles  chamam  alif,  e 
outro  deradeiro  capitulo  he  de  outra  a  que  elles  chamam 
H**:  por  onde  pôde  ser  que  quando  soube  milhor  a  natureza 
deste  simples  que  quis  escrever  o  capitulo  mais  copioso.  E 
no  que  reprende  a  Savanerola,  não  he  de  presumir  que, 
sendo  elle  tam  douto,  não  soubese  que  tudo  era  huma 
cousa  xilaloes  e  linaloes;  se  nam  foy  vicio  do  escritor  ou 
esquecimento  do  que  avia  escrito,  como  muitas  vezes  acon- 
tece, porque,  em  cousa  tam  nota,  não  havia  de  errar  tal 
homem. 


*  Savanerola  (nota  do  auctor);  aliás  Savonarola,  veja-se  a  nota  fi- 
nal. 

**  A  primeira  letra  é  efFectivamente  alif,  pela  qual  começa  a  palavra 
agaladjin,  um  dos  nomes  árabes  do  linaloes;  e  a  segunda  ain,  pela  qual 
começa  um  outro  nome  da  mesma  madeira  'iid;  é  certo  que  o  ain  im- 
plica uma  certa  aspiração  guttural,  e  que  os  traductores  o  representa- 
ram algumas  vezes  por  h. 


Do  linaloes  55 

RUANO 

Sinforiano  diz  que  nunqua  vio  verdadeiro  linaloes^  senão 
em  Liam  de  França. 

ORTA 

Venha  qua,  e  pagueo  bem,  e  leváloa;  mas,  falando  a  ver- 
dade, O  muyto  bom  (a  que  chamam  calambac)  vai  mais 
dinheiro  em  Malaca  que  cá^  e  porém  soe  vir  muyto  de 
Malaca  pêra  esta  terra,  pêra  o  levarem  pêra  Arábia  e  Tur- 
quia e  Pérsia  os  Mouros  e  Gentios  ricos  desta  terra.  E  eu 
vos  escolherei  huma  mostra,  que  leveis  a  Castella,  de  caza 
de  hum  mercador  que  tem  aqui  lo  quintaes,  aquelle  que 
me  deu  o  outro  dia  o  benjiii  de  boninas;  e  mais  em  Cochim, 
quando  quizerdes  partir,  achareis  as  náos  de  Malaca  e  po- 
deis nellas  escolher  e  comprar  á  vossa  vontade. 

RUANO 

Beijo  as  mãos  de  vossa  merçe  por  o  que  me  quereis  dar 
graciosamente,  e  poUo  conselho  que  me  dais.  E  o  Pandeta- 
rio  diz  que  o  milhor  linaloes  ha  nas  alturas  dos  montes,  e 
por  expulsão  dos  grandes  ventos,  ou  por  velhice  e  ser  deri- 
bado  das  arvores,  e  de  muyto  tempo  vem  pello  rio  abaixo. 
E  também  diz  que  o  falsificam,  pondo  por  elle  camalea; 
e  assi  diz,  allegando  Acácio  Felici,  que  huma  das  especias 
suas  he  de  huma  ilha  chamada  na  índia  Caniar,  e  outra 
Caemer  e  a  terceira  Sares.  E  não  quero  dizer  do  que  dizem 
do  coser,  porque  já  me  dixestes  ser  falso. 

ORTA 

Não  sam  montes  onde  naçe,  senão  antes  vales;  e  não 
vem  poUos  rios,  senão  muito  pouco;  porque  o  milhor  o  guar- 
dam lá,  e  trazemno  pêra  o  vender  por  este  rio,  e  ás  vezes 
per  terra;  mas  do  rio  usam  mais  por  ser  mais  seguro, 
por  causa  dos  tigres  de  que  o  mato  he  muyto  cheo,  e  sam 
chamados  reimÕes.  A  terra  donde  naçe  pode  ser  Çama- 
tra  e  Ceilam,  como  já  dixe;  e  da  falsificaçam  da  camalea 
não  diz  verdade,  salvo  reverencia,  porque  não  a  ha  nesta 
terra. 


56  Colóquio  trigésimo 

RUANO 

Valério  Probo,  diligente  escritor,  que  aguora  escreveo 
sobre  Dioscorides  humas  adições,  diz  que  a  especia  mais 
vil  e  baxa  que  ha  he  a  de  Rhodes*:  vistes  já  esta? 

ORTA 

Não,  vós  a  podeis  ver;  mas  se  a  ha,  não  he  compren- 
dida  debaxo  deste  género  agaloco  ou  linaloes;  convém  a 
saber,  o  que  de  cá  vay. 

RUANO 

Ruelio  e  António  Musa**  o  que  dizem,  que  estes,  como 
mais  modernos  e  como  pesoas  que  tem  noticia  da  nave- 
gaçam  portugueza,  diram  mais  verdade? 

ORTA 

Bem  creo  que  diram  estes  mais  verdades:  mas  dizeime  o 
que  dizem,  e  direi  o  que  sey. 

RUANO 

Diz  pois  o  Ruelio,  que  o  agaloco  veo  a  nossa  terra,  só  do 
nome  conhecido,  e  o  que  primeiro  dos  Gregos  lhe  chamou 
linaloes  foy  Aeçio,  não  sei  porque  causa:  a  este  Aeçio  si- 
guirão  depois  toda  a  companhia  de  físicos  e  boticairos;  e 
diz  que  Galeno  delle  não  falou,  e  que  Paulo  lhe  chamou 
lenho  indico***;  e  Aeçio  diz  que  em  as  partes  orientaes  se 
acha  principalmente  em  aquellas  que  mais  chegam  ao  sul, 
ou  meodia,  e  que  nunqua  tem  cheiro,  sem  primeiro  ser 
podre  com  bichos,  e  na  terra  ser  enterrado  e  apodrecido; 
e  que,  com  a  putrefaçam,  alcança  o  cheiro;  e  que  os  mora- 
dores da  terra  feito  em  pedaços  o  enterram;  e  que,  como 


*  Valério  Probo  (nota  do  auctor);  aliás  Valério  Gordo.  Os  erros  de 
imprensa  n'este  Colóquio  são  taes  e  tantos,  que  não  sei  se  interpretei 
bem  a  passagem;  não  vi  o  livro  de  Valério  Gordo;  mas  Laguna  diz 
que  ás  vezes  confundiam  o  linaloes  com  o  olivastro  de  Rodas. 

**  Ruelius  e  Musa  (nota  do  auctor). 

***  Linho  indico  na  edição  de  Goa;  um  erro  de  imprensa  evidente. 


Do  linaloes  5j 

tem  cheiro,  o  vendem  aos  mercadores;  e  pÕe  quatro  espe- 
cias,  scilicet,  indico,  mais  conhecido  e  celebrado  que  todos, 
e  outro  safico,  de  Safo  (cidade  asi  chamada),  outro  hispeon 
e  outro  higron;  e  diz  que  os  Arábios  dizem  que  tem  fruita 
ou  baga  vermelha,  mais  pequena  que  a  pimenta,  que  lhe 
cha.ma.m  piperel a;  e  que  linaloes  nam  he  sujeito  a  putrefa- 
çam. 

ORTA 

Fala  em  isso  fielmente,  e  em  dizer  que  não  he  conhecido 
até  aguora  diz  bem;  mas  eu  diguo  que  já  he  conhecido 
nesta  terra,  e  daqui  em  diante  será  mais,  porque  já  aguora 
se  sabe  donde*,  e  como  se  faz  cheiroso  adiante  volo  direi.  E 
das  quatro  maneiras  eu  não  conheço  mais  que  a  primeira; 
scilicet,  o  da  índia,  e  pode  ser  que  as  outras  especias  não 
sejam  linaloes,  senão  pao  cheiroso;  nem  conheço  nem  ouvi 
dizer  que  tenha  fruita,  ou  baga  alguma;  nem  quem  diz  que 
não  he  sojeito  a  putrefaçam  não  he  de  todo  ponto  verdade; 
porque  pois  he  misto  he  sojeito  a  ella,  e  os  metais  menos**; 
e  este  pao  se  apodrece  muito  tarde  em  o  âmago  (a  que  cha- 
mamos cerne),  de  maneira  que  segundo  aquela  parte  he  me- 
nos sujeito  a  putrefaçam;  e  contradiz  em  dizer  que,  por  ser 
podre  e  comesto***  de  bichos,  alcança  o  cheiro;  e  depois 
diz  que  nam  he  sujeito  a  putrefaçam;  por  onde  se  ade  en- 
tender que  segundo  a  parte  onde  está  o  cerne  não  se  po- 
dreçe;  e  segundo  a  outra  parte,  onde  está****  que  com- 
munica  com  a  casca,  se  podreçe. 

RUANO 

Mu3'tas  cousas  diz  conforme  ao  que  dizeis  António  Musa ; 
e  mais  diz  que  os  vossos  Portuguezes  acham  delle  grandes 


*  Falta  claramente  o  verbo  he;  a  affirmação  é  um  tanto  atrevida,  e 
o  próprio  Orta  mostra,  que  não  sabia  muito  bem  «donde  era». 

»»  Curiosa  reflexão,  e  tendo  bem  o  cunho  da  epocha. 

***  Sic  na  edição  de  Goa;  evidentemente  «comido  dos  bichos«. 

***»  Devem  talvez  supprimir-se  as  palavras  «onde  esta». 


58  Colóquio  trigésimo 

matos,  e  que  cortam  os  arvores,  e  leixamnos  até  que  se  po- 
dreçem;  e  que  vai  mu3'to  em  Çamatra  donde  vem;  e  que 
não  he  por  isso  muyto  não  vir  a  nós  mu}!©  bom  linaloes; 
e  que  se  na  mão  o  apertam  cheira  muyto,  e  que  este  e  o 
género  chamado  calambac  levam  á  China  e  a  Cantam,  porto 
delia  muyto  celebrado,  e  posto  no  fogo  dura  muyto  antes 
que  se  queime. 

ORTA 

Diz  mu3^to  bem  em  tudo  o  mais;  mas  não  em  dizer  que 
acham  mu3^tos  matos  delle  porque  as  arvores  não  sam  tan- 
tas, e  he  perigosa  cousa  ir  lá  por  causa  dos  tigres;  e  mais 
vos  diguo  que  muyto  bom  vem  ás  nossas  mãos,  scilicet, 
aos  capitães  de  Malaqua,  e  aos  que  pêra  estas  partes  nave- 
gam, se  o  querem  comprar  bem,  e  aqui  vos  amostrarei  al- 
gum deste. 

RUANO 

Pois  dizei  aguora  os  nomes  nas  linguas  usadas,  e  a  elei- 
cam  e  a  feicam  da  arvore. 

ORTA 

Chamase  agalugem  e  haud  em  arábio;  e  os  Guzarates  e 
Decanins  iid,  que  he  casi  o  arábio;  os  Malaios  ^íir/^o^  e  es- 
tes chamam  ao  muyto  fino  calambac.  O  arvore  é  como  a 
oliveira,  e  ás  vezes  muyto  maior;  fruito  nem  frol  não  lhe 
sey,  como  já  vos  dixe;  porque  não  me  veo,  poUo  periguo 
que  ha  em  o  hir  ver  em  todo  o  tempo:  asaz  he  que  me  vi- 
eram folhas  e  ramos  trazidos  a  Malaqua,  porque  o  ha  polo 
rio  acima.  E  dizem  que,  quando  se  corta,  não  cheira;  e  não 
por  ser  neçesario  podrecerse  pêra  que  cheire,  como  alguns 
dizem;  senão  aveis  de  saber  que  a  casca  he  grossa,  e  o 
meolo  não  cheira  senam  no  âmago  ou  cerne,  que  chamamos 
asi,  como  o  do  sovereiro;  e  quando  se  podreçe  per  fora, 
reconcentrase  e  foge  ao  âmago  a  grossura  e  o  azeite  do 
pao,  e  faz  que  cheire  muyto,  correndo  toda  a  virtude  e 
grossura  para  dentro;  e  por  isto  dizem  que  he  neçesario 
podrecerse  primeiro,  pêra  que  cheire;  o  que,  como  vos 
dixe,  he  mu3'to  falso,  senão,  quando  o  pao  he  mu3'to  seco, 


Do  Imaloes  59 

parece  o  cerne  e  o  miolo  melhor,  e  cheira  mais,  porque  não 
tem  empedimento.  Ha  pesoas  que,  como  olham  o  pao,  logo 
dizem  se  cheirará  muyto;  porque  em  todo  o  pao  ha  defe- 
rença  de  madeira;  e  os  Malaios  alimpam  o  pao  que  he 
ruin,  quando  o  trazem  a  vender. 

RUANO 

E  o  calambac  he  desta  mesma  especia? 

ORTA 

Tudo  he  hum,  e  ao  mais  fino  chamam  calambac,  e  ao 
outro  como  acima  dixe. 

RUANO 

Como  se  conhece  a  bondade  delle? 

ORTA 

O  que  for  como  este,  que  he  muyto  preto,  e  pardo  em 
veos  e  pesado,  com  muyto  olio  dentro  nelle,  he  o  melhor; 
e,  pêra  o  provar  o  pÕem  ao  foguo,  e  o  que  sua  mais  e 
deita  mais  azeite  he  o  milhor;  e  os  Guzerates  e  Decanins, 
afora  estas  condições,  querem  que  seja  grande  o  pao,  asi 
como  nas  pedras  e'  no  aljofre;  porque  dizem  que  no  mayor 
ha  mais  virtude;  e  pêra  vos  tirar  deste  trabalho  tomai  este 
pedaço  de  calambac,  que  mo  deram  em  muyta  estima  (i). 

RUANO 

Certamente  que  não  ouvi  tal  em  toda  minha  vida  e  bem 
certamente  parece  ser  bom  este ;  e  bem  sey  que  me  fizestes 
nisto,  e  em  tudo,  muyta  merçe. 

ORTA 

O  que  eu  quero  da  vossa  he,  que  saiba  que  isto  pouquo 
que  eu  soube  desta  mezinha  me  custou  muyto  trabalho,  e 
alguma  cousa  da  minha  fazenda;  e  se  mo  aguardeçerdes 
darmei  por  muito  satisfeito  (2). 


6o  Colóquio  trigésimo 


Nota  (i) 

Não  tendo  muito  a  dizer  de  novo  sobre  o  linaloes,  Orta  fez  o  que 
hoje  chamariamos  uma  revista  bibliographica  de  tudo  quanto  conhecia 
e  se  havia  escripto  até  ao  seu  tempo  acerca  d'aquelle  celebrado  per- 
fume. Sem  o  acompanharmos  n'essa  revista,  procuraremos  esclarecer 
tão  brevemente  quanto  possível  algumas  das  suas  indicações. 

Identifica-se  geralmente  esta  substancia,  de  que  agora  tratámos,  com 
uns  perfumes  ou  madeiras  odoríferas,  mencionados  na  Bíblia,  no  livro 
dos  Números,  no  dos  Psalmos,  no  Cântico  dos  Cânticos  e  em  outros, 
pelos  nomes  de  Qt^HN  e  HlS^ííi  ahalim  e  ahalot  (formas  do  plural); 
e  é  também  muito  provável,  que  o  aloés  de  que  falia  o  Evangelho  de 
S.  João,  conjunctamente  com  a  myrrha,  e  que  Nicodemo  trouxe  para 
embalsamar  o  corpo  de  Jesus,  fosse  esta  mesma  substancia,  e  não  o  ou- 
tro aloés  mais  conhecido,  e  de  que  tratámos  no  Colóquio  segundo.  Pa- 
rece, que  aquellas  antigas  designações  hebraicas  seriam  a  origem  do 
nome  de  alces,  dado  depois  á  madeira  odorífera ;  e  Sprengel  cita  mesmo 
uma  forma  arábica,  que  julga  intermédia,  ?J.M,  alluat,  emquanto  sir  H. 
Yule  e  outros  preferem  uma  derivação  diversa,  a  que  adiante  nos  refe- 
riremos. Seja  como  for,  o  certo  é  que  esta  madeira  do  extremo  Oriente 
não  tem  a  mais  remota  similhança,  nem  nas  propriedades,  nem  na  pro- 
cedência, nem  em  qualquer  outra  circumstancia,  com  o  aloés,  extrahido 
de  uma  Liliacea,  e  hoje  muito  mais  conhecido  e  usado,  do  qual,  repito, 
Orla  tratou  largamente  no  Colóquio  segundo^.  Para  distinguirem  as 
duas  substancias  tão  diversas,  e  que  casualmente  vieram  a  ser  designa- 
das por  nomes  idênticos,  usaram  os  escriptores  indicar  a  natureza  le- 
nhosa da  primeira,  chamando-lhe  os  que  escreviam  em  grego  Ç'j).a>.oV,, 
e  os  que  escreviam  em  latim  lignum  aloés,  o  que  o  nosso  Orta  con- 
trahiu  em  linaloes.  Como  bem  notaram  «os  frades  italianos»  e  Orta 
confirma,  «xilaloes»  e  «linaloes»  eram,  pois,  exactamente  o  mesmo 
nome,  applicado  á  mesma  substancia. 

Esta  substancia  tinha  por  outro  lado  um  nome  sanskritico,  citado 
por  Ainslie  na  forma  ^TTJT,  aguru,  que  os  árabes  converteram,  alte- 

rando-o  consideravelmente,  em  f~=«.-5i',  agaladjin  («agalugem»  de 
Orla),  e  que  parece  ser  a  origem  do  nome  empregado  por  Dioscori- 
des,  i-^ikAOM'1  («agaloe»  de  Orta).  Aquelle  nome  sanskritico,  simplifi- 
cado nas  línguas  modernas  da  índia,  deu  em  hindi  e  deckani  os  nomes 
de  agar  e  aghir;  e  deu  talvez  lambem  o  nome  maláyalam  de  ágil, 


'  O  nosso  padre  Rapliael  Bluteau,  no  seu  Vocabulário,  fez  uma  trapalhada  terrível,  sup- 
pondo  que  o  aloés  siiccotiino  e  outros  eram  o  sueco  das  folhas  do  pao  d'aguila,  e  dando 
sobre  esta  planta,  as  suas  folhas  e  flores  as  mais  phantasticas  indicações. 


Do  linaloes  6i 

como  escreve  Gundert  — citado  por  Yule — ,  ou  de  agila^,  como  es- 
creve Royle.  Estas  palavras,  adoptadas  pelos  portuguezes,  foram  por 
elles  muito  usadas  nas  formas  agiiila  e  páo  de  aguila;  e,  convertida 
por  engano  aguila  em  aquila,  deram  depois  os  nomes  modernos  fran- 
cez  e  inglez,  bois  d'aigle  e  eagle  wood,  sem  que  a  madeira  tenha  a  mais 
remota  relação  com  as  águias,  como  não  tem  a  mais  remota  relação 
com  o  verdadeiro  aloés. 

Devemos  ainda  citar  um  nome  muito  usado  pelos  árabes,  ^^,  'ud 
(nhaud-))  e  «ud»  de  Orta),  a  madeira,  ou  a  madeira  por  exceílencia, 
ao  qual  juntavam  muitas  vezes  o  qualificativo  de  procedência  —  a  ma- 
deira da  índia,     CX^   ^ac.  D'este  nome,  ligado  ao  artigo  al-'ud,  sup- 

põe  Yule  que  poderia  provir  a  palavra  aloés. 

Finalmente  citaremos  o  nome  malayo  jjo,  gãru  («garro»  de  Orta), 
que  parece  ser  uma  simplificação  do  sanskrito  agiiru;  e  o  nome  pura- 
mente malayo  de  ^_^;^J^,  kalambaq  («calambac»  de  Orta),  muito  co- 
nhecido dos  nossos  portuguezes,  e  ainda  usado  no  commercio  relativa- 
mente moderno  nas  formas  calambac,  calambouc,  calambourg  —  aquelle 
bois  de  calambourg,  que  Victor  Hugo  introduziu  no  Ruy  Blas  para  ri- 
mar com  Neubourg,  e  que  deu  logar  a  varias  discussões  litterarias. 

D'esta  longa  e  fastidiosa  exposição  de  nomenclatura  resulta,  que 
o  nosso  Orta  tinha,  como  era  seu  costume,  a  noção  clara  dos  variadís- 
simos nomes  da  substancia  de  que  tratava  (Cf.  D.  Hanbury,  Science 
papers,  265;  Sprengel,  Dioscor.,  ii,  36o;  Yule  e  Burnell,  Gloss.,  258; 
Royle,  Ant.  of  Hind.  med.,  88;  Mareei  Devic,  no  Suppl.  a  Littré,  24; 
Ainslie,  Mat.  ind.,  i,  479). 

Todo  o  linaloes  procedia  da  Indo-China,  ou  — para  fallarmos  a  lin- 
guagem do  tempo —  da  índia  para  alem  do  Ganges;  e  não  estava  en- 
tão bem  averiguada  a  sua  procedência  botânica,  como  creio  que  ainda 
não  está  completamente  hoje.  Depois  das  investigações  de  Roxburgh 
e  de  outros  exploradores  e  botânicos,  é  licito  affirmar,  que  todo  o  pao 
de  aguila  ou  linaloes  da  zona  occidental  da  Indo-China  procede  de 
uma  arvore  da  pequena  familia  das  Aquilarinece,  a  A.qiiilai*ia 
Ag-alloelia.,  Roxb.,  cujo  habitat  se  estende  desde  a  peninsula  de 
Malaca,  pelas  florestas  de  Tenasserim  e  ilhas  próximas  de  Mergui,  até 
bastante  ao  norte,  aos  valies  do  Assam  e  de  Silhet.  É  certo,  porém, 
que  muita  d'aquella  madeira  vinha  também  das  terras  mais  orientaes, 
de  Sião  e  Cochinchina,  e  que  o  nosso  padre  Loureiro  deu  á  arvore  que 
a  produzia,  e  que  pertence  á  familia  das  Leguminosc^,  o  nome  de  Aloe- 


'  Segundo  parece  devem  ler-se  com  o  g  duro. 

'  Esta  forma  haud  encontrou  Orta  no  seu  Avicenna  latino,  onde  os  annotadores  repre- 
sentaram o  ain  de  'ud  por  um  h. 


62  Colóquio  trigésimo 

■xryYum  AgallocliTim.  Não  creio  que  se  tenha  demonstrado  de 
um  modo  bem  evidente,  que  elle  estivesse  em  erro.  Da  longa  exposi- 
ção de  Rumphius  — na  verdade  um  tanto  confusa —  resulta  que  este 
consciencioso  observador  considerava  a  madeira  de  aloés,  ou  calam- 
bac,  como  proveniente  de  mais  de  uma  planta;  e  o  exame  detido  das 
madeiras  de  aloés  do  commercio,  feito  por  Guibourt  e  o  seu  continua- 
dor Planchon,  mostrou  existirem,  entre  aquellas  madeiras,  diversas 
e  notáveis  variedades.  É  verdade,  que  o  antigo  droguista  Pomet,  o  qual 
obtivera  algumas  informações  curiosas  dos  embaixadores  do  rei  de  Sião 
na  corte  de  Luiz  XIV,  attribue  essas  variedades  ás  diversas  camadas 
do  tronco,  ou  diverso  estado  de  conservação  da  madeira;  mas  esta 
opinião  mal  se  pôde  sustentar  em  presença  das  observações  minuciosas 
de  Guibourt  e  Planchon.  Sem  insistir,  e  remettendo  o  leitor  para  os 
livros  especiaes  abaixo  citados,  parece-me  poder  concluir,  que  uma 
grande  parte  do  linaloes  procedia,  e  procede  sem  duvida  alguma,  da 
Aquilaria  Agallocha,  e  que  acerca  da  procedência  de  outra  parte  ainda 
subsistem  algumas  duvidas. 

Qualquer  que  fosse  a  arvore  a  que  pertencia,  o  verdadeiro  e  bom 
linaloes  não  consistia  na  madeira  sã,  e  era  o  resultado  de  alterações 
mórbidas,  que  determinavam  uma  producção  e  accumulação  anormal 
de  resina  perfiimada;  Crawfurd,  um  excellente  observador,  é  n'este 
ponto  perfeitamente  explicito,  e  o  sr.  Dymock  partilha  a  mesma  opi- 
nião. E  também  parece  certo,  que  algumas  vezes  procuravam  obter 
artificialmente  essas  alterações,  enterrando  os  troncos,  depois  de  colhi- 
dos, na  terra  húmida,  e  deixando-os  apodrecer  parcialmente.  De  modo, 
que  o  nosso  escriptor  não  tinha  rasão,  quando  negava  a  existência  d'este 
processo,  que  mais  ou  menos  vagamente  havia  chegado  ao  conheci- 
mento de  alguns  dos  antigos  escriptores. 

(Cf.  Loureiro,  Fl.  Cochinch.,  i,  267 ;  Rumphius,  Herb.  Amb.,  11,  29  a  40; 
Pomet,  Hist.  gen.  des  Drogues,  1 14,  edição  de  1735 ;  Dymock,  Mat.  med., 
674;  Guibourt,  Drogues  simples,  iii,  337;  Crawfurd,  Dict.,  6). 

E  forçoso  confessar,  que  o  nosso  Orta  não  teve  noções  muito  claras 
nem  muito  exactas  sobre  a  procedência  do  linaloes.  Indica  correcta- 
mente que  se  encontrava  em  Malaca;  mas  acredita  também  que  vinha 
de  Sumatra,  o  que  não  era  verdade,  e  deixa  de  mencionar  algumas 
das  regiões  clássicas  da  sua  producção.  Não  falia,  por  exemplo,  em 
Champá.  Este  nome  dava-se  desde  tempos  muito  antigos  á  costa  da 
Cochinchina;  e  todos  os  viajantes,  que  ali  ou  nas  proximidades  pas- 
saram, mencionam  a  abundância  n'aquella  terra  de  madeira  de  aloés: 
Marco  Polo  diz  que  era  frequente  na  região  a  que  chama  Chamba; 
Nicolo  di  Conti  também  se  refere  á  existência  da  madeira  em  Ciampa; 
e,  muitos  annos  depois,  Rumphius  affirma  que  o  melhor  calambac 
vinha  de  Tsjampaa.  Os  portuguezes,  anteriores  a  Orta  ou  seus  contem- 
porâneos, também  conheciam  mais  ou  menos  completamente  aquella 


Do  linaloes  63 

região  e  a  sua  preciosa  madeira.  Assim,  Duarte  Barbosa  escrevia: 
. . .  nhiãa  muy  grande  ilha  (enganava-se,  julgando  ser  uma  ilha)  de  Gen- 
tios, que  chamaom  Champa. ..  também  (ali)  nase  muyto  lenho  aloés, 
a  que  os  índios  chamaom  Aguila  calambua ...» 

E  Camões  dizia  o  seguinte  :  ♦ 

Eis  corre  a  costa  que  Champá  se  chama, 
Cuja  mata  hé  do  pao  cheiroso  ornada. 

É  verdade,  que  tanto  Duarte  Barbosa  como  Camões  eram  dois  via- 
jantes aventurosos,  e  o  nosso  Orta  estava  mais  sedentário  em  Goa. 
Ainda  que  elle  tivesse  sabido  da  existência  de  Champa  e  do  seu  lina- 
loes, não  teria  podido  averiguar  uma  circumstancia,  que  muito  o  teria 
auxiliado  nas  suas  leituras,  evitando-lhe  alguns  erros.  Não  lhe  era  fácil 
reconhecer,  que  Champá  era  o  Sinf  ou  Sanf  dos  geographos  árabes; 
de  feito  Sanf  é  litteralmente  Champ,  dadas  as  condições  e  defficiencias 
do  alphabeto  arábico.  Ora,  os  antigos  escriptores  arábicos,  por  exemplo 
Maçudi,  faliam  repetidas  vezes  do  aloés  vindo  de  Sinf     ,jc^\  ^ax)!, 

al-'ud  as-sinfi,  ou  das  costas  do  mar  do  Sinf — o  golfo  de  Sião.  De  Sanf 
ou  Champa  era,  pois,  o  lenho  alães  que  Avicenna  chama  al-sanfi;  o  que 
Serapio  diz  vir  de  Seif^;  e  o  que  Ruellio  ou  Paulo  de  Egina  chamavam 
safico,  porque  vinha  da  cidade  de  Safo.  Sob  todos  estes  nomes,  mais 
ou  menos  alterados,  escriptos  com  maior  ou  menor  consciência  do  que 
na  realidade  significavam,  estava  o  nome  árabe  de  Champa,  Sanf,  a  pá- 
tria por  excellencia  do  lenho  aloés.  E  Orta  esforçava-se  por  identificar 
aquella  região  com  Ceylão,  onde  nunca  houve  lenho  aloés,  o  que  real- 
mente não  tinha  senso  commum. 

E,  como  um  erro  attrahe  outro,  tendo  identificado  o  Seif  de  Serapio 
com  Ceylão,  e  dizendo  aquelle  escriptor  arábico  que  de  Seif  ao  ponto 
onde  nascia  o  aloés  alcomori   (^.'_^£M   ^_i^^i  <^l-'ud  al-qarnari  em 

Maçudi),  era  uma  curta  distancia,  Orta  identifica  este  ponto  com  o  cabo 
Comorim,  levado  pela  indicação  de  Serapio,  e  pela  similhança  de  som, 
quando  é  certo  que  no  cabo  Comorim  também  se  não  encontra  lenho 
aloés.  Era  exacto  o  que  dizia  Serapio,  e  o  aloés  alkumeri  nascia  perto 
do  Sinf,  mas  muito  longe  de  Ceylão  e  do  cabo  Comorim,  como  vamos 
ver.  O  incansável  viajante  mouro,  Ibn  Batuta,  fallando  de  uma  região 
a  que  chama  Muljaua,  e  que  sir.  H.  Yule  por  muitas  e  boas  rasões  jul- 
gou estar  situada  nas  costas  do  golfo  de  Sião,  em  frente  ou  ao  norte 
do  Cambodja,  disse  que  ali  havia  muito  pão  de  aloés,  principalmente 
nas  localidades  chamadas  Kakula  e  Kumara.  Esta  ultima  devia  ser 


'  Talvez  erro  de  translitteraçáo  nas  traducçóes  latinas;  deverá  ser  Sinf  no  códice 
arábico. 


64  Colóquio  trigésimo 

a  origem  do  aloés  alkumeri,  e,  dado  que  o  nome  de  Sinf  ou  Sanf 
se  alargasse  então  — como  parece  que  se  alargava —  á  Cochinchina 
meridional  e  mesmo  ao  Cambodja,  vê-se  que  a  indicação  de  Serapio 
era  exacta,  e  que  de  Kumara  ao  Sanf  seria  viagem  de  três  dias. 

Não  fallaremos  em  outras  identificações  de  Orta  manifestamente  er- 
radas, como  é  a  de  Catai  com  Cantão,  quando  Catai,  Cathay,  ou  Ca- 
thayo  era  um  nome  geral  da  China. 

Ao  fazer  aquellas  identificações,  Orta  encontrou-se  face  a  face  com 
uma  diflficuldade,  pois  elle  sabia  muito  bem,  que  nem  em  Ceylão,  nem 
no  sul  da  índia  havia  fáo  de  aguila  verdadeiro.  Pretendeu  no  emtanto 
torneal-a,  dizendo-nos  que  ali  existia  uma  espécie  inferior  de  linaloes, 
a  que  chamavam  aguila  brava.  Julgo  que  a  aguila  brava  seria  a  ma- 
deira de  sândalo,  posto  que  Orta  não  faça  esta  identificação,  nem  n'este 
Colóquio,  nem  n'aquelle  em  que  posteriormente  trata  do  sândalo,  e  jul- 
go-o  pelos  seguintes  motivos:  o  sândalo  (Santalum  álbum)  encontra-se 
nas  florestas  de  Mysore  e  outras  do  sul  da  índia,  e  serve  algumas  vezes 
para  adulterar  o  linaloes.  O  escriptor  árabe  Mir  Mohammed  Hussein, 
no  seu  livro  Makh^an  — citado  por  Dymock —  diz  o  seguinte:  «as  apa- 
ras ou  fragmentos  de  ud  são  um  objecto  de  commercio  na  Índia  sob  o 
nome  de  chúra  agar,  e  são  muitas  vezes  adulterados  com  os  pequenos 
cavacos  de  madeira  de  sândalo,  ou  taggar,  uma  madeira  cheirosa  muito 
parecida  com  o  aloés  e  commum  na  índia».  Se  acrescentarmos,  que 
Orta  nos  conta  como  os  Baneanes  se  queimavam  com  aguila  brava, 
sabendo  nós  por  outras  fontes,  quão  geralmente  a  madeira  de  sândalo 
é  empregada  na  cremação  dos  cadáveres  da  gente  rica  na  índia,  torna-se 
muito  plausivel  a  identificação  da  aguila  brava  com  o  sândalo. 

Em  resumo,  vemos  que  Orta  tinha  perfeita  noticia  dos  nomes  va- 
riados do  linaloes,  do  aspecto  e  qualidades  da  madeira,  da  sua  proce- 
dência das  terras  de  Malaca;  mas  sabia  menos  no  que  dizia  respeito 
á  sua  producção  nas  regiões  mais  orientaes  de  Sião  e  Cochinchina. 

(Cf.  Duarte  Barbosa,  Livro,  SyS;  Lusíadas,  x,  129;  Yule,  Marco 
Polo,  II,  25o;  Nicolo  di  Conti,  em  índia  in  the  fifteenth  century,  16; 
Yule,  Cathay,  469  e  seguintes;  Dymock,  Mat.  med.,  676;  Maçudi, 
Prairies  d'or,  i,  169  e  33o;  Rumphius,  I.  c.) 

Orta  esqueceu-se  de  nos  fallar  no  emprego  do  linaloes,  e  comtudo 
esse  emprego  interessava-o,  pois  esta  madeira  figurava,  e  desde  tempos 
muito  remotos,  na  pharmacia  e  matéria  medica  indiana,  considerando-a 
ali  estimulante,  carminativa  e  tónica.  Usava-se,  porém,  principalmente 
como  perfume,  e  ainda  n"este  ponto  o  nosso  informador  é  Duarte  Bar- 
bosa, que  diz  assim : 

« . . .  he  a  fina  Aguila  Calambua  muy  estimada  antre  hos  índios  e  Mou- 
ros, e  vai  em  Calecut  ho  arrátel  dela  trinta  e  corenta  pardaos;  eles  ho 
querem  pêra  ho  mesturarem  com  sândalo,  almisquere,  e  agoa  rosada, 
pêra  se  untarem.» 


Do  linaloes  65 

O  preço  variava  muito,  segundo  a  qualidade;  e  o  mesmo  Duarte 
Barbosa  nos  diz,  que  a  Aguila  (provavelmente  ordinária)  valia  de  Soo 
a  400  fanões  a  farazola,  emquanto  o  Lenho  aloés  verdadeiro,  negro, 
pesado  e  muito  fino,  valia  1:000  fanões.  E  não  só  variava  no  preço,  mas 
ainda  no  modo  de  pesagem,  no  numero  de  farazolas  que  entravam  no 
baar,  ou  bahar,  na  importância  do  picotaa,  e  em  outras  complicações 
do  commercio  oriental.  Assim,  no  porto  de  Hormuz,  a  agiiilla  fina 
era  pesada  por  um  certo  modo ;  outra  aguilla  somenos,  por  ser  mais 
branca  e  mais  leve,  de  modo  diverso;  e  a  aguillaruym  ainda  por  outra 
maneira.  D'estas  indicações  se  vê  bem,  como  aquella  madeira  era  no 
Oriente  uma  mercadoria  procurada  e  de  alto  preço. 

E  não  era  simplesmente  procurada  no  Oriente,  vinha  também  para 
a  Europa,  onde,  durante  muito  tempo,  figurou  nas  mais  celebradas 
e  complicadas  composições  da  antiga  pharmacia.  O  lenho  aloés  foi  um 
ingrediente  obrigado  de  quasi  todas  as  Confectionibiis  aromaticis.  Na 
cabeça  do  rol  dos  componentes  do  Electarium  de  aromatibus  domini 
Mesues  figurava  uma  certa  quantidade  de  Ugni  Aloés  crudi,  com  a  com- 
petente indicação,  sume  electissimum.  Entrava  igualmente  na  Confectio 
ex  moscho  amara,  e  dulcis,  e  nos  famosos  Electarium  de  gemmis  e  Ele- 
ctarium  Diambra,  não  fallando  de  muitas  outras  composições,  então 
de  uso  frequente  e  quotidiano. 

Fabricavam-se  também  com  aquella  madeira  pequenos  objectos,  no- 
meadamente contas  e  rosários,  que  tinham  a  vantagem  de  serem  per- 
fumados, e  que  o  botânico  Clusius  viu  em  Lisboa :  fiunt  interdum  ex 
eo  sphcprulcs,  quce  ad  preces  ad  numeram  recitandas  idonece,  odoris 
jucunditate  et  pretii  magnitudine  commendabiles. 

Hoje,  o  lenho  aloés,  como  tantas  outras  substancias,  desappareceu 
da  circulação  europêa;  mas  continua  a  encontrar-se  nos  mercados 
orientaes,  por  exemplo,  no  de  Bombaim  (Cf.  Dymock,  1.  c. ;  Duarte  Bar- 
bosa, 1.  c.  e  p.  384;  Lyvro  dos  pesos,  8;  Concórdia  pharmacopolarum 
Barcinonensium,  Barcinone,  1587,  a  p.  23  etc;  Clusius,  Exoticorum,  173). 


Nota  (2) 

Orta,  como  vulgarmente  se  diz,  deitou  a  hvraria  abaixo.  Alem  de 
mencionar  quasi  todos  os  seus  auctores  validos,  e  já  repetidas  vezes 
nomeados  nos  Colóquios  anteriores,  Dioscorides,  Galeno,  Plinio,  Avi- 
cenna,  Serapio,  Aecio  de  Amida,  Paulo  de  Egina,  João  Ruellio,  An- 
tónio Musa,  Mattheus  Sylvatico,  sob  o  nome  de  Pandetario,  Valério 
Cordo,  Fernando  de  Sepúlveda,  e  os  frades  italianos,  commentado- 
res  de  Mesué,  alem  de  se  referir  de  passagem  a  Rasis,  Averrões  e  Isaac 
Judeus,  elle  cita  dois  ou  três  escriptores,  ainda  não  mencionados  até 
aqui. 


66  Colóquio  trigésimo 

Em  primeiro  logar  Savonarola,  um  Miguel  Savonarola,  que  havia  es- 
cripto  alguns  livros  de  medicina,  o  Opus  de  balneis,  impresso  no  anno 
de  1485,  e  a  Pratica  de  cegritiidinis,  impressa  no  de  1478,  havendo  uma 
edição  posterior  das  suas  obras,  sob  o  nome  de  Pratica  canónica,  Lu- 
gduni,  i56o.  Não  se  segue  da  citação,  que  Orta  possuisse  estes  livros, 
antes  parece  conhecel-os  unicamente  pelo  que  disseram  os  frades  ita- 
lianos, fra  Bartholomeo  e  fra  Angelo  Palia. 

Em  segundo  logar,  Orta  cita  Sinforiano,  um  medico  francez,  per- 
tencente á  casa  do  duque  de  Lorena,  chamado  Symphorien  Champier, 
escriptor  fecundo  e  um  tanto  phantasista.  Compoz,  alem  de  outros,  um 
livro  intitulado  Campus  Elysius  Gallice,  no  qual  exaltava  as  cousas  da 
Europa,  mais  particularmente  as  da  França,  e  de  certo  mais  particular- 
mente ainda  as  da  cidade  de  Lyão,  de  onde  era  natural.  Nunca  vi  este 
livro,  mas  sem  duvida  ali  se  encontrará  a  afíirmação  a  que  Orta  se  re- 
fere (Cf.  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  291 ). 

Orta  cita  também  pela  primeira  vez  um  livro,  intitulado  De  propie- 
tatibus  (sic)  rerum.  Era  um  livro  muito  conhecido  e  muito  famoso, 
escripto  por  um  frade  inglez,  Bartholomeu  de  Glanvilla,  e  que  teve  uma 
grande  circulação  e  foi  traduzido  em  varias  linguas  mesmo  antes  da 
invenção  da  imprensa — a  Bibliotheca  Nacional  possue  um  primoroso 
códice  d'esta  obra,  que  pertenceu  á  livraria  de  Alcobaça.  Teve  depois 
numerosas  edições,  sendo  a  primeira,  de  que  se  conhecem  exemplares, 
do  anno  de  1480,  com  o  seguinte  titulo:  Incipit prohemium  de proprie- 
tatibus  rerum  fratris  Bartholomei  anglici.  Alem  de  uma  versão  franceza 
com  um  titulo  singular,  Le  proprietaire  des  choses,  existem  outras  e  no- 
meadamente uma  hespanhola,  feita  por  fr.  Vicente  de  Burgos,  impressa 
emTolosa  no  anno  de  1494,  tendo  o  seguinte  titulo:  El  libro  de propie- 
tatibus  (sic)  rerum.  E  perfeitamente  possível  que  o  erro  de  orthographia 
do  titulo  se  reproduzisse  casualmente  nos  Colóquios;  mas  também  é 
possível  que  Orta  copiasse  com  demasiada  fidelidade  aquelle  titulo, 
e  n'este  caso  elle  possuia,  ou  havia  visto  a  edição  hespanhola.  N'essa 
edição,  encontra-se  o  seguinte  (libro  xvn,  cap.  v),  a  propósito  do  alces 
ou  linaloes :  . .  .  la  hallan  en  un  grâd  rrio,  que  viene  dei  parayso  ter- 
renal y  se  ayunta  cò  otro  que  passa  en  babilónia, y  por  esto  di^ê  algunos 
que  este  arbol  cresce  en  el  parayso  terrenal . . .  E  esta  a  passagem  que 
Orta  citou. 

Orta  menciona  pela  segunda  vez  n'este  Colóquio  o  Modus  faciendi, 
que  já  tinha  mencionado  no  Colóquio  vigésimo  terceiro;  e  é  esta  a  oc- 
casião  opportuna  de  emendar  o  que  então  disse.  Quando  escrevi  as 
notas  áquelle  Colóquio  (vol.  i,  p.  352)  eu  lembrei  que  este  livro  po- 
deria ser  o  Modum  faciendi  in  medicina  de  fr.  Bernardino  de  Laredo. 
Notei,  porém,  que  embora  este  livro  fosse  escripto  muito  antes  do 
tempo  de  Orta,  a  sua  primeira  edição  conhecida  é  de  1617,  e,  portanto, 
o  nosso  escriptor  só  poderia  ter  visto  o  manuscripto,  ou  algum  exemplar 


Do  linaloes  67 

de  uma  edição  anterior,  não  indicada  pelos  bibliographos.  Deixei  assim 
as  cousas  em  duvida.  Depois  de  publicado  o  primeiro  volume,  o  dr.  Ca- 
simiro Simão  da  Cunha  communicou-me  amavelmente  o  exemplar  que 
possue  do  Modiis  faciendi,  que  é  um  livro  diverso  do  de  fr.  Bernardino, 
e  sem  duvida  alguma  o  que  foi  citado  por  Orta.  Intitula -se,  Modus  fa- 
ciendi: cum  ordine  medicandi,  e  é  impresso  no  anno  de  i534,  faltando 
a  ultima  folha  em  que  devia  estar  o  local  da  impressão — provavelmente 
Sevilha.  O  auctor  conserva  o  anonymo,  dizendo-nos,  comtudo,  que  era 
frade  menor,  ou  franciscano,  como  se  vê  da  seguinte  dedicatória:  Al 
muy  illustre  y  reverendissimo  S.  Dõ  Allonso  Manrriqiie,  Cardenal  dei 
titulo  duodeci  apostolorum,  Arçobispo  de  Sevilha,  Inquisidor  mayor  en 
los  reynos  y  senorios  de  Espana,  etc.  De  vuestros  frayles  menores  el 
mas  indigno  y  menor.  O  livro  é  um  minucioso  e  curioso  tratado  de 
pharmacia,  e  é  sem  a  menor  duvida  o  que  Orta  citou.  A  folha  xiii  verso 
encontra-se,  a  propósito  do  folio  indo,  tudo  quanto  repete  o  nosso  es- 
criptor  (vol.  i,  p.  345),  isto  é,  que  vinha  da  terra  do  Preste  João,  que 
lhe  mandaram  algumas  folhas,  dizendo-lhe  serem  da  arvore  da  canella, 
etc.  E  certíssimo  que  ali  se  encontrará  também  a  phrase  relativa  á 
procedência  paradisíaca  do  linaloes;  mas  confesso  não  ter  lido  todo 
o  grosso  tratado  em  busca  d'aquella  phrase:  a  identificação  do  livro 
estava  sem  isso  perfeitamente  demonstrada. 

Na  nota  a  que  já  me  referi,  ao  Colóquio  vigésimo  terceiro,  disse  eu 
que  não  havia  alcançado  noticia  do  Luminare  majus.  Vê-se  de  varias 
citações  do  Modus  faciendi,  que  o  Luminare  majus  era  também  um 
tratado  de  pharmacia  e  matéria  medica,  -escripto  por  um  certo  Joanes 
Jacobi  (Cf.  Modus  faciendi,  foi.  xxi  verso). 


COLÓQUIO  TRIGÉSIMO  PRIMEIRO 

DO  PAO  CHAMADO  CATE  DO  VULGO, 
E  DIZSE  NELLE  COUSAS  PROVEITOSAS 


INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

Queixandome  da  relaxaçam  e  molificaçam  das  gengivas, 
me  dixe  a  vossa  cosinheira  que  comese  betre  e  areca  e  cate, 
tudo  mesturado;  e  mais  me  dixe  que  o  cate  só  era  milhor 
que  tudo;  e  proveio,  e  tem  hum  sabor  estitico,  e  amarga 
alguma  cousa.  E  dixeme  também  que  sabia  muito  bem  a 
aguoa  bebida  sobre  elle,  e  proveia,  e  não  me  soube  tam  bem 
como  isso,  pollo  sabor  amarguoz;  entonçes  me  dixe  que,  com 
a  mestura  do  betre  e  areca,  sabia  muyto  bem;  e  certo  que 
a  mim  me  parece  muyto  boa  mesinha  pêra  desecar  e  aper- 
tar. Saibamos  donde  he,  e  como  se  chama,  e  como  se  faz; 
e  mais  queria  saber  a  feiçam  do  arvore,  e  pêra  que  se  usa 
em  mesinhas  desta  terra,  e  se  fazem  alguns  escritores  me- 
moria disto. 

ORTA 

Ha  este  pao  em  Cambaia  a  maior  cantidade,  scilicet,  nas 
terras  de  Baçaim,  e  Manora  e  Damam,  cidades  delrey  nosso 
senhor,  com  suas  terras;  também  o  ha  em  as  terras  firmes 
de  Goa  e  em  outras  muytas  partes;  mas  nam  em  tanta  canti- 
dade como  nas  terras  que  dixe,  porque  dali  se  levam  pêra 
Malaca»  e  pêra  a  China,  e  isto  em  muyta  cantidade;  e  tam- 
bém isso  levam  pêra  Arábia,  e  Pérsia  e  Coraçone;  mas  isto 
he  per  via  de  mezinha  em  pouca  cantidade;  mas  pêra  a 
China  e  Malaca  se  gasta  em  muita  cantidade,  porque  se  co- 
me com  o  betre.  E  acerca  de  todos  se  chama  cate,  e  em 
Malaca  cato;  e  alguns  varião  este  nome  pouco;  e  já  pode 
ser  que,  pois  os  Arábios  e  Pérsios  e  toda  a  gente  desta  terra 
lhe  chamam  cate,  ou  variam  pouco,  que  seja  a  causa  disto 


70  Colóquio  trigésimo  primeiro 

gastarse  a  maior  cantidade  nas  bandas  de  Malaca,  onde  lhe 
chamam  o  dito  nome,  asi  como  se  faz  no  costo,  como  vos 
já  dixe ',  porque  chamandose  na  sua  própria  terra  iiplot,  lhe 
chamam  todos  piicho;  porque  he  grande  mercadoria  pêra 
Malaca,  onde  se  chama  asi*.  E  o  arvore  donde  se  faz  este 
cate  he  tam  grande  como  hum  freixo,  e  a  folha  he  myuda 
como  a  das  urzes,  ou  jounas,  que  chamam  em  Portugal; 
e  também  o  podemos  comparar  á  tamargueira;  tem  muytos 
espinhos,  e  todo  o  anno  tem  folha;  he  pao  muyto  rijo  e  mo- 
cico  e  pesado;  nunqua  podrece,  segundo  dizem,  nem  com 
sol,  nem  com  aguoa,  e  tanto  que  se  chama  este  pao,  acerca 
delles,  pao  que  sempre  vive;  sofre  este  pao  muyto  os  golpes; 
por  isto,  e  por  ser  muyto  pesado,  se  fazem  delle  huns  paos 
com  que  tiram  a  casca  ao  arroz  nesta  terra,  e  chamamse 
pilões;  e  pisam  em  hum  pao  muyto  grande,  feito  á  feiçam 
de  gral;  e  este  pao,  que  metem  dentro  a  pisar,  he  feito  como 
mão  de  gral,  e  de  comprimento  de  seis  palmos.  A  este  ar- 
vore chamam,  na  terra  donde  nace,  hacchic**:  e  pode  ser 
que  por  eu  não  saber  a  lingoa  desta  terra  tam  bem  como 
a  portugueza,  não  pude  saber  a  rezam  porque  lhe  chamam 
cate:  mas  abaste  a  rezam  acima  dita. 

RUANO 

Está  bem  relatado  tudo  isso  que  dizeis;  mas  queria  saber 
se  tem  flores  ou  fruta. 

ORTA 

Flores  tem,  mas  fruta  me  dizem  que  não  a  tem. 

RUANO 

Dizei  o  modo  de  confeiçoar  estes  troçiscos  ou  formas  que 
trazem. 


*  Veja-se  o  Colóquio  decimo  sétimo,  e  as  suas  notas. 

*•  Na  edição  de  Goa  está  hac  chie,  se  intencionalmente,  se  por  erro 
não  o  saberei  dizer,  pois  não  identifiquei  este  nome. 


Do  cate  71 

ORTA 

Tomam  estes  paos  cortados  deste  arvore  muyto  meudos, 
e  cosem  os  e  pisamnos;  e  delles  fazem  formas,  a  modo  de 
trociscos  ou  chans,  e  formam  as  com  farinha  de  nachani, 
que  he  huma  semente  preta  e  meuda  de  que  fazem  pam, 
que  sabe  como  centeo;  e  com  esta  farinha  e  cinza  de  hum 
pao  preto  que  ha  na  terra,  ou  sem  ella,  formão  estas  talha- 
das, e  as  enxugam  á  sombra*,  porque  não  lhe  tire  o  sol  a  sua 
virtude.  E  pois  estas  gentes  todas  o  gastam,  e  os  Chins, 
sendo  tam  descretos  e  sabidos,  podeis  asentar  que  he  muyto 
boa  mezinha;  quanto  mais  que  eu  a  esprementei  em  cama- 
rás e  em  paixões  dos  olhos,  e  acheia  mu3to  boa.  E  quanto 
he  o  saber  se  fazem  mençam  delia  alguns  escritores,  dir- 
voshia  huma  cousa  que  eu  tenho  por  muj^to  certa  pêra  mim, 
se  me  derdes  licença  (i). 

RUANO 

Antes  me  fareis  nisso  muyta  mercê. 

ORTA 

Diguo  que  o  cate  he  o  que  chamam  Galeno  e  Plinio,  e 
Dioscorides  e  Avicena,  e  Serapiam  e  Rasis  liciíim;  e  os  Gre- 
gos lhe  chamam  liciími,  porque  se  "achou  primeiro  em  Licia 
(província  da  Turquia)  ou  porque  ahi  se  achava  milhor  nesses 
tempos;  e  os  Arábios,  como  Avicena  e  Serapiam,  o  chamão 
hacdadh. 

RUANO 

Pois  como  dizeis  que  he  esse  o  licio,  poisque  não  se  chama 
cate  por  os  escritores  Arábios,  nem  por  o  arábio  vulgar? 
E  pois  que  isto  asi  he,  me  dizey  porque  chamaes  cate  ao 
li cio. 

ORTA 

Chamolhe  asi,  porque  todos  os  escritores  modernos  e  an- 
tigos, Gregos,  e  Arábios,  e  Latinos,  e  índios,  todos  prefe- 
rem o  Índio  e  licio*  a  todos  os  outros;  e  mais  porque  he  este, 


•  Sic  na  edição  de  Goa;  mas  ha  aqui  uma  inversão  evidente.  Deve 
ler-se  o  licio  indio,  ou  da  índia. 


72  Colóquio  trigésimo  primeiro 

e  asi  o  ensinam  a  fazer  todos,  como  cá  se  faz;  e  mais  por- 
que as  cousas  todas  pêra  que  aproveita  o  licio  usam  nesta 
terra  a  fazer  do  cate;  mais  porque  tem  as  condições  que 
ade  ter  o  bom  licio;  e  aproveita  ao  fluxo  dos  olhos  e  forti- 
fica as  gengivas  e  dentes,  e  lhe  mata  o  bicho,  se  o  tem  criado 
nelles  ou  nas  gengivas;  e  aproveita  pêra  a  garganta  e  pêra 
as  lombrigas  e  pêra  as  camarás.  E,  quanto  he  a  não  o  cha- 
marem os  Arábios  cate,  a  isto  vos  respondo  que  muytas 
cousas  perdem  o  nome  na  própria  lingoa  com  o  uso  da  lingoa 
alhea.  E  já  pode  ser  que,  se  me  vir  com  físicos  Arábios, 
que  me  digam  se  tem  na  lingoa  arábia  outro  nome.  Porque 
vos  disse  que  todos  falavão  neste  simple,  digo  que  Galeno 
diz*  que  he  huma  arvore  espinosa,  e  que  o  melhor  he  o  da 
índia,  e  que  ha  muito  em  Licia  e  Capadócia,  e  tem  virtude 
de  restringir  e  de  secar;  e  o  mais  que  diz  não  faz  ao  caso. 
Plinio**  dá  vantagem  ao  indio,  e  diz  que  se  traz  em  odres 
de  camellos  e  rinocerotes,  e  diz  a  maneira  como  se  fazem, 
e  todos  concordam.  E  porque  já  vos  disse  como  se  fazia, 
nisto  não  fallo  mais. 

RUANO 

Por  não  estrovar  pratica  tam  boa,  não  vos  pergunto  por 
esses  odres,  e  ao  fim  volo  lembrarei. 

ORTA 

A  tudo  vos  responderei;  e  diguo  que  Dioscorides  louva 
mais  o  da  índia,  e  pÕe  a  feiçam  da  arvore,  e  não  a  difere 
da  arvore  do  cate,  senão  em  pouquo,  e  mais  em  fazer  ar- 
vore pequena,  sendo  grande;  e  diz  como  se  parece  ao  buxo, 
e  que  o  mais  nace  em  Licia  e  Capadócia;  e,  quando  diz  o 
pêra  que  aproveita,  diz  como  os  outros  que  tem  virtude  de 
apertar  e  confortar.  E  lendo  o  capitulo  de  Dioscorides,  ve- 


*  Galeno,  7,  Simplicium  (nota  do  auctor). 

»*  Plinius,  libr.  24,  cap.  14  (nota  do  auctor);  a  citação  é  exacta, 
no  sentido  de  Plinio  fallar  do  lycion  no  livro  xxiv;  mas  errada  em  ser 
no  livro  XII,  que  elle  diz  parte  do  que  Orta  repete. 


Do  cate  jS 

reis  como  os  índios  usam  delle,  da  maneira  que  elle  diz. 
Avicena  o  chama  hacdadh;  diz  que  he  mais  forte  e  melhor 
o  da  índia,  que  o  que  vem  de  Meca;  o  qual  de  Meca  sey 
eu  que  he  este  que  vay  da  índia;  e  diz  que  quando  delle 
carecermos,  que  em  seu  lugar  ponhamos  areca  e  sândalo. 

RUANO 

Para  isso  melhor  diz  a  vossa  cozinheira,  que  o  faz  de  be- 
tele  e  areca  e  o  mesmo  cate*. 

ORTA 

Estes  tem  isto  por  uso  do  principio  da  povoaçam  desta 
terra;  e  mais  Rasis  diz**  que  se  faz  de  çumo  de  berberis, 
feito  muyto  basto  por  cozimento;  e  o  mesmo  diz  Serapiam 
chamandoo  hacdadh. 

RUANO 

E  os  novos  escritores  que  julgam  disto? 

ORTA 

Sepúlveda  diz  que  o  façam  de  çumo  de  madresilva,  e  o 
mesmo  diz  Valério  Probo;  e  Laguna  diz  que  carecemos  do 
verdadeiro  licio.  António  Musa  também  diz  que  o  não  co- 
nhece, senão  que  por  os  sinaes  de  Dioscorides  lhe  parece 
ser  buxo.  Os  Frades  desejão  muyto  que  se  ache  o  verda- 
deiro licio;  porque  felu^alaitge,  que,  per  conselho  de  Avi- 
cena, se  põe  em  seu  lugar,  que  he  a  arvore  do  licio,  segundo 
a  traduçam  do  Belunense,  também  carecemos  delia;  e  que 
pêra  porem  em  seu  lugar  faufel,  que  he  areca,  e  sândalo, 
como  diz  Avicena,  he  mais  deficultoso  de  aver  o  faufel,  e 
mais  diz  que  não  sabem  bem  o  que  he. 

RUANO 

Como,  não  ha  muito  sândalo  vermelho  em  Portugal  se  de 
qua  vay,  não  podem  levar  muyta  areca? 


*  Uma  boa  phrase,  cheia  de  bom  humor  e  de  malícia. 
**  Rasis,  3  ad  Almansorem  (nota  do  auctor). 


74  Colóquio  trigésimo  primeiro 

ORTA 

Si;  mas  sam  os  boticairos  portuguezes  pouco  deligentes 
em  aver  mezinhas,  e  muito  em  aver  dinheiro;  porque  se 
elles  a  pedisem  em  Portugal  na  Gaza  da  índia,  levalaiani 
de  cá  em  abundância. 

RUANO 

Asi  que,  não  se  achando  o  nosso  licio,  vós  afirmaes  que 
aproveitará  estoutro  indio;  e  não  oulhaes  que  se  chama  licio, 
porque  ha  o  melhor  em  Licia  e  Capadócia,  que  parece  que 
este  se  deve  perferir  a  todos. 

ORTA 

Eu  nam  digo  que  se  deite  em  lugar  o  licio  indiano  do  licio 
de  Licia,  mas  diguo  que,  quando  falecer  o  da  índia,  se  deite 
o  de  Licia,  porque  esta  he  a  entençam  de  todos  os  escri- 
tores; e  que,  quando  elle  faltar,  que  usem  do  feyto  de  ber- 
beris  e  de  madresilva,  ou  de  amexas  bravas  estiticas.  E  ao 
que  dizeis,  que  se  chama  licio  por  excelência  por  ser  de 
Licia,  digo  que  não  he  asi  com  perdam  de  vossa  mercê, 
senão  porque  ahy  se  achou  o  uso  delle  primeiro,  scilicet, 
achouse  o  uso  desta  mezinha,  que  se  parecia  com  o  da  ín- 
dia, e  que  por  falta  e  defeito  do  da  índia  se  avia  de  deitar: 
e  esta  he  a  verdade,  e  outra  não;  porque  em  nenhuma  re- 
giam se  usa  deste  cate  tanto,  como  nesta  terra  (2), 

RUANO 

Levaloei  desta  terra,  e  usarei  delle,  pois  que  cá  fez  os 
efeitos  que  dizeis;  e  mais  será  bem  que  me  digaes  se  ha 
nesta  terra  muytos  odres  de  camellos  e  de  rinocerotes,  como 
diz  Plinio,  que  nelles  o  levam,  pêra  vermos  a  cantidade  delles 
por  o  seu  coiro. 

ORTA 

Eu  não  vi  odres  de  camellos  desta  terra;  posto  que  no 
Decam  e  em  o  Guzarate  ha  alguns  camellos,  que  tem  os 
reys  e  os  capitães  pêra  levar  o  fato  na  guerra;  mas  nem 
sam  tantos  os  que  morrem  como  cavallos,  pêra  que  delles 
façam  odres.  E  quanto  he  aos  rinocerotes  (a  que  os  índios 


Do  cate  76 

chamam  gandas),  não  os  ha  domésticos  nesta  terra;  e  pode 
ser  que  os  aja  bravos  em  Bengala  ou  no  Patane,  e  nas  terras 
que  tem  os  Patanes  os  ha,  e  alguns  fazem  domésticos.  E 
porem  eu  não  vi  algum  rinocerote,  mas  sey  que  os  de  Ben- 
gala usam  do  corno  para  a  peçonha,  cuidando  ser  o  uni- 
corneo;  mas  elle  não  o  he,  segundo  a  entençam  dos  que 
bem  o  sabem;  porque  o  Nizamoxa  pesara  200  vezes  a  ouro 
hum  pouco  de  unicorneo  exprimentado,  e  muyto  melhor  to- 
mara o  do  renoceros*.  E  sabei  que  no  anno  de  i5i2  foi  apre- 
sentado a  elre}^  Dom  Manoel,  que  está  em  gloria,  hum  que 
lhe  mandou  elre}^  de  Cambaia,  o  qual  elle  mandou  ao  Papa. 
E  se  deste  animal  quiserdes  ver,  lede  Plinio,  libro  8,  cap.  20**; 
e  Estrabo  também  fala  deste  animal. 

RUANO 

Pareceme  isso  que  dizeis  que  não  ha  unicorneo  na  índia; 
pois  nam  falais  nelle,  e  dizeis  que  o  não  tem  esse  rey  vosso 
amiguo,  sinal  he  isso  de  o  não  aver  na  índia;  e  pois  nós 
também  não  sabemos  onde  aja  o  tal  animal. 

ORTA 

Dizem  tantas  cousas  incertas  desse  animal,  que,  por  nam 
as  saber  bem,  não  as  queria  contar;  porque  as  pessoas  que 
mas  contam,  não  as  contam  como  testemunhas  de  vista.  E 
comtudo  vos  direi  o  que  ouvi  a  pessoa  de  autoridade  em 
seus  ditos.  E  contaramme,  que  soubera  que  entre  o  cabo 
das  Correntes  e  de  Boa  Esperança  viam  huns  animaes  que, 
posto  que  folgavam  com  o  mar,  eram  terrestres,  e  a  feiçam 
da  cabeça  e  coma  era  de  cavallo,  e  que  comtudo  não  era  ca- 
vallo  marinho;  e  que  tinha  corno  do  qual  usava  abaxandoo 
ou  alçandoo  abaxo  e  acima,  e  á  parte  direita  e  á  esquerda, 
de  modo  que  dizem  ser  como  dedo;  e  que  este  animal  pe- 


*  O  sentido  não  é  claro;  parece  dizer  que  compraria  o  corno  do 
rhinoceronte,  se  julgasse  ser  unicorneo. 

•*  Plinius,  libr.  8,  cap.  20  (nota  do  auctor). 


yô  Colóquio  trigésimo  primeiro 

leja  bravamente  com  o  elefante-,  e  que  o  fére  com  o  corno, 
o  qual  corno  he  de  dous  palmos,  e  dizem  ser  contra  a  peço- 
nha: e  esta  he  a  fama  comum. 

RUANO 

Dizem  delle,  que  não  querem  beber  os  animaes,  até  que 
elle  meta  o  corno  na  agoa. 

ORTA 

Não  somente  dizem  ser  bom  bebido  contra  a  peçonha, 
e  tem  elle  esta  fama,  e  disseram  pessoas  dignas  de  fé  que 
deram  rosalgar  a  dous  cães,  e  a  hum  deram  dobrada  can- 
tidade  da  peçonha,  e  a  este  que  a  deram  dobrada,  deram 
a  beber  do  corno  delle  raspado,  e  este  viveo;  e  o  outro 
morreo,  que  tomou  menos  rosalgar  a  metade.  E  deste  ani- 
mal não  sey  outras  cousas,  e  porém  vi  já  alguns  cornos 
destes,  e  mostravam  serem  pegados  na  testa.  Prezará  a 
Deos  que  isto  se  venha  a  saber  bem-,  e  que  elle  descubra 
o  que  for  mais  seu  serviço;  e  nisto  que  escrevi  quis  ser 
mais  curto  que  larguo,  porque  leixo  que  dizer  aos  que  me- 
lhor souberem  (3). 


Nota  (i) 

O  «cate»  de  Orta,  «cato»  da  Pharmacopêa  portuguesa,  substancia 
mais  conhecida  pelo  nome  de  caiechu,  é  um  extracto  da  madeira  da 
Acaeia  Cateelin,  Willd.  (Mimosa  Catechu,  Linn.  fil.),  uma  ar- 
vore bastante  commum  na  índia,  mais  a  leste  nas  terras  de  Burmá,  e 
por  outro  lado  na  Africa  oriental;  é  também  obtido  este  extracto  de 
uma  espécie  próxima,  A.cacia  SuLina,  Kurz.,  que  se  encontra 
igualmente  na  índia. 

—  «Cate»,  a  designação  empregada  por  Orta,  é  a  natural  orthogra- 
phia  portugueza  do  seu  nome  hindustani,  que  hoje  escrevem  kat  ou 
kath.  Drury  diz,  que  a  palavra  cate  significa  arvore,  e  chu  sueco,  d'onde 
catechu;  mas  não  sei  se  esta  affirmação  tem  fundamento.  Duarte  Bar- 
bosa —  como  logo  veremos —  dá  á  mesma  substancia  o  nome  de  cacho, 
que  é  a  designação  tamil,  canarim  (lingua  do  Canará)  e  malaya,  kashú, 
ou  kachu;  e  «cato»,  empregado  em  Malaca  segundo  Orta,  é  uma  simples 
alteração  de  cate,  ou  de  cacho. 


Do  cate  77 

— Não  vejo  que  o  nome  da  arvore  seja  «hac  chic),  como  diz  Orta; 
nem  encontro  cousa  parecida  com  esta  expressão.  O  nome  vulgar  da 
Acácia  Catechu  é  kaira,  kayer  e  outras  formas  similhantes  (Cf.  Fluck. 
e  Hanb.,  Phamiac.,  2i3;  Dymock,  Mat.  med.,  288;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i, 
63;  Drury,  Useful  plants,  6;  Piddington,  Index,  56). 

Segundo  Duarte  Barbosa,  o  cacho  exportava-se  no  seu  tempo  prin- 
cipalmente do  norte  da  índia,  e  não  era  uma  substancia  muito  conhe- 
cida. Paliando  das  mercadorias  do  reino  de  Guzerate,  ou  Cambaya,  diz 
o  seguinte : 

n . . .  e  asy  outras  muytas  dragoarias  que  nós  nom  conhecemos,  e 
em  Malaca  e  China  saom  muyto  estimadas,  e  tem  grande  valia,  silicet, 
cacho,  pucho^,  e  muyto  encenso  que  vem  de  Xaer.» 

Isto  concorda  com  o  que  diz  Orta  acerca  da  sua  procedência  de 
Cambaya,  principalmente  das  terras  portuguezas  de  Damão,  Baçaim 
e  Manorá — uma  pragana  annexa  ás  terras  de  Baçaim,  desde  o  tempo 
de  Francisco  Barreto,  ou  já  antes.  E  também  concorda  no  que  diz  res- 
peito a  ser  exportada  para  Malaca  e  China,  sendo  também  certo,  que 
algum  cate  ia  para  a  Arábia  e  Pérsia,  por  via  de  Hormuz,  onde  era 
uma  mercadoria  conhecida.  É  o  que  se  pôde  deduzir  de  uma  phrase 
do  Lyvro  dos  pesos,  interessante,  porque  estabelece  explicitamente  a 
identificação  do  cacho  com  o  cate: 

«O  baar  do  cate,  que  aquy  chamao  cacho,  he  em  tudo  como  o  arroz, 
quanto  ao  peso.» 

Parece,  pois,  que  então  não  sabiam  fabricar  o  catechu  em  Pegú  e 
terras  limitrophes,  d'onde  hoje  vem  para  a  Europa  a  maior  parte,  por- 
que se  assim  succedesse  de  certo  não  iria  de  Cambaya  para  Malaca. 
Depois  d'estas  noticias  de  Barbosa  e  de  Orta,  a  droga  e  as  suas  qua- 
lidades medicinaes  caíram  de  novo  no  esquecimento;  e  quando  perto 
de  um  século  mais  tarde  algum  catechu  veio  do  Japão  á  Europa,  de- 
ram-lhe  o  nome  de  terra  japonica,  classificando-o  como  um  genus 
terrce  exoticce.  Ainda  no  anno  de  167),  Wedel  de  lena  discutia  a  di- 
versidade das  opiniões  que  vogavam  acerca  da  natureza  vegetal  ou 
mineral  do  Catechu  seu  Terra  japonica,  tão  esquecido  ou  ignorado  an- 
dava o  que  o  nosso  naturalista  havia  dito  a  respeito  de  sua  proveniência 
e  processo  de  fabricação. 

Este  processo  não  diíTeria  essencialmente  do  que  hoje  se  segue; 

'  e  o  cate  ou  catechu  era  e  é  o  extracto  aquoso  da  madeira  da  Acácia, 

concentrado  pela  acção  do  calor,  e  secco  ao  sol  ou  ao  ar,  depois  de 

moldado  em  formas.  Nos  livros  de  Dymock,  e  de  Fliickiger  e  Hanbury 

se  podem  ver  as  variantes  do  processo,  que  hoje  seguem  no  Oriente. 


'  Por  erro  de  imprensa  ou  copia,  vem  na  edição  da  Academia  escripto  cachopucho,  em 
uma  só  palavra. 


yS  Colóquio  trigésimo  primeiro 

O  que  era  especial  no  tempo  de  Orta  era  a  intervenção  da  farinha 
de  nachani,  que  misturavam  com  o  sueco  inspissado  para  formarem  os 
trociscos  ou  «chans». 

O  nachani  é  uma  graminea  de  grão  alimentar,  Eleusine  Co- 
x-acana,  Gaertn.,  chamada  na  índia  raggi,  nagli  e  nanchni,  muito 
frequente  hoje  em  cultura  na  Africa  oriental,  onde  os  portuguezes  lhe 
dão  o  nome  de  naxenim,  frequente  também  na  Africa  Occidental,  onde 
lhe  chamam  luco,  e  de  cujas  curiosas  migrações  eu  já  me  occupei  lar- 
gamente em  outro  trabalho. 

Voltando,  porém,  ao  cate,  podemos  notar  que  ainda  hoje  é  empre- 
gado na  matéria  medica  da  Europa,  como  uma  substancia  fortemente 
adstringente;  e  que  na  índia  tem  usos  medicinaes  similhantes  aos  que 
Orta  menciona.  Alem  d'isso,  é  largamente  usado  no  Oriente  como 
masticatorio,  juntamente  com  o  pán  supári  (pán  o  betle,  e  supári  a 
areca) — exactamente  a  receita  da  cosinheira  do  nosso  medico. 

(Cf  Duarte  Barbosa,  Livro,  289 ;  Lyvro  dos  pesos,  22 ;  Fliick.  e  Hanb. 
1.  c;  Dymock,  1.  c. ;  Plantas  iiteis  da  Africa  portuguesa,  41  a  55). 


Nota  (2) 

Orta  engana-se  identificando  o  cate  com  o  lycio  dos  antigos;  mas, 
como  diz  sir  H.  Yule  a  propósito  d'esta  mesma  questão,  as  suas  opiniões 
são  sempre  dignas  de  consideração  —  Orta,  whose  judgements  ar- 
always  yvorthy  of  respect. . . 

Toda  a  historia  do  lycio  estava  no  seu  tempo  muito  confusa.  Dios- 
corides,  ao  tratar  do  Xixiov,  referiu-se  evidentemente  a  duas  plantas  di- 
versas, e  que  elle  soube  muito  bem  serem  diversas:  uma  das  regiões 
mais  próximas,  da  Cappadocia  e  da  Lycia,  e  que  modernamente  se 
tem  identificado  com  uma  espécie  de  Rhamnus:  a  outra  de  regiões 
mais  distantes,  dando  um  producto  muito  superior,  e  designada  pelo 
nome  de  lycio  da  índia,  ív^wòv  Xixiov.  D'esta,  que  unicamente  nos  inte- 
ressa agora,  pois  a  ella  se  refere  Orta,  fallaram  mais  ou  menos  confu- 
samente Plinio,  Galeno,  Celso  e  outros;  e  sabemos  que  dava  uma  sub- 
stancia muito  apreciada  medicinalmente,  sobretudo  no  tratamento  das 
ophtalmias  e  outras  doenças  de  olhos,  vendida  por  altos  preços,  e 
conservada  em  uns  vasos  especiaes,  de  que  a  Pharmacographia  tran- 
screve uma  noticia  interessante.  Os  árabes  antigos  tiveram  também 
conhecimento  da  mesma  substancia,  a  que  parece  chamaram  hadhadh 
js^:acs.  (o  «hacdadh»  de  Orta),  dizendo  Avicenna  que  era  o  sueco 
do  al/elu:^aharagi  («feluzalange»  de  Orta),  o  que  pouco  esclarecia  a 
questão.  Naturalmente  todos  os  commentadores,  todos  os  Musas,  Se- 
pulvedas  e  outros  se  lançaram  em  conjecturas  mais  ou  menos  plau- 
síveis acerca  da  natureza  do  lycio;  e  Orta  aventou  a  opinião  de  que 


Do  cate  79 

íosse  o  cate,  o  que  não  era  absurdo,  pois  o  lycio  como  o  cate  era  o 
extracto  de  uma  madeira,  e  se  os  caracteres  da  Acácia  catechu  não 
concordavam  com  o  que  Dioscorides  havia  dito  da  arvore  do  lycio, 
Orta  sabia  muito  bem  que  elle  se  tinha  enganado  mais  de  uma  vez  em 
pontos  idênticos.  A  questão  continuou  a  ficar  enredada;  e  Sprengel, 
quando  já  no  nosso  século  pubHcou  a  sua  edição  de  Dioscorides,  ainda 
não  se  pronuncia  sobre  o  que  seja  o  lycio  da  índia.  Foi  só  um  pouco 
depois,  que  Royle  (i833)  mostrou  dever  ser  o  lycio  dos  antigos  análogo 
ou  idêntico  a  um  extracto,  conhecido  nos  bazares  da  índia  pelo  nome 
de  rusot,  e  obtido  de  varias  espécies  do  género  Berberis,  B.  aristata, 
D.  C,  B.  Lycium,  Royle,  e  B.  asiática,  Roxb.  (Cf,  Yule  e  Burnell, 
Gloss.,  i33;  Sprengel,  Diosc,  livr.  i,  cap.  i32;  Avicenna,  ii,  ii,  398;  Royle 
em  Linn.  Trans.,  xvii,  83;  Pharmac,  34;  Dymock,  Mat.  med ,  35). 


Nota  (3) 

Nas  notas  ao  Colóquio  vigésimo  primeiro  contámos  já  (vol.  i,  pag. 
320)  a  historia  do  rhinoceronte,  que  Muzaffar  Scháh  mandou  a  Affonso 
de  Albuquerque,  Affonso  de  Albuquerque  a  D.  Manuel,  e  D.  Manuel 
a  Leão  X;  mas  alguma  cousa  temos  a  acrescentar  sobre  o  que  Orta 
diz  em  geral  de  rhinocerontes  e  unicorneos. 

O  nosso  escriptor  admitte  a  existência  de  rhinocerontes  no  Ben- 
gala, «nas  terras  que  tem  os  Patanes»  — expressão  pela  qual  deve  de- 
signar os  estados  afghans  da  índia — ,  e  no  «Patane»,  que  seria  assim 
o  Afghanistan  propriamente  dito.  Em  toda  esta  zona  de  leste  eram 
numerosos  aquelles  animaes  — Rhinoceros  indicus,  e  talvez  também  a 
espécie  R.  sondaicus — ,  que  já  então  se  não  encontravam  ou  se  en- 
contravam excepcionalmente  na  zona  occidental.  Linschoten  diz:  índia 
abadajn  sive  rhinocerota  non  habet,  verum  in  Bengala  et  Patana  repe- 
ritur — por  índia  designa  a  parte  mais  conhecida,  ao  longo  da  costa  de 
oeste. 

Orta  diz  também,  que  «alguns  fazem  domésticos»;  e  esta  questão 
dos  rhinocerontes  domésticos  é  um  tanto  complicada.  Gaspar  Corrêa, 
descrevendo  uma  grande  batalha  entre  Báber  e  um  certo  rei  da  índia, 
chamado  Cacandar,  batalha  que  Yule  e  Burnell  dizem  não  terem  podido 
averiguar  qual  fosse,  mas  que  é  talvez  a  de  Panipát,  confusamente  en- 
volvida em  muitas  circumstancias  erradas,  diz  assim,  fallando  do  modo 
por  que  estavam  ordenadas  as  forças  de  Cacandar: 

«...  e  diante  huma  batalha  de  oitocentos  alifantes,  que  pelejavão 
com  espadas  nos  dentes  e  em  cima  castellos  com  frecheiros  e  espin- 
gardeiros.  E  diante  dos  alifantes  oitenta  gandas,  como  huma  que  foy 
a  Portugal,  a  que  chamarão  bicha,  que  no  corno  que  tem  sobre  o  fo- 
cinho tinhão  ferros  de  três  pontas  com  que  pelejavão  mui  fortemente.» 


8o  Colóquio  trigésimo  primeiro  do  cate 

Diremos  desde  já,  que  na  relação  da  batalha  de  Panipát,  dada  pelo 
historiador  Erskine,  o  qual  segue  as  Memorias  escriptas  pelo  próprio 
Báber,  se  mencionam  os  oitocentos  ou  mil  elephantes,  mas  se  não  diz 
uma  palavra  dos  rhinocerontes. 

A  noticia  de  Gaspar  Corrêa,  por  mais  estranha  que  seja,  não  é  iso- 
lada. Fernão  Mendes  Pinto,  fallando  de  um  lago  de  Chiammay  na  Indo- 
china a  que  já  nos  referimos  em  outra  nota,  affirma  que  d'ali  se  tiravam 
muitos  minérios,  os  quaes  «levam  mercadores  em  cáfilas  de  alifantes 
e  badas  aos  reinos  de  Sornau,  que  é  o  de  Sião,  Passiloco ...»  Aqui 
temos  as  badas  — outro  nome  dos  rhinocerontes — ,  domesticadas  e 
empregadas  nos  transportes.  E  o  mesmo  Fernão  Mendes  Pinto,  dando 
a  relação  de  um  enorme  exercito  tártaro,  que  invadiu  a  China,  diz 
« . .  .donde  partiram  com  oitenta  mil  badas,  em  que  vinha  o  mantimento 
e  toda  a  bagage».  Yule  e  Burnell,  transcrevendo  as  três  passagens  ci- 
tadas, não  contestam  a  sua  veracidade,  e  contentam-se  com  lhes  pôr  um 
ponto  de  admiração.  Effectivamente,  a  ausência  de  outras  noticias,  e 
tudo  quanto  sabemos  do  caracter  desconfiado,  violento  e  pouco  in- 
telligente  do  animal,  levam-nos  a  acreditar,  que  os  nossos  escriptores 
foram  mal  informados.  Gaspar  Corrêa  é  habitualmente  verídico;  mas 
tratava  n'este  caso  de  factos  succedidos  no  interior  da  índia,  de  que 
recebeu  noticias  indirectas  e  confusas;  e  Fernão  Mendes  Pinto,  sem 
merecer  a  reputação  que  teve  durante  muito  tempo,  era  um  tanto  dado 
a  acceitar,  e  mesmo  a  ampliar  levianamente,  as  informações  colhidas 
aqui  ou  ali.  A  phrase  de  Orta  é  mais  acceitavel,  e  um  ou  outro  rhi- 
noceronte  podia  chegar  a  um  certo  grau  de  domesticidade  (Linsch., 
Navig.,  56;  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  iii,  fyS;  Erskine,  Hist.  of  Báber,  i, 
434;  Fernão  Mendes  Pinto,  Peregrin.,  cap.  41  e  cap.  107;  Yule  e  Bur- 
nell, Gloss.,  I  e  799). 

Acerca  de  unicorneos  é  o  nosso  Orta  muito  prudente,  dando-nos  as 
suas  noticias  sob  todas  as  reservas.  No  que  lhe  disseram  da  costa  de 
Africa,  deve  ir  envolvido  o  hippopotamo  — posto  que  elle  diga  não 
se  tratar  do  cavallo  marinho —  com  os  rhinocerontes  africanos,  que 
então  deviam  ser  muito  frequentes  ao  longo  d'aquella  costa. 


/ 


COLÓQUIO  TRIGÉSIMO  SEGUNDO 

DA  MAÇA  E  NOZ 

INTERLOCUTORES 

RUANO,   ORTA 

RUANO 

He  bem  que  saibamos  dos  nomes  da  maça  e  710^,  da  terra 
donde  a  ha,  scilicet,  em  Banda,  e  também  em  arábio  e  la- 
tim. E  posto  que,  segundo  a  ordem,  vem  primeiro,  porque 
não  se  pode  fallar  sem  fallar  da  7io\,  que  he  fruta,  fallaremos 
na  feiçam  da  arvore,  e  foltias  e  flores,  e  doutras  cousas  me- 
dicinaes  que  do  mesmo  arvore  se  fazem. 

ORTA 

Estes  nomes  vos  direy,  pois  o  perguntei  em  malaio  e  ma- 
lavar,  e  decanim  e  pérsio,  e  arábio  e  turco;  posto  que  pêra 
vós  não  seja  neseçario  mais  que  o  arábio  e  o  latim  e  o  da 
terra  donde  nace,  que  he  o  malaio.  E  portanto  diguo  que 
o  arvore  da  Jio:{  he  do  tamanho  de  pereira,  e  as  folhas  sam 
redondas  á  maneira  de  algumas  de  pereira:  vem  esta  woj{ 
de  Banda,  de  ilhas  sogeitas  a  elrey  nosso  senhor.  E  posto 
que  digam  alguns  escritores  do  Peru  que  o  ha  em  Maluquo, 
não  he  asi;  porque,  ainda  que  aja  o  arvore,  nam  dá  fruta, 
e  o  mesmo  he  na  ilha  de  Çeilam.  Sam  como  pereiras,  ou,  por 
falar  mais  verdade,  como  pexegueiros  pequenos.  He  a  casca 
dura,  scilicet,  a  pelle  daquella  he  mais  dura  que  das  peras 
verdes;  e  dahy  vay,  com  sua  grosura,  a  espedirse  ao  cabo, 
com  huma  casquinha  muito  delgada,  asi  como  a  casca  pe- 
quena que  cerca  a  castanha  nossa;  está  chegada  á  7to:{,  e 
cerca  a  toda;  a  qual  iio:^  está  debaixo,  e  he  como  bugalho 
pequeno;  e  a  pelle  pequena  que  cerca  este  bugalho,  que  já 
faley,  he  a  w/aça,  e  da  outra  casca  grande  nam  fazemos  aqui 
mençam;  posto  que  he  muyto  boa,  feita  em  conserva  com 
açucare,  e  tem  o  cheiro  muyto  bom,  e  o  sabor  mu3^to  me- 
lhor; temse  cá  esta  conserva  por  mu3'to  boa  pêra  o  cérebro, 

6 


( 


82  Colóquio  trigésimo  segundo 

e  pera  as  enfermidades  da  madre  e  nervosas;  vem  de  Banda 
em  jarras  de  vinagre;  e  alguns  a  comem  asi  feita  em  selada; 
porém  toda  a  mais,  que  vem  a  esta  terra,  se  faz  em  conserva 
de  açucare;  he  muyto  fermoso  pomo,  e  dá  bom  cheiro  á 
boca.  E  aveis  de  saber  que,  quando  esta  no^  he  madura, 
vaise  inchando,  e  rompe  a  primeira  casca  como  fazem  os 
ouriços  das  castanhas  nossas,  e  fica  a  maça  muyto  vermelha, 
parecendo  como  gram  fina;  que  he  a  mais  fermosa  cousa 
de  ver  no  mundo,  quando  as  arvores  estam  carregadas;  e  ás 
vezes  também  a  maça  se  fende,  e  esta  he  a  causa  onde  a  noi 
muytas  vezes  não  vem  cercada  da  maça.  E  quando  esta  no^ 
se  cura  e  séqua,  despede  de  si  a  maça,  e  nam  fica  vermelha, 
senão  hum  pouquo  laranjada.  Vai  esta  maça  três  vezes  tanto 
como  a  no^;  e  esta  he  a  verdade  sabida  por  mu3'tos,  que 
vam  a  Banda.  A  qual  Banda  he  terra  muyto  doentia,  e  se 
acha  ás  vezes  irem  lá  muytos,  e  virem  poucos,  e  comtudo 
sempre  folgam  de  ir  lá,  poUo  ganho  muito  (i). 

RUANO 

Galeno  conheceo  esta  no^  e  maça,  ou  Dioscorides,  ou  ou- 
tros alguns  Gregos,  ou  Plinio? 

ORTA 

Galeno*  faz  capitulo,  no  sétimo  livro  dos  simples,  e  diz 
que  se  traz  da  índia:  e  porém  a  outros  muytos  e  a  mim 
parece  que  não  conheceo  a  maça  (posto  que  a  chame  macir), 
e  isto  por  muytas  rezões:  huma  he,  porque  a  faz  temperada 
entre  quente  e  frio,  sendo  quente  e  sequa  no  fim  do  segundo, 
ou  dentro  no  terceiro;  e  diz  que  aproveita  com  sua  esteti- 
cidade  e  com  seu  apertar  ás  desinterias,  e  aos  que  deitam 
sangue;  que  não  he  cousa  que  Galeno  dixera,  se  a  conhecera; 
quanto  mais  que  Avenrrois  diz**  que  esta  he  huma  das  me- 
zinhas que  não  conheceo  Galeno,  e  a  muytos  modernos  pa- 


*  Galenus,  lib.  7,  Simplicium  (nota  do  auctor). 
**  Avenrrois,  5,  Coliget  (nota  do  auctor). 


Da  maça  e  no^  83 

receo  macir  dos  Gregos  e  a  tnaça  dos  Arábios  serem  di- 
versas mezinhas,  e  esta  he  a  causa  porque  Aviçena  faz  dois 
cap.,  scilicet,  o  cap.  466  da  maça,  o  cap.  694  de  talicífar*; 
e  fez  isto  emitando  aos  Gregos;  ainda  que  elle  nunqua  vio 
o  macir  delles,  teveos  sempre  em  muyta  auctoridade  e  ve- 
neraçam,  não  lhe  parecendo  que  pudiam  errar;  quanto  mais 
que  Dioscorides**  e  outros  dizem  ser  casca  de  raiz,  e  nam 
de  fruto;  e  Plinio  afirma  não  conhecer  este  macir;  quanto 
mais  que,  se  estes  Gregos  conheceram  a  rtiaça,  nam  puseram 
em  silencio  a  noi,  porque  nenhum  delles  falou  delia;  e  do 
macir  souberam  tam  pouquo,  que  Galeno  diz  trazerse  da 
índia,  e  Dioscorides  trazerse  da  Barbaria;  por  onde  parece 
que  nenhum  conheceo  a  maça:  nisto  não  deve  aver  alguma 
duvida. 

RUANO 

Pois  não  falta  dos  modernos  quem  diga  que  o  chrisoba- 
lanus  escrito  de  Galeno  he  a  no^  dos  Arábios. 

ORTA 

Elles  não  tem  rezam,  e  tem  contra  si  muitas  cousas  que 
lhe  falecem,  na  feiçam,  e  na  cor  e  no  sabor. 

RUANO 

Os  Arábios  souberam  da  no^  ou  da  maça  alguma  cousa? 

ORTA 

Senhor,  si;  em  especial  Avicena  falou  mais  distintamente. 

RUANO 

Pois  Serapio  alega  aos  Gregos  nestas  mezinhas***. 

ORTA 

Fez  isso  porque  avia  medo  de  dizer  cousa  contra  os  Gre- 
gos; e  não  vos  maravilheis  disto,  porque  eu,  estando  em 


*  Avicena,  lib.  11,  cap.  456  e  694  (nota  do  auctor);  aliás  456  e  696. 

**  Lib.  I,  cap.  94  (nota  do  auctor). 

***  Serapio,  cap.  2  e  161  (nota  do  auctor). 


84  Colóquio  trigésimo  segundo 

Espanha,  não  ousaria  dizer  cousa  alguma  contra  Galeno  e 
contra  os  Gregos*;  quanto  mais  que,  bem  oulhado,  não  he 
muyto  serem  humas  mezinhas  em  huns  tempos  conhecidas 
e  em  outros  não,  porque  sempre  se  acham  novas;  e  certa- 
mente que,  se  os  Gregos  souberam  áo  pao  da  China,  muyto 
o  louvaram,  e  fora  bem  celebrado  delles;  mas  Avenrrois  ou- 
sadamente diz  que  erão  certas  mezinhas,  que  os  Gregos  não 
conheceram  (2). 

RUANO 

Ora  pois  quereis  sair  com  a  vossa  em  emitar  esses  bár- 
baros, dizei  os  nomes  da  no\  e  da  maça. 

ORTA 

Sou  contente ;  a  no:{  se  chama  na  terra  donde  naçe  pala, 
e  a  maça,  bunapala;  em  decanim  se  chama  a  iio:{,  japaíri, 
e  a  maça,  jaifol;  em  arábio  chama  a  7zo{  Awicena.  Jaiqibam 
(que  quer  dizer  )io:{  de  Banda)  e  á  7Jiaça  chama  Avicena 
bejbase;  a  derivaçam  do  qual  nome  nunqua  pude  saber**. 
E  estes  sam  os  nomes  arábios  mais  verdadeiros  que  todos, 
bem  que  muytos  Mouros  e  Arábios,  e  Turcos  e  Coraçones 
lhe  chamam  outros  nomes  corrutos,  que  se  foram  corrom- 
pendo com  os  tempos;  e  asi  os  livros  se  foram  corrompendo, 
que  Avenrrois,  sendo  muyto  bom  mouro,  lhe  chama  geo:{a; 
e  em  Serapio  estam  muytos  nomes  corrompidos;  e  pois  estes, 
sendo  Mouros,  erraram,  não  he  muyto  Matheus  Silvatico 
errar.  A  maça  se  chama  maça  polia  similhança  do  macir, 
porque  o  pintam  os  Gregos  vermelho. 

RUANO 

Se  a  710^  em  arábio  se  chama  geau^i,  logo  os  Arábios 
devem  fazer  mençam  da  no^  da  índia,  que  he  o  chamado 
coquo? 


*  Uma  das  mais  notáveis  phrases  de  todo  o  livro,  e  que  bem  lhe 
podia  servir  de  epigraphe. 

**  Avicenna,  lib.  11,  cap.  456  (nota  do  auctor). 


Da  maça  e  no^  85 

ORTA 

Si,  fazem  mençam  os  Arábios  de  todas  as  nossas,  como 
vos  disse  no  coquo,  que  lhe  chamam  geau^ialindi;  e  á  nossa 
7ío:{  chamam  geau^i,  no  mais*;  e  esta  he  a  causa  porque  á 
cidade  pacense,  a  que  chamamos  Badajoz,  avendolhe  de  cha- 
mar Guadalgeauzi,  que  quer  dizer  rio  de  noies,  lhe  chama- 
ram corrutamente  Badajoz. 

RUANO 

Quem  vos  dixe  isto,  e  como  o  sabeis? 

ORTA 

Hum  judeu  que  foy  a  Portugal,  nacido  no  Cairo,  que 
levou  a  Portugal  as  novas  do  Soldam  Bhadur,  e  chamado 
por  nome  Isaque  do  Cairo,  homem  discreto  e  sabedor  de 
muytas  lingoas,  lhe  perguntei  eu  se  Guadalupe  queria  di- 
zer rio  de  lobos,  como  diz  Lúcio  Siculo  Marineo;  o  qual 
me  respondeo  que  nam,  senão  que  queria  dizer  rio  do  amor; 
e  eu  lhe  disse  que  hum  homem  muyto  douto  escrevia  esta 
derivaçam;  elle  me  dixe  que  a  djerivaçam,  quando  pudesse 
ser  tudo  de  huma  lingoa  era  melhor,  que  nam  fazer  huma 
parte  de  huma  e  outra  de  outra  lingoa;  e  asi  como  Gua- 
dalup  tudo  junto  he  arábio  se  entrepreta  rio  do  amor  (3). 

RUANO 

Ainda  que  isso  não  he  física,  também  folguo  de  o  saber 
mais  que  outras  cousas,  pêra  tirar  o  fastio. 

ORTA 

Porque  não  fiqueis  sem  elle,  sabei  que  da  maça  se  faz 
hum  olio,  muyto  boa  mezinha  pêra  os  nervos,  e  muyto  usado 
vir  de  lá  de  Banda. 


*  Isto  é,  «simplesmente»,  sem  mais;  uma  forma  de  dizer  mais  hespa- 
nhola  que  portugueza. 


86  Colóquio  trigesijno  seoimdo 


Nota  (i) 

Identifiquemos  desde  já  os  nomes  citados  por  Orta  na  pagina  84: 

—  A  MOf  "pala»,  e  a  maça  «bunapala»,  em  Banda.  Rumphins  dá  estes 
mesmos  nomes  na  forma  pala  ou  pela  para  a  nof,  e  bonga-pala  para 
a  maça,  que  Ainslie  escreve  também  bunga-pala.  Segundo  Crawfurd, 
aquelle  nome  da  «of  não  é  propriamente  originário  de  Banda,  onde  os 
naturaes  lhe  chamam  galago:  mas  é  corrente  em  todo  o  archipelago, 
e  foi-lhe  imposto  pelos  primeiros  navegadores  que  fizeram  o  commer- 
cio  de  Banda  para  a  índia,  sendo  — ainda  na  opinião  de  Crawfiird — 
uma  corrupção  do  nome  jatipahla  (sic)  em  sanskrito  (Cf.  Rumphius, 
Herb.  Amb.,  n,  14;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i,  200  e  249;  Crawfurd,  Dict., 
304). 

— A  HOf  njapatri»,  e  a  tnaça  «jaifolu  em  deckaní.  Estes  nomes  estão 
trocados,  por  descuido  de  Orta  ou  do  impressor;  e  tanto  Ainslie  como 
Dymock  dão  o  nome  da  noz^  jaiphal,  jaephal  (deck.  J^; L:a.,  Jó/j/íu/, 
sansk.  si  I  Irl^^hrS,  jãtiphala);  e  o  nome  da  maça  jápatri  (sansk. 
Sll  I  d  U  :?<  1 5  jãtipatri)  (Cf  Ainslie,  1.  c;  Dymock,  Mat.  med.,  661). 

—  nJauzibam»  em  Avicenna,  significando  noz  de  Banda;  o  nome 
encontra-se  em  uma  nota  marginal  da  edição  latina,  mas  é  um  erro 
de  transcripção,  e  no  arábico  está  — segundo  Scaligero —  djauj  bana, 
um  nome  que  é  dado  por  Ainslie  como  persiano,  L,-  ;  »=^.  Como  se  vê, 
Avicenna  não  escreveu  jaii^jibam,  e  portanto  não  lhe  chamou  noz  de 
Banda,  nem  é  provável  que  elle  conhecesse  rigorosamente  a  sua  pro- 
cedência d'aquella  ilha.  (Cf.  Avicenna,  Qanurj,  u,  11,  5o2;  Exotic,  248; 
Ainslie,  1.  c.) 

— «Befbase»,  segundo  Orta,  é  o  nome  da  maça  em  Avicenna;  isto  é, 
íL.L.^»o,  hesbasah;  Ainslie  cita  também  o  persiano  jL  v?  be:;baj. 

Estas  duas  especiarias  sao  produzidas  pela  IMyx-istioa  fra- 
g-i-ans,  Houttuyn  (M.  mo^c/za/a,  Thunb.,  M.  officinalis,  Linn.  fil.) ; 
uma  bella  arvore,  typo  da  pequena  familia  das  Myristicea?,  e  que  se 
encontra  espontânea  em  varias  ilhas  orientaes  do  archipelago  Malayo, 
mas  abunda  sobretudo  no  pequeno  grupo  vulcânico  de  Banda.  A  ar- 
vore feminina,  porque  a  planta  é  dioica,  produz  uma  drupa  carnosa, 
mas  dehiscente,  que,  abrindo-se  na  maturação,  deixa  ver  a  semente, 
envolvida  em  uma  arilha  de  côr  vermelha  intensa;  esta  arilha  é  a 
maça  do  commercio.  A  semente,  privada  da  arilha  ou  maça,  que  se 
vende  á  parte,  e  do  seu  envolucro  exterior  ou  testa,  fica  apenas  re- 
vestida pela  pellicula  do  endopleura,  a  qual  penetra  profundamente 
nas  fendas  do  albumen  ruminado;  esta  é  a  «of  rm/scada  do  commer- 
cio. Se  Orta  não  deu,  e  não  podia  dar,  uma  descripção  minuciosa 
d"esta  complicada  estructura,  teve  pelo  menos  uma  idéa  approximada 


Da  maça  e  wo^  87 

da  natureza  da  maça,  e  não  lhe  chamou  flor,  como  fizeram  outros, 
entre  estes  Camões: 

Leva  pimenta  ardente  que  comprara: 
A  secca  flor  de  Banda  não  ficou, 
A  noz,  e  o  negro  cravo,  que  faz  clara 
A  nova  ilha  Maluco,  co'a  canella. 
Com  que  Ceilão  é  rica,  illustre  e  bella. 

Banda,  com  as  pequenas  ilhas  próximas,  foi  a  verdadeira  pátria  da 
muscadeira,  a  região  onde  a  sua  cultura  mais  se  desenvolveu,  onde  os 
portuguezes  a  foram  sempre  buscar,  e  onde  hoje  os  hollandezes  se 
esforçam  por  lhe  conservar  o  monopólio.  Segundo  nos  diz  o  conhe- 
cido naturalista  e  viajante  Wallace,  quasi  todas  as  terras  aproveitáveis 
na  base  da  ilha  e  vertentes  das  montanhas  estão  cobertas  de  planta- 
ções de  muscadeiras,  crescendo  á  sombra  de  grandes  arvores,  Cana- 
rium  commune,  e  encontrando  na  sombra,  na  excessiva  humidade  do 
clima,  e  no  ligeiro  solo  vulcânico  as  melhores  condições  de  vegetação. 
Parece  que  estas  plantações  são  extremamente  bonitas,  e  Wallace  diz; 

few  cultivated  plants  are  more  beautiful  than  nut-meg  trees, 

como  Orta  havia  dito:  «a  mais  fermosa  cousa  de  ver  no  mundo».  João 
de  Barros  é  também  muito  lyrico  na  sua  descripção  d'estas  plantações: 

"Passado  o  tempo  das  flores,  em  que  as  nozes  já  estão  coalhadas  e 
de  côr  verde  (principio  de  todo  o  vegetavel),  vae-se  pouco  e  pouco 
tingindo  aquelle  pomo,  da  maneira  que  vemos  n'este  reino  de  Portu- 
gal uns  pêssegos,  a  que  chamão  calvos,  que  parecem  o  arco  do  Ceo 
chamado  íris,  variado  de  quatro  cores  elementaes,  não  em  circulo, 
mas  em  manchas  desordenadas,  a  qual  desordem  natural  o  faz  mais 
formoso.  E  porque  n'este  tempo  que  começam  a  madurecer,  acodem 
da  serra,  como  a  novo  pasto,  muitos  papagaios  e  pássaros  diversos,  é 
outra  pintura  ver  a  variedade  da  feição,  canto  e  cores,  de  que  a  natu- 
reza os  dotou». 

Descripção,  concentrada  por  Camões  em  quatro  versos : 

Olha  de  Banda  as  ilhas,  que  se  esmaltam 
Da  varia  cor  que  pinta  o  roxo  fructo ; 
As  aves  variadas,  que  ali  saltam. 
Da  verde  noz  tomando  seu  tributo. 

Notaremos  de  passagem,  que  uma  d'estas  aves,  um  bello  pombo, 
Carpophaga  concinna,  tem  singulares  relações  com  a  vida  da  planta, 
engolindo  a  noz  inteira,  digerindo  a  maça,  e  lançando  intacta  a  parte 
essencial  da  semente,  de  modo  que  contribue  poderosamente  para  a 
propagação  da  espécie,  ao  mesmo  tempo  que  d'ella  depende  para  a 


88  Colóquio  trigésimo  segundo 

sua  alimentação.  Orta  referiu-se  a  um  facto  análogo,  a  propósito  de 
outra  planta,  no  Colóquio  vigésimo  oitavo. 

Os  gregos  e  latinos,  como  veremos  melhor  na  nota  seguinte,  não  co- 
nheceram a  MOf  e  maça;  mas  os  árabes,  viajantes  e  geographos,  como 
Maçudi  e  Edrisi,  escriptores  de  matéria  medica,  como  Avicenna  e  Se- 
rapio,  tiveram  perfeita  noticia  d'estas  especiarias,  que,  em  maior  ou  me- 
nor quantidade,  chegavam  á  Europa  na  Idade-media.Vinham  de  Banda 
a  Java  e  outros  portos  do  Oriente,  frequentados  por  chins  e  árabes, 
n'aquelle  commercio  de  cabotagem,  feito  pelos  malayos  e  javanezes, 
a  que  já  nos  referimos  a  propósito  do  cravo.  Duarte  Barbosa,  fallando 
de  um  estado  de  cousas  anterior  ao  dominio  portuguez,  diz  que  o 
commercio  em  Banda  se  fazia  por  meio  de  trocas,  dando  ali  grandes 
quantidades  de  mercadoria  por  qualquer  objecto,  por  exemplo,  vinte 
babares  de  maça  por  um  gong  javanez,  de  modo  que  a  especiaria 
oval  quasi  de  graça».  A  difFerença  de  preço  entre  Calecut  e  Banda 
era  enorme,  e  a/arasola  de  nof  valia  em  Calecut  tanto,  como  o  bahar 
em  Banda  —  o  bahar  tinha  xinlQ  f ar asol as  proximamente.  As  difFeren- 
ças  de  preço  de  Calecut  para  a  Europa  também  eram  grandes,  pois  a 
«Of  e  a  maça  custavam  caríssimas  durante  toda  a  ídade-media;  em  In- 
glaterra, ahi  pelos  annos  de  i35o,  dois  arráteis  de  maça  valiam  tanto 
como  uma  vacca.  Quando,  pois,  os  portuguezes,  commandados  por 
António  de  Abreu,  foram  a  Banda  depois  da  tomada  de  Malaca,  con- 
tinuando nos  annos  seguintes  a  frequentar  a  ilha,  e  acabando  por  es- 
tabelecer ali  uma  posse  mais  ou  menos  effectiva,  encontraram-se  se- 
nhores de  um  commercio  tão  lucrativo  pelo  menos  como  o  do  cravo. 
Ou  fosse,  porém,  porque  a  7107  e  maça  tivessem  menos  consumo  do 
que  o  cravo,  ou  por  qualquer  outro  motivo,  o  certo  é  que  estas  espe- 
ciarias não  parecem  ter  tido  a  importância  commercial  do  cravo,  e  se 
encontram  menos  vezes  citadas  nos  nossos  livros  e  documentos  do 
tempo.  Em  todo  o  caso,  o  trato  da  «07  muscada  e  maça  pertenceu 
aos  portuguezes  durante  proximamente  um  século,  passando  depois 
para  os  hoUandezes,  que  o  conservaram  até  ao  nosso  tempo. 

Alongaria  demasiado  estas  notas  qualquer  noticia  sobre  a  cultura  da 
arvore,  e  colheita  e  preparação  da  sua  semente,  noticia  que  será  fácil 
encontrar  em  alguns  dos  livros  citados  abaixo  (Cf  Fliick.  e  Hanb., 
Pharmac,  451;  Dymock,  Mat.  med.,  661;  Crawfurd,  Dict.,  304;  Rum- 
phius,  Herb.  Amb.,  11,  14  a  25;  Wallace,  Malay  Arch.,  285;  Lusiadas,  ix, 
14,  e  X,  i33;  Barros,  Ásia,  iii,  v,  6;  Duarte  Barbosa,  Livro,  370,  385). 


Nota  (2) 

Orta  é  de  opinião  que  o  macer  (u.áx£i)  dos  escriptores  gregos  não  é 
a  maça  dos  modernos;  e  esta  opinião,  desenvolvida  pouco  depois  por 


Da  maça  e  iw{  89 

Acosta,  foi  admittida  nos  nossos  dias  por  Sprengel,  assim  como  em 
todos  os  livros  de  auctoridade  em  questões  de  pharmacologia.  O  [/.óxep, 
macer  ou  macir  de  Dioscorides,  Galeno  e  Plinio,  era  a  casca  de  uma 
arvore  da  índia,  applicada  ao  tratamento  de  dysenterias;  e,  portanto, 
cousa  muito  diversa  na  natureza  e  propriedades  da  arilha  vermelha 
da  no^  muscada. 

Avicenna  — como  bem  notou  Orta —  tratou  da  verdadeira  maça 
sob  o  nome  de  iL,L**.j,  besbasah;  e  de  uma  substancia  que  bem  pôde 
ser  o  p.áy.£p  sob  o  nome  de  >Á»JlJg,  talisfar.  A  identificação  d'este  ta- 
lisfar  é  que  pode  levantar  bastantes  duvidas,  posto  que  alguns  se  te- 
nham lembrado  de  que  fosse  a  casca  da  Holarrhena,  de  que  falíamos 
em  um  dos  Colóquios  precedentes.  Acosta  deu  uma  longa  e  minuciosa 
descripção  da  arvore,  da  qual  na  sua  opinião  procedia  o  macer;  mas 
a  identificação  d'essa  arvore  não  é  clara,  e  a  questão  não  nos  inte- 
ressa agora  directamente.  O  que  importa  notar,  é  que  o  macer  em 
caso  algum  podia  ser  a  maça,  e  que  Orta  tinha  rasão  n'este  ponto 
(Cf.  Sprengel,  Diosc,  11,  3qr,  Pharmac,  45 1;  Dymock,  Mat.  med.,  498; 
Acosta,  Tractado  de  las  drogas,  41). 


Nota  (3) 

Isaac  do  Cairo  veiu  da  índia  a  Portugal,  pela  via  de  Suez  ou  do 
Cairo,  no  anno  de  i  SSy.  Fora  mandado  por  Nuno  da  Cunha  a  D.  João  III, 
para  lhe  dar  conta  dos  graves  succes^os  de  Diu,  trazendo-lhe  o  que 
Orta  chama  «as  novas  do  Soldam  Bhadur»,  isto  é,  a  noticia  da  sua 
morte  violenta.  Chegou  a  Lisboa,  quando  tudo  estava  sobresaltado 
pelo  annuncio  de  uma  grande  armada  de  Rumes,  que  ameaçava  a  ín- 
dia, e  com  as  suas  informações  algum  tanto  serenaram  os  ânimos. 
Tudo  isto  vem  largamente  contado  por  Gaspar  Correia  (Lendas,  iii, 
792  e  846). 

Devia  ser  um  homem  «discreto»,  e  a  sua  opinião,  de  que  as  «deri- 
vações» de  uma  palavra  composta  se  devem  procurar  em  uma  só  lín- 
gua, é  absolutamente  justa  —  salvas  raríssimas  excepções.  Eff"ectiva- 
mente  aquella  etymologia,  semi-arabica  e  semi-latina,  dada  pelo  eru- 
ditissimo  Lúcio  Marineo  Siculo  para  a  palavra  Guadalupe,  é  de  todo 
o  ponto  insustentável.  E  verdade,  que  elle  a  não  apresenta  como  sua, 
e  apenas  a  repete:  Guadalupe,  la  qual  intrepretan  algunos  Rio  de  Lo- 
bos. Não  deixa  ainda  assim  de  ter  a  responsabilidade  de  a  citar.  Fr.  João 
de  Sousa  dá  uma  significação  um  pouco  diversa  da  que  Orta  deu  ou 
acceitou;  Guadalupe  — diz  elle —  é  ,._^\  ::  !j,  uad  eWubb,  signifi- 
cando rio  de  seio  —  os  arabistas  decidirão  qual  tem  rasão. 

A  derivação  do  nome  de  Badajoz  de  rio  de  no^es  não  é  verda- 
deira, como  o  não  é  a  que  fr.  João  de  Sousa  deu  muito  em  duvida, 


90  Colóquio  trigésimo  segundo  da  maça  e  iw{ 

de  ,  «i-J<- '  --íj,  belad  eWaisch,  o  paij  dos  mantimentos.  Edrisi  escreve 
aquelle  nome,  ,  ^^liJia,',  Batalios,  forma  que  se  não  pode  derivar  de 
rio  de  no^es,  nem  de  pjy^  dos  mantimentos. 

Acresce  por  esta  citação  mais  um  livro,  aos  que  Orta  menciona  nos 
Colóquios;  e  vê-se  que  elle  conhecia  a  celebre  chronica  de  Marineo 
Siculo. 

(Cf.  Lúcio  Marineo  Siculo,  De  las  cosas  illustres  y  excellentes  de 
Espana,  f,  42,  Alcalá  de  Henares,  liSg;  Sousa,  Vestigios  da  lingua 
arábica,  90  e  134;  Edrisi,  Géogr.,  i,  23,  tr.  de  Jaubert,  Paris,  1840). 


COLÓQUIO  TRIGÉSIMO  TERCEIRO  DA 

MANNÁ  PURGATIVA,  ONDE  SE  FALLA  OUTRAS  MUYTAS 
cousas,  que  sam  menos  medicinaes,  e  sam  de  historia,  e  boas  pêra 
as  saberem  algumas  pessoas. 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

As  cousas  que  sam  muyto  neseçarias  e  mais  usadas,  he 
neseçario  serem  muyto  sabidas;  e  por  esta  causa  queria 
muito  saber  da  manná,  que  vos  he  cá  tanto  em  uso;  e  pêra 
isto  he  rezam  que  oulheis  muyto  bem  o  que  me  dizeis,  pêra 
que  não  aja  que  replicar.  Não  quero  saber  se  escreveram 
os  Gregos  delia,  nem  como  lhe  chamaram,  porque  disto 
asaz  escrevem  os  escritores  modernos. 

ORTA 

Certamente  que,  porque  vi  esta  mezinha  muyto  boa  e  com 
suave  sabor  e  cheiro,  e  fazer  os  efeitos  que  delia  queremos 
muyto  bons,  nam  procurei  saber,  muyto  delia;  somente  sey 
que  a  ha  de  três  maneiras  trazida  de  Ormuz,  da  província 
de  Uzbeque.  A  maior  e  a  primeira,  que  he  esta  que  aqui 
vedes  nas  boticas  em  frascos,  semelhante  a  confeitos,  e  no 
sabor  a  favos  de  mel,  chamase  xirqiiest  ou  xircast,  que  quer 
dizer  leite  da  arvore  chamada  qiiest,  porque  xir  na  lingoa 
da  Pérsia  quer  dizer  leite;  de  modo  que  he  hum  rucio  que 
cae  daquellas  arvores,  ou  goma  que  nace  delias;  e  nós  cor- 
rompendolhe  o  nome  lhe  chamamos  siracost;  porque  Avi- 
cena  era  desta  província  de  Uzbeque,  de  huma  cidade  dita 
Bocora,  como  vos  já  dixe,  será  rezam  que  lhe  saiba  bem 
o  nome;  podese  bem  ver  isto  em  Avicena*  donde  falia 


*  Avicena,  lib.  ii,  cap.  172  e  490  (nota  do  auctor);  na  edição  latina 
os  capitules  são  489  e  704.  Ha  de  certo  muitos  erros  de  imprensa  nas 
citações  de  Orta;  mas  é  possivel  que  elle  algumas  vezes  cite  o  Avicena 
arábico,  como  parece  deprehender-se  do  Colóquio  trigésimo. 


92  Colóquio  trigésimo  terceiro 

delia  (i).  A  outra  dita  tiriamjabim  ou  trumgibim,  como  diz 
o  Belunense,  dizem  que  nace  sobre  os  cardos,  e  vem  em  pe- 
dacinhos, algum  tanto  de  cor  roxa  ao  parecer;  e  dizse  que 
estes  se  tiram  dos  cardos,  sacudindo  com  pao,  e  sam  mais 
grandes  que  coentros  secos  os  grãos;  e  a  cor,  como  vos 
dixe,  entre  roxa  e  vermelha.  O  vulgo  tem  que  isto  he  fruto, 
mas  eu  soube  que  era  guoma  ou  resina:  elles  tem  esta  por 
mais  san  que  a  que  usamos,  e  desta  usam  mais  na  Pérsia 
e  em  Ormuz,  porque  a  que  aqui  usamos  não  a  dam  aos  mo- 
ços, senão  quando  pasam  de  qatorze  anos;  mas  comtudo 
vos  sey  dizer  que  a  uso  des  que  vim  á  índia,  e  sempre 
achei  purgar  sem  dano  algum  (2),  Vem  outra  em  pedaços 
grandes,  e  vem  com  folhas  mesturadas;  esta  parece  como 
a  da  Calábria,  e  vai  mais  dinheiro,  e  vem  polia  via  de  Bá- 
cora, cidade  mu3'to  nomeada  na  Pérsia  (3).  E  vem  ás  vezes 
outra  aqui  a  Goa,  derretida  em  odres,  que  parece  mel  alvo 
coalhado;  desta  me  mandarão  de  Ormuz,  porém  corrom- 
peose  nesta  terra  muyto  asinha;  porque  os  frascos  de  vidro 
a  conservam  muyto  (4).  E  por  aqui  diguo  que  nom  sey  mais 
desta  mezinha. 

RUANO 

Certamente  que  vos  ouvira  muyto  tempo,  se  falareis  mais; 
mas  pois  que  nam  quereis  mais  dizer,  me  dizei  que  província 
he  esta  de  Uzbeque. 

ORTA 

A  província  de  Uzbeque  he  Tartaria,  chamada  por  nós 
de  huma  cidade  dita  Tartar,  que  ha  nella,  e  o  homem  que 
he  natural  delia  chamamlhe  tártaro  e  aos  outros  chamamlhe 
uzbeques,  como  quem  dixese  toledano  ou  espanhol,  lisbo- 
nez  ou  português.  Eram  estes  Uzbeques  huma  parte  dos 
Mogores,  e  de  poucos  tempos  pêra  qua  se  isentaram.  Sam 
estes  Uzbeques  mu3rto  valentes  homens,  sam  grandes  fre- 
cheiros a  pé  e  a  cavalo,  tomam  soldos  dos  reys  estranhos: 
eu  conheci  hum  com  o  Idalcam,  chamado  Meliquetartar;  e 
outro  com  o  gram  rey  de  Cambaia,  dito  Soldam  Bhadur. 
Estes  Uzbeques  confinam  com  os  Chins  por  outra  parte, 
segundo  me  dixeram;  e  pode  ser  que  estes  sejam  os  Partos, 


Da  viannd  purgativa  gS 

tam  avorrecidos  dos  Romanos,  mas  eu  vos  confeso  nam 
saber  desta  comosgrafia  pella  terra,  muyto  bem  (5). 

RUANO 

Dixestesme  que  vinha  essa  manná  polia  via  de  Bácora; 
queria  saber,  se  he  essa  Babilónia,  primeiro  asi  chamada, 
ou  se  he  Bagada,  que  está  mais  adiante. 

ORTA 

Asi  Bácora  como  Bagada  estam  na  Mesopotâmia,  mas 
nenhuma  he  Babilónia;  postoque  vulgarmente  se  tenha  que 
Bagada  he  Babilónia;  mas  soube  muyto  certo  que  a  Babi- 
lónia verdadeira  dista  de  Bagada  ou  está  apartada  lo  ou  12 
legoas.  Está  muyto  desfeita,  e  pouco  celebrada  dos  homens: 
isto  me  dixe  Jorge  Gonçalves,  hum  mercador  discreto,  e 
grande  enqueredor  das  verdades,  e  de  muyto  bom  saber, 
que  lhe  dixera  hum.  homem  natural  da  própria  Babel;  e  diz 
que  Babel  está  chegada  ao  Eufrata,  e  a  Bagada  está  junto  de 
hum  rio  chamado  Digilá  e  namTigris;  nem  este  nome  Ti- 
gris  he  usado  aguora  (6). 

RUANO 

Esta  Bácora  e  Bagada  cuja  he  aguora?  Do  Turco  ou  do 
Xatamaz? 

ORTA 

Primeiro  era  de  outros  reys,  e  tomoulhas  o  Turco  (7). 

RUANO 

Que  titulo  he  o  de  Xatamaz  e  do  Turco? 

ORTA 

O  Xatamaz  se  chama  xá,  que  quer  dizer  rej  por  exce- 
lência, e  todos  os  outros  reys  se  chamam  paxá,  que  quer 
dizer  pé  de  rej;  asi  como  o  rey  de  Ormuz  e  o  rey  de  Lara 
e  outros  reys;  e  o  Turco  chamase  honencar^  que  quer  dizer 
fazedor  dos  senhores,  porque  hon  em  pérsio  quer  dizer  se- 
nhor, e  ecár  significa  fazer;  mas  o  seu  asinado  não  he  con- 
forme a  este  ditado,  porque  he  muito  humilde. 


94  Colóquio  trigésimo  terceiro 

RUANO 

Como  se  asina? 

ORTA 

Faquir  Çoleimam,  que  quer  dizer  o  pohre  Çoleimam. 

RUANO 

Pois  com  todas  essas  humildades  ha  de  hir  ao  inferno. 


Nota  (i) 

Orta  diz,  que  as  suas  três  espécies  de  manná  —  na  realidade  falia  de 
quatro —  procediam  da  província  de  «Uzbeque»,  o  que  é  exacto,  no  sen- 
tido muito  lato  de  que  se  não  geravam  na  índia,  e  vinham  pela  maior 
parte  da  Pérsia  septentrional  e  regiões  vizinhas.  Diz  também  que  vinham 
por  Hormuz,  e  de  certo  vinham  igualmente,  como  ainda  vem,  pelos  ca- 
minhos de  Kandahar  e  do  Cabul ;  mas  d'este  commercio  interior  tinha 
naturalmente  menos  noticia  o  medico  de  Goa. 

A  primeira  espécie  de  mawiá,  chamada  por  Orta  «xirquest»  ou  «xir- 
cast»,  ainda  hoje  se  encontra  em  alguns  bazares  da  índia  septentrional 
sob  o  mesmo  nome  de  shir-khisht,  ou  schir-khischt,  ^j^^JxJs,  yJu.^  de- 
vendo desde  já  notar-se  que  schir  significa  leite  em  persiano,  como  Orta 
muito  bem  diz.  O  nome  alterado  de  «siracost»  encontrou  Orta  na  sua 
traducção  latina  de  Avicenna. 

Segundo  as  observações  de  Haussknecht  — citadas  na  Pharmaco- 
graphia —  este  manná  é  a  exsudação  de  uma  arvore  da  familia  das 
Rosacece,  Cotoneastex*  xLumniuliii^ia,  Fisch.  et  Mey,  e 
talvez  também  de  outra  planta  bem  diversa  d'esta  e  da  familia  das 
Polygonacece.  Pelo  que  diz  respeito  ao  Cotoneaster,  as  observações 
de  Haussknecht  são  plenamente  confirmadas  pelas  de  Flúckiger  e  Han- 
bury,  os  quaes  tiveram  occasiao  de  observar  specimens  d'aquelle  manná, 
obtidos  no  norte  da  índia. 

A  identificação  do  schir-khischt  com  o  «xirquest»  de  Orta,  não  re- 
sulta simplesmente  do  nome,  mas  também  do  aspecto  da  droga,  que 
os  pharmacologistas  modernos  descrevem  como  consistindo  em  lagri- 
mas arredondadas,  pequenas,  de  um  branco  sem  brilho,  e  Orta  com- 
para com  os  «confeitos». 

Esta  droga  vem  hoje  para  a  índia  do  Afghanistan  e  Turkestan,  o 
que  se  não  afbista  muito  do  «Uzbeque»  de  Orta  (Cf.  Fluck,  e  Hanb., 
Pharmac,  872;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i,  208,  Avicenna,  Qanun,  11,  111,489). 


Da  manná  purgativa  gS 


Nota  (2) 

O  manná,  chamado  por  Orta  «tiriaiTijabim»  ou  «trurTigibim»  — forma 
encontrada  na  sua  versão  latina  de  Avicena —  é  bem  conhecido  pelo 
mesmo  nome  de  ^^^_^  J,  tarandjabin.  Procede  de  uma  pequena 
planta  da  familia  das  Legimiinosce,  Alliag-i  Caiiieloi^um, 
Fisch.,  que  se  encontra  na  Pérsia,  Afghanistan,  Beluchistan  e  Turkes- 
tan;  e  também,  segundo  alguns  dizem,  de  outra  espécie,  Alhag^i 
jMaixi-oruiii,  Desv.,  de  mais  larga  habitação,  pois  se  tem  obser- 
vado nas  regiões  áridas  e  desérticas,  desde  o  Egypto,  pela  Syria,  Me- 
sopotâmia e  Pérsia  até  á  índia.  As  duas  espécies  são  pequenos  arbustos 
muito  espinhosos,  o  que  nos  dá  a  explicação  de  terem  dito  a  Orta,  que 
nascia  sobre  «cardos».  As  notas  descriptivas  da  droga,  forma  dos  grãos, 
dimensões  e  côr,  concordam  notavelmente  nas  Pharmacographias  mo- 
dernas e  nos  Colóquios. 

Segundo  Stewart  e  Davies  —citados  na  Pharmacographia—  este 
manná  é  principalmente  colhido  nas  terras  de  Kandahar  e  de  Herat, 
d'onde  o  levam  para  a  índia.  Mir  Mohammed  —citado  por  Dymock  — 
dá  como  localidade  de  procedência,  alem  de  outras,  o  Mawarunnahari,  r\ 

isto  é,  a  Transoxiana  dos  antigos,  exactamente  o  «Uzbeque»  de  Orta. 

(Cf.  Fliick.  e  Hanb.,  1.  c.  Syi;  Ainslie,  1.  c,  11,  208;  Dymock,  Mat. 
med.,  2 !  8 ;  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  SSg.) 

Nota  (3) 

Esta  terceira  espécie  de  manná  de  Orta  é  um  pouco  mais  difficil  de 
identificar.  Diz  elle  apenas  que  vinha  por  «Baçora»  ou  Basra,  e  con- 
sistia em  pedaços  grandes,  tendo  folhas  misturadas.  É  conhecida  uma 
espécie  de  manná,  resultado  da  punctura  de  um  Coccus  sobre  diversas 
espécies  de  Quercus,  punctura  que  determina  a  exsudação  de  um  li- 
quido saccharino,  o  qual  se  solidifica  em  contacto  com  o  ar.  Segundo 
Haussknecht,  este  manná  colhe-se  sobre  as  espécies  Qiiei-ous 
■Vallonea,  Kotschy,  e  Q.  Pei-siea,  Jaub.  e  Spach,  sendo 
possivel  que  outras  espécies  o  produzam  também.  Na  Pharmacogra- 
phia áescreve-se  uma  forma  impura  d'este  manná,  consistindo  em  uma 
massa  compacta,  acinzentada  e  saccharina,  na  qual  vem  misturados 


'  Avicenna  também  deve  ter  fallado  d'esta  mesma  região,  e  isto  deu  lugar  a  uma  curiosa 
interpretação  de  Gerardo  Carmonense,  que  erradamente  traduziu:  et  in  locis,  qui  stint  tiitra 
fliwium.  A  palavra,  Mawar  en-Nahar,  quer  dizer  isto,  mas  era  uma  designação  geographica 
que  de  modo  algum  se  podia  traduzir  assim;  significava  a  região  alem  ou  a  leste  do  0.xus, 
Gihun,  ou  Amu-darya  — pouco  mais  ou  menos  o  mesmo  que  antes  se  designou  com  o  nome 
de  Transoxiana. 


g6  Colóquio  trigésimo  terceiro 

em  abundância  pequenos  fragmentos  de  folhas  verdes,  e  isto  não  se 
afasta  muito  das  indicações  de  Orta:  «pedaços  grandes,  e  vem  com  fo- 
lhas mesturadas». 

Esta  espécie  de  manná  procede  principalmente  do  Kurdistan ;  e  o 
conhecido  viajante  Niebuhr  já  no  século  passado  havia  notado,  que 
entre  Mardin  e  Diarbekr  passara  por  uma  floresta  de  carvalhos,  de  que 
os  árabes  tiravam  muito  manná,  confirmando  em  outro  livro,  que  as 
arvores  que  produziam  o  manná  n'aquella  localidade  eram  as  mesmas 
que  davam  as  nozes  de  galha,  isto  é,  os  carvalhos.  De  Diarbekr,  no  alto 
Tigris,  para  Basra,  no  Schat  el-Arab,  ou  reunião  do  Tigris  com  o  Eu- 
phrates,  o  caminho  era  natural,  e  a  noticia  de  Orta,  de  a  droga  chegar 
á  índia  via  Bassora,  mais  nos  confirma  na  idéa  de  que  esta  sua  terceira 
espécie  fosse  o  manná  dos  carvalhos. 

Notaremos  ainda  que  o  manná  da  Calábria,  a  que  elle  se  refere  por 
incidente,  era  recolhido  sobre  o  Fraxinias  Orniis,  Linn.;  e  é 
uma  substancia  muito  conhecida,  hoje  quasi  a  única  d'esta  natureza 
usada  na  Europa. 

(Cf  Fliick.  e  Hanb.,  1.  c.  366  e  372;  Niebuhr,  Voyage  en  Arabte,  11, 
323,  Amsterdam,  1780;  Description  de  VArabie,  i,  2o5,  Paris,  1779.) 


Nota  (4) 

A  quarta  espécie  de  manná  de  Orta  deve  ser  a  que  se  chama  ga^- 
anjabin,  e  procede,  em  parte,  das  tamargueiras.  Nos  valles  da  penín- 
sula do  Sinai,  as  moitas  de  Tamarix  g-allica,  var.  uictniii- 
fera,  Ehrenb.,  exsudam,  sob  a  excitação  de  um  insecto  particular 
—  Coccus  mannipanis —  pequenas  gottas  de  liquido  saccharino,  que  se 
solidificam  em  contacto  com  o  ar  frio  da  manhã.  Os  árabes  nómadas, 
d'aquella  região,  recolhem  este  manná,  e  vendem-no  aos  frades  do 
convento  de  Santa  Catharina  do  Monte  Sinai,  os  quaes  o  passam  de- 
pois aos  peregrinos,  ligando-lhes  naturalmente  algumas  idéas  religiosas, 
que  mais  presentes  devem  estar  ao  espirito  em  terras  do  Sinai.  Segundo 
Haussknecht,  outras  plantas,  e  nomeadamente  algumas  espécies  de  As- 
tragalus,  produzem  na  Pérsia  uma  droga  chamada  também  gaj-anja- 
bin,  posto  que  este  nome  só  se  applique  propriamente  á  que  procede  do 
Tamarix. 

O  conhecido  chimico  Berthelot,  examinando  e  analysando  alguns 
exemplares  d'aquelle  verdadeiro  ga^-anjabin,  diz  que  elle  tem  o  aspe- 
cto de  um  xarope  grosso  e  amarellado,  o  que  nos  leva  á  persuasão  de 
ser  este  o  que  ia  a  Goa  em  odres,  e  parecia  «mel  alvo  coalhado».  Do 
Sinai  para  Goa  o  caminho  era  fácil,  pois  se  fez  sempre  ali  um  commer- 
cio  activo  com  Aden,  Djidá,  Toro  e  outros  portos  do  Mar  Vermelho 
(Cf  Fliick.  e  Hanb.,  1.  c,  371;  Dymock,  1.  c,  76}. 


Da  manná  purgativa  97 


Nota  (6) 

Já  no  Colóquio  sétimo,  Orta  havia  fallado  no  «Uzbeque»,  voltando 
agora  a  este  assumpto,  pelo  qual  tinha  uma  certa  predilecção.  E  rela- 
tivamente correcto,  excepto  no  que  diz  respeito  á  cidade  chamada 
Tartar.  Qualquer  que  seja  a  origem  da  palavra  Tartaria  ou  Tataria, 
palavra  muito  vaga  e  de  mui  variável  applicação,  é  certo  que  se  não 
deriva  do  nome  de  uma  cidade. 

Os  «Uzbeques»  eram  «uma  parte  dos  Mogores»,  isto  é,  descendiam 
das  iribus  mongoes,  unidas  sob  Chengiz  Khan  em  uma  enorme  mo- 
narchia.  Quando  essa  monarchia  se  desmembrou,  os  ascendentes  dos 
que  depois  se  chamaram  Uzbeks  ficaram  pertencendo  ao  chamado 
Khanato  de  Kipchak;  e,  convertido  um  dos  seus  chefes,  Uzbek  Khan, 
ao  islamismo,  adoptaram  o  seu  nome  do  mesmo  modo  que  seguiram 
a  sua  nova  religião.  O  nome  de  Uzbeks  ficou,  portanto,  designando  as 
tribus  de  raça  mongol  e  religião  mahometana,  que  occupavam  a  parte 
oriental  do  Khanato  de  Kipchak.  Em  virtude  de  guerras  e  deslocações 
que  não  vem  ao  caso,  os  Uzbeks  passaram  depois  a  dominar  em  pro- 
vincias,  primitivamente  pertencentes  ao  Khanato  de  Chagatay;  e  no 
principio  do  século  em  que  o  nosso  Orta  viveu,  guiados  pelo  seu  chefe, 
Sheibáni  Khan,  tornaram-se  senhores  das  férteis  terras  a  leste  do  Oxus 
ou  Amu-darya,  e  das  celebradas  cidades  de  Bokhara,  Samarcanda  e 
outras.  Eram  aguerridos  e  bons  soldados,  e  a  religião  islamita  que  pro- 
fessavam dava-lhes  entrada  no  serviço  dos  soberanos  mussulmanos  da 
índia,  mais  facilmente  do  que  a  outros  Mongoes,  que  pertenciam  a  uma 
seita  especial  do  buddhismo.  Não  nos  surprehende,  pois,  que  Orta  os 
encontrasse  ao  serviço  do  Adil  Scháh  de  Bijapur,  ou  ao  serviço  de 
Bahádur  Scháh  do  Guzerate  (Cf.  D'Ohsson,  Histoire  des  Mongóis^ 
tomo  i;  Erskine,  History  of  índia  under  Báber  and  Humáyun,  tomo  i)» 


Nota  (6) 

É  perfeitamente  exacto  que  as  ruinas  de  Babylonia  ficassem  muito 
distantes  e  muito  a  montante  da  moderna  cidade  de  Bassora  ou  Basra, 
e  afastadas  da  Baghdad  dos  Khalifas  10  ou  12  léguas,  como  diz  o  nosso 
escriptor,  ou  una  buena  jornada,  como  diz  Pedro  Teixeira,  que  por  ali 
passou  logo  no  principio  do  xvii  século.  Baghdad  estava  situada  na 
margem  esquerda  do  Tigris,  a  que  os  árabes  chamavam  i!U»..>,  Didjelah 
(«Digilá«  de  Orta),  emquanto  as  ruinas  da  velha  cidade  ficavam  em 
frente,  e  um  pouco  abaixo,  na  margem  esquerda  do  Euphrates,  isto  é, 
entre  os  dois  rios,  propriamente  na  Mesopotâmia. 


gS      Colóquio  trigésimo  terceiro  da  mannd  purgativa 

As  ruínas  estavam  muito  desfeitas,  e  — como  diz  philosophicamente 
Orta —  «pouco  celebradas  dos  homens».  Effectivamente,  a  grande  e  as- 
sombrosa cidade  havia-se  desfeito  com  o  andar  dos  tempos.  Construídas 
de  tijolos,  alguns  apenas  seccos  ao  sol,  e  estampados  aos  milhares  e  ás 
centenas  de  milhares  com  o  nome  de  Nebuchadnezzar,  as  suas  colos- 
saes  edificações  nâo  nos  deixaram  nada  comparável  com  os  admirá- 
veis restos  de  architectura  assyria  de  Koyungik  (Ninive),  ou  com  os 
admiráveis  restos  de  architectura  persa  de  Persépolis.  Três  viajantes 
igualmente  conhecidos,  posto  que  desigualmente  entendidos  em  anti- 
guidades chaldaicas,  attestam,  como  o  Jorge  Gonçalves  do  nosso  Orta 
que  as  ruínas  estavam  muito  desfeitas.  Pedro  delia  Valle,  que  por  lá 
andou  no  anno  de  1616,  diz  que  a  Babel  dos  árabes  era  então  uma  massa 
confusa  de  edifícios  abatidos,  formando  um  montão  prodigioso  de  ma- 
teriaes  accumulados.  No  século  seguinte,  o  erudito  Níebuhr  diz  do 
mesmo  modo,  que  as  ruínas  apenas  se  viam  como  enormes  coUinas, 
todas  minadas.  E  modernamente,  um  dos  grandes  exploradores  das 
antiguidades  da  Mesopotomia,  sir  H.  Layard,  o  qual  não  só  visitou 
as  ruínas,  como  dirigiu  ali  pesquizas,  descreve  a  Babel  dos  árabes, 
como  um  enorme  montão,  mais  símílhante  na  forma  e  nas  dimensões 
a  uma  coUina  natural  do  que  a  um  trabalho  dos  homens,  emquanto 
no  Mujelibé,  e  mais  longe  no  Birs-Nímrud  (para  muitos  a  verdadeira 
Babel)  alguns  lanços  de  muro,  construídos  de  tijolos,  se  levantam  ainda 
acima  da  massa  de  escorias,  ladrilhos  e  cacos  (Cf.  Pedro  Teixeira,  FÚ7^e 
de  la  índia  hasta  Itália,  i25;  Pietro  átWaN aWQ^Voyages,  i,  47,  tr.  fran- 
ceza,  Paris,  1670;  Niebuhr, Foj^ti^e  en  Arabie,  u,  235;  Sir  A.  H.  Layard, 
Nineveh  and  Babylon,  274  a  289,  London,  1882). 


Nota  (7) 

o  «Xatamaz»  era  Thamasp  Scháh,  o  filho  e  successor  de  Ismael 
(vol.  I,  p.  i38);  e  o  «Turco»,  era  o  celebre  Soliman  II,  que  effectiva- 
mente alargou  muito  as  fronteiras  do  Império  Ottomano,  na  Mesopo- 
tâmia como  em  outras  regiões. 


COLÓQUIO  TRIGÉSIMO  QUARTO 

DAS  MANGAS 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA,  SERVO 

RUANO 

Gabaramme  tanto  as  mangas  que  qua  tendes,  quando  he 
o  seu  tempo,  que  me  dixeram  que  podiam  competir  com 
melocotones* ;  e  pêra  mim  he  necessairo  saber  das  frutas 
desta  terra  todas-,  e  isto  como  nam  o  quero  senam  pêra 
mim,  nam  vos  pese  de  o  escrever. 

ORTA 

Quanto  mais  dixerdes  dessa  fruta  no  sabor  tanto  acerta- 
reis mais;  porque  eu  nam  vola  gabo  pêra  mais  outra  cousa 
que  pêra  vós;  e  certo  que  ha  alguns  Portuguezes  tam  per- 
tinaçes,  que  querem  antes  morrer  que  confessar  que  ha  cá 
alguma  fruta  igual  á  de  Portugal,  avendo  cá  muytas  frutas 
que  lhe  fazem  vantagem,  asi  como  são  todas  as  frutas  de 
espinho,  porque  os  limões  de  cá  sam  tam  grandes  que  pa- 
recem cidrões,  e  muito  tenros  e  saborosos,  em  especial  os  de 
Baçaim;  e  as  cidras  sam  muito  melhores  e  tenras;  e  as  li- 
mas muito  mais  milhores;  e  quanto  ás  laranjas  excedem  em 
grande  maneira  a  todas  as  nossas,  e  muito  mais  que  todas, 
as  de  Pegú  e  Martabam,  e  Brinjam  e  Ceilam**:  nas  da 
China  nam  fallo,  porque  he  cousa  fora  da  índia,  e  em  outras 
muytas. 


*  Não  é  a  primeira  vez  que  nós  vemos  Orta  empregar  palavras  ou 
modos  de  dizer  hespanhoes. 

**  Ceilão  e  as  primeiras  duas  regiões  nomeadas  são  bem  conheci- 
das; Brinjam  era  um  pequeno  porto  do  Malabar  meridional,  nas  pro- 
ximidades do  cabo  de  Comorim. 


100  Colóquio  trigésimo  quarto 

RU.VNO 

Eu  vos  confeso  que  todas  as  frutas  de  espinho  sam  mi- 
Ihores-,  mas  o  exceso  e  melhoria  não  he  grande,  afora  as 
laranjas  que  muito  gabastes,  se  sam  como  humas  que  vos 
aqui  troxeram  de  Cochim;  porque  estas,  eu  vos  confesso 
que  fazem  grandes  ventagens  ás  nossas  em  suavidade  e 
çumo;  e  mais  o  entrecasquo  delias  (que  he  a  casquinha  qiie 
cobre  o  âmago)  não  amarga  cousa  alguma,  antes,  aparada 
huma  laranja,  a  comeis  com  mais  excellente  gosto  do  mun- 
do, o  que  não  acontece  nas  nossas  laranjas,  porque  sempre 
a  casquinha  amarga;  e  qua  não  tam  somente  não  amarga, 
mas  ainda  provei  a  de  cima,  e  não  me  amargou  senam  muyto 
pouquo;  mas  as  outras  frutas,  que  cá  tendes  na  índia,  se 
sam  louvadas,  he  porque  não  tendes  boas  uvas  e  bons  figos, 
e  peras  e  camuesas,  e  outras  muitas  frutas  que  em  Espanha 
temos;  de  maneira  que  estas  vossas  se  podem  chamar  boas, 
á  falta  de  outras  milhores.  Eu  pêra  mim  queria  antes  as 
frutas  de  Portugal  que  as  vossas  mangas  e  duriões  que  tanto 
gabais. 

ORTA 

Os  duriôes  eu  nam  os  gabo,  senam  de  ouvida,  porque  os 
não  vi;  mas  as  mangas  seyvos  dizer,  que  as  ha  em  Ormuz 
no  tempo  que  vem  a  venderse  na  praça  uvas  e  figos,  e  muyto 
boas  romans  e  pexegos  e  albocorques;  e,  emquanto  ha  7nan- 
gas  na  praça,  não  se  compram,  senão  de  quem  não  pode 
comprar  as  rnangas  pollo  muyto  preço  delias. 

RUANO 

Será  isso  como  dizeis;  folgara  que  as  ouvera  daqui  até 
janeiro  pêra  ver  e  crer. 

ORTA 

A  monçam*  delias  he  nas  terras  temporans  em  abril,  e  nas 
outras  terras  sorodeas  em  maio  e  junho;  e  algumas  vezes 


*  A  significação  dada  aqui  á  palavra  é  em  extremo  interessante;  tiion- 
çam  ou  monção  designava  geralmente  o  vento  dominante  em  períodos 
determinados,  mas  a  palavra  árabe  mausim,  da  qual  se  derivou,  signifi- 


Das  mangas  loi 

vem  como  rodolho,  que  chamam  em  nossa  terra,  em  outubro 
e  novembro.  Moço,  vai  ver  que  dous  navios  sam  aquelles 
que  entram,  já  os  vi  daqui  desta  varanda,  e  parecem  cousa 
pequena. 

SERVO 

Loguo  virei  com  recado. 

ORTA 

Nascem  as  mangas  no  tempo  que  eu  dixe,  e  as  de  Ormuz 
sam  as  mais  gabadas;  e  as  do  reino  do  Guzarate  também 
sam  muyto  boas,  em  especial  algumas  que  chamam  gii:{a- 
ratas,  que  nam  sam  tam  grandes,  porém  tem  grande  cheiro 
e  sabor.  O  caroço  he  muito  pequeno,  e  as  do  Balagate  uni- 
versalmente sam  mais  grandes  e  muito  saborosas:  eu  vi 
duas  que  pesavam  4  arrates  e  meo.  As  partes  do  Balagate 
em  que  as  provei  milhores  sam  as  de  Chacana  e  Quindur,  e 
Amadanager  e  Dultabado*  (cidades  principaes  do  Nizamoxa): 
também  sam  muyto  boas  em  Bengala  e  Pegú,  e  Malaqua. 

SERVO 

Senhor,  he  Simam  Toscano,  vosso  rendeiro  de  Bombaim, 
e  traz  este  cesto  de  mangas,  pêra  que  apresenteis  ao  gover- 
nador; e  diz  que,  como  amarrar  a  fusta,  virá  loguo  cá  pou- 
sar. 

ORTA 

Vem  a  melhor  tempo  do  mundo:  eu  tenho  huma  mangeira 
naquella  minha  ilha,  que  dá  duas  novidades,  huma  neste 
tempo,  e  outra  em  fim  de  maio;  e  quanto  a  outra  fruta  ex- 
cede a  esta  em  bondade  e  cheiro  e  sabor,  tanto  excede  esta 
em  vir  fora  do  tempo ;  e  porém  provemos  nós  primeiro  esta 
fruita  que  sua  Senhoria.  Moço  tira  dahi  6  mangas. 


cava  propriamente  estação,  vindo  naturalmente  depois  a  applicar-se  ao 
vento  dominante  n'esta  ou  n'aquella  estação.  A  phrase  de  Orta  é  o  único 
exemplo  — que  eu  conheça —  da  palavra  portugueza,  applicada  exacta- 
mente no  sentido  do  mausim  árabe,  sem  nenhuma  referencia  ao  ven- 
to—  o  que  já  foi  notado  porYule  e  Burnell  no  seu  excellente  Glossary. 

*  Vê-se  por  esta  passagem,  que  Orta  visitou  no  interior  Ahmednag- 
gar,  Daulutábád  e  outras  villas. 


I02  Colóquio  trigésimo  quarto 

SERVO 

Aqui  vem  20  inangas;  e  as  6  delias  vem  danadas-,  toma- 
reis 6,  as  somenos;  e  as  outras  levarei  a  sua  S.,  porque  he 
bem  darlhe  o  melhor. 

ORTA 

Dáas  cá,  e  estas  queremse  cortadas  com  facas  mu3'to 
agudas  porque  não  se  dane  o  corte;  e  querovos  fazer  a  sal- 
va: rezoadas  sam  pêra  este  tempo. 

RUANO 

Se  aguora  sam  rezoadas,  daqui  vos  diguo  que  no  outro 
tempo  excederam  todalas  frutas  de  Espanha. 

ORTA 

Pois  quero  volas  dar  a  comer  doutra  maneira.  Moço,  apara 
essas  juangas,  e  fazeas  em  talhadas,  porque  tem  asi  milhor 
sabor,  principalmente  deitadas  em  vinho  cheiroso,  como  du- 
razios. 

RUANO 

Verdadeiramente  que  estas  duas  que  tem  mamilos  se  me 
parecem  com  pexegos  calvos,  porque  a  cor  he  entre  vermelho 
e  verde  craro,  e  o  cheiro  he  o  próprio  delles. 

SERVO 

Eilas  aqui. 

ORTA 

Provai  de  ambas  as  m.aneiras,  com  vinho  e  sem  vinho. 

RUANO 

Com  vinho  e  sem  elle  me  sabem  bem  em  tanta  maneira, 
que  me  parece  que  será  necesario  ficar  cá  este  anno,  pêra 
provar  as  outras,  e  hir  o  anno  que  vem:  mas  não  me  pa- 
rece que  me  dará  meu  irmão  licença. 

ORTA 

Nisto  nam  ha  mais  que  dizer:  peçovos  por  mercê  que  isto 
que  aqui  passa  não  escrevais,  porque  nam  me  tenham  por 
tam  leve  que  faço  caso  por  tam  baixas  cousas. 


Das  mangas  io3 

RUANO 

Não  sam  tam  físico  como  cuidais,  porque  também  me 
prezo  de  ser  homem  de  corte,  e  dar  rezam  de  mim,  e  por- 
tanto dizeime  de  quantas  maneiras  se  custumam  a  comer. 

ORTA 

Em  conserva  de  açucare-,  em  conserva  de  vinagre,  em 
azeite  e  sal;  recheadas  dentro  com  gengivre  verde  e  alhos; 
salgadas,  cozidas,  e  de  todas  estas  maneiras  as  vistes  já, 
e  provastes  nesta  caza. 

RUANO 

De  que  compleição  sam? 

ORTA 

Frias  e  húmidas;  isto  está  craro,  confirmandose  homem* 
com  os  Cânones  do  segundo  de  Avicena,  e  ditos  de  Aristó- 
teles, no  quarto  dos  metaiiros  e  em  outras  partes**;  e  porque 
eu  ando  remoto  dessas  matérias  escolásticas,  vos  não  dou 
mais  rezões,  senão  que  as  faço  como  pexegos***;  e  mais 
ellas  sam  no  principio  ponticas  ou  estiticas,  e  depois  azedas, 
e  no  fim  doces;  e  quanto  sam  mais  chegadas  no  caroço, 
tanto  mais  azedas,  por  onde  parece  serem  frias  e  húmidas. 

RUANO 

Todas  essas  rezões  me  parecem  boas,  mas  cá  se  diz  com- 
mumente  que  sam  quentes,  e  alguns  físicos  que  de  cá  fo- 


•  O  emprego  grammatical  de  «homem»  como  pronome  indefinido 
é  raro  em  Garcia  da  Orta,  e  já  devia  ser  obsoleto  no  seu  tempo,  posto 
que  os  escriptores  da  geração  anterior,  como  Gil  Vicente,  o  empre- 
gassem ainda  com  frequência  (Cf.  Diez,  Gramm.  des  langues  romã- 
nes,  ui,  79). 

*»  No  livro  II,  tractado  i  do  Qanun,  Avicenna  trata  largamente  da 
graduação  dos  medicamentos;  emquanto  aos  «Metauros»,  encontra-se 
a  palavra  com  a  mesma  orthographia  nos  Estatutos  da  Universidade 
de  Coimbra  de  iSgi,  e  eram  os  chamados  Meteorologicorum  nas  ver- 
sões latinas  de  Aristóteles. 

*•»  Uma  óptima  phrase,  mostrando  bem  um  certo  desdém  pelas 
complicadas  graduações  d'aquelle  tempo,  em  frios  e  quentes,  seccos 
e  húmidos. 


I04  Colóquio  trigésimo  quarto 

ram  mo  dixeram  em  Portugal,  e  dizem  que  fazem  burbulhas 
aos  que  as  comem,  e  já  pode  ser  que  tenham  alguma  rezam 
nisto. 

ORTA 

Já  qua  tive  pratica  sobre  isso  com  alguns  físicos,  e  nam 
me  satisfizeram  com  essa  rezão,  nem  outras  que  deram, 
porque  as  burbulhas  desse  tempo  sam  polia  quentura  de- 
masiada, que  entonces  ha;  de  maneira  que  as  jnangas  não 
sam  causa  das  burbulhas,  senão  acertam  de  vir  em  o  tempo 
delas ;  e  não  he  inconveniente  per  putrefaçam,  fervendo  esses 
frutos  no  estamago,  causaremse  febres  coléricas  ou  sangui- 
nhas,  ou  fleumões  ou  erisipelas,  que  são  emfermidades  quen- 
tes; asi  como  acontece  podreceremse  os  pexegos,  e  ameixas, 
e  cerejas  e  melões,  sendo  frutos  frios  e  húmidos. 

RUANO 

Os  caroços  aproveitam  pêra  alguma  cousa,  ou  ellas  pêra 
física? 

ORTA 

Não  mais  que  somente  ouvi  dizer  que,  assados  os  caroços, 
aproveitam  pêra  os  fluxos;  e  eu  os  provei,  e  pareceme  que 
dizem  bem,  porque  sabem  a  bolotas  de  sovereiro,  que  em 
nossa  terra  chamam  landes;  e  os  caroços,  scilicet,  o  miolo 
delles,  dizem  que  mata  as  lombrigas,  quando  he  verde,  e 
tem  rezão,  porque  amargam  (i). 

RUANO 

Se  as  fruitas  fosem  todas  taes  como  esta,  não  he  muyto 
os  Baneanes,  que  dizeis,  não  comerem  carne.  E  pois  agora 
vem  ao  propósito,  me  dizei  quem  são  estes  Baneanes  ou 
Bramenes,  que  dizeis  nam  comerem  carne;  e  se  sam  os  geno- 
sofistas  que  dizem;  porque  estes  usam  os  mesmos  vestidos 
que  os  escritores  escrevem;  e  mais,  segundo  os  ha  em  muy- 
tas  partes  que  vam  do  Guzarate  e  do  Decam,  não  he  muito 
aprenderem  elles  no  Egito  e  nessas  partes,  onde  diziam  que 
provicavam  sua  doutrina,  porque  diz  que  vam  a  Arábia  e 
Pérsia,  e  Egito. 


Das  mangas  io5 

ORTA 

Estes  sam;  posto  que  agora  se  deitam  mais  a  serem  mer- 
cadores que  letrados;  e  ha  delles  muytas  especias,  e  todas 
sam  conformes  em  não  matar,  nem  comer  cousa  que  padeça 
morte;  o  qual  preceito  guardam  em  tanta  maneira,  que  res- 
gatam e  compram  aves  pêra  as  deitar  a  voar;  não  comem 
rabãos  nem  cebolas,  nem  alhos,  nem  huns  bredos  que  pa- 
recem vermelhos,  por  causa  da  cor;  dão  ás  formigas  aguoa 
com  açucare,  dizendo  que  fazem  esmola  aos  mezquinhos; 
deitam  agoa  aos  pasaros,  e  vem  a  beber  cada  dia;  e  muitos 
dos  que  morrem  deixam  huma  certa  cantidade  pêra  pesoas 
que  caminham  em  despovoado,  e  que  dêem  agoa  aos  cami- 
nhantes. Eu  vi  em  Cambaiete  hum  esprital  de  pássaros, 
onde  os  curam,  se  vem  aleijados  e  doentes;  e  ahy  vi  curar 
papagaios  e  muitos  outros  pasaros;  e  como  saravam,  não 
tornavam  mais  a  casa,  e  andavam  no  campo:  não  bebem 
vinho,  nem  vinagre,  nem  ninpa*,  nem  orraca,  nem  vinho  de 
pasa. 

RUANO 

E  esta  openiam  da  trasmigraçam  das  almas,  tem  outros 
gentios  desta  índia? 

ORTA  • 

Si  tem;  scilicet,  os  Bramenes  do  Balagate  e  Cambaia,  e 
do  Malavar,  e  outros  de  que  nam  tenho  certa  noticia;  e  estes 
todos  lavam  o  corpo  primeiro  que  comam,  e  sam  mais  ve- 
nerados que  os  Baneanes;  e  estes  servem  aos  reys  de  vea- 
dores  da  fazenda,  de  escrivães  e  recadadores  das  rendas, 
e  de  embaixadores. 

RUANO 

E  estes  que  aqui  chamaes  Bramenes  tem  estes  custumes? 

ORTA 

Estes,  e  os  da  fralda  do  mar,, que  chamam  Cuncam,  co- 
mem todas  as  mais  das  carnes,  ecepto  vaca,  e  porco  criado 
em  casa;  e  porém  todos  tem  a  trasmigraçam  das  almas, 


*  «Ninpa»  ou  rtipa,  uma  bebida  fermentada,  obtida  de  uma  palmeira,. 
a  Nipa  fruticans ;  da  «orraca»  já  falíamos  em  outras  notas. 


io6  Colóquio  trigésimo  quarto 

e  sem  isto  tem  mil  cousas  dignas  de  muyto  riso,  que  volas 
não  diguo,  por  nam  gastar  mal  o  tempo.  E  os  Baneanes  je- 
juam muyto,  e  á  noute  comem  pouquo,  scilicet,  açucare,  e 
agoa  ou  leite  bebido  somente;  e  ha  alguns  muyto  religiosos, 
que  jejuam  vinte  dias,  sem  comer;  como  me  dixe  hum 
homem  muito  digno  de  fé  (2). 

RUANO 

Diz  Avicena*  que  os  esprementadores  índios  dixeram  que 
nam  comesem  leite  e  peixe,  porque  causavam  lepra;  dizei 
se  o  dizem  asi  os  físicos  desta  terra,  ou  doutra  que  saibais. 

ORTA 

Os  Gentios,  polia  mor  parte,  comem  leite,  e  alguns  peixe 
mesturado;  e  porém  não  sey  se  dizem  desta  mestura  tanto 
mal  como  isso;  porque  os  físicos  Indianos,  que  conversei, 
nem  danam  esta  mestura,  nem  a  vituperam  tanto;  quanto 
mais  que  a  mor  parte  dos  Gentios  comem  peixe  frito  com 
manteiga;  por  onde  parece,  que  este  dito  de  Avicena  não 
foy  senão  asi  como  se  achou  escrito  com  a  fama  pruvica, 
e  isto  podia  ser  dito  por  algum  físico  antiguo,  que,  por  ven- 
der milhor  seus  ditos,  dixe  que  asi  o  diziam  os  esprementa- 
dores da  índia,  porque  qualquer  terra  que  estava  longe  e 
era  inota,  chamavam  índias  os  antigos. 

RUANO 

A  vós,  como  vos  he  noto,  que  esta  terra  em  que  abitaes 
se  chama  índia,  asi  polia  gente  da  terra  como  por  nós,  e 
como  sabeis  isto?  Porque  não  me  parece  verisimile  o  que 
diz  o  escritor  da  Nova  Espanha,  dizendo  que  os  índios  Oci- 
dentaes  e  os  do  Brazil  se  pareciam  aos  índios  Orientaes; 
e  mais  porque  a  Etiópia  era  chamada  índia  dos  antigos; 
por  tanto  dai  outra  rezam  porque  esta  se  chama  índia,  e 
se  o  he  também  a  outra  ocidental. 


Avie.  I,  cap.  7  (nota  do  auctor). 


Das  mangas  107 

ORTA 

O  VOSSO  escritor  emitou  aos  Castelhanos,  que  fazem  as 
suas  cousas  maiores,  e  por  isso  enciíem  a  boca  com  dizer 
las  índias  Ocideuíales;  e  não  tam  somente  não  sam  as  vossas 
terras  índias;  antes  nunqua  forão  sabidas  dos  antigos,  nem 
o  Brazil;  se  lhe  nam  quizerem  chamar  índias,  por  serem 
terras  inotas  e  distantes ;  mas  esta  nossa  índia  era  chamada 
asi  no  tempo  de  Alixandre,  como  até  agora.  Do  qual  Ali- 
xandre  elles  tem  muytas  historias  mais  que  nós;  e  he  entre 
elles  mais  celebrado  (chamandolhe  E^caderJ;  quanto  mais 
que  o  rio  Indo,  do  qual  se  chama  índia,  não  está  apartado 
de  Goa  mais  que  200  legoas,  e  he  chamado  da  gente  da 
terra  Diul.  E  mais  aos  homens  desta  terra  os  da  Arábia 
e  Pérsia,  se  lhes  querem  perguntar  se  sam  Mouros  ou  Gen- 
tios, perguntamlhe  per  estas  palavras:  tu  es  Moçalmam  ou 
Indu?  E  se  elle  he  gentio  diz  que  Indii,  e  se  mouro  diz 
Alhandulila,  que  quer  dizer  graças  a  Deos*,  porque  jnoçal- 
mam  quer  dizer  salvo;  e  por  aqui  vereis  quão  superbos  no- 
mes põem  os  Mahumetistas  ás  suas  cousas;  e  quanto  mais 
que  a  fama  comum  da  Pérsia,  e  Coraçone,  e  Arábia  e 
Turquia,  chama  a  esta  terra  Industam,  e  á  Arábia  Arabis- 
tam,  e  á  Cristandade  Franguistam,  porque  istam  quer  di- 
zer regiam,  e  Indu  índia  (3). 

RUANO 

Tudo  isso  me  parece  muyto  bem,  somente  o  Franguistam; 
porque  eu  cria,  com  muitos  que  de  cá  vam,  que  se  chamavão 
Franges  os  Portuguezes,  porque  franges  quer  dizer  bou- 
bas, e  asi  em  vitupério  lhe  chamavam  asi,  como  quem  diz 
os  boubentos  ou  leprosos. 

ORTA 

As  boubas  não  se  chdsnd^m  frangue  senão  fringui;  as  quaes 
boubas  nam  sam  ácerqua  dos  naturaes  da  terra  infamadas; 


Jj   J-Xs-O  )  ;  uma  expressão  ainda  muito  usada  no  árabe  vulgar, 
alhamdu  lillah,  louvado  Deos. 


io8  Colóquio  trigésimo  quarto 

porque  de  principio  as  tiverão  cá  e*  no  Brazil,  e  nas  vossas 
chamadas  índias;  e  não  falta  quem  diz  dos  vossos  estoria- 
dores,  que  vieram  das  vossas  índias,  vindo  delias  os  Cas- 
telhanos no  anno  de  1493,  hum  anno  depois  do**  quê  foram 
a  Nápoles,  pêra  ajudar  na  guerra  a  elrey  Dom  Fernando  de 
Nápoles,  e  que  as  apegaram  a  muytas  molheres  cortesans, 
e  ellas  as  apegarão  aos  Italianos  da  terra,  e  dahi  lhe  cha- 
maram morbo  napolitano;  e  vendose  os  Italianos  infamados 
com  este  nome,  lhe  chamaram  enfermidade  francesa;  e  por- 
que avia  lá  muytos  Espanhoes  e  Castelhanos,  lhe  chamaram 
os  nossos  Portuguezes  sarna  castelhana,  e  nisto  não  ha  mais 
que  falar. 

^  RUANO 

Pois  porque  causa  lhe  chamam  aos  Portuguezes  nesta 
terra  franp;iies? 

-^  °  ORTA 

Eu  volo  direi;  porque  não  tão  somente  o  chamam  aos  de 
Portugal,  mas  a  todos  os  cristãos  do  ponente:  e  a  causa 
nisto  foy  porque  os  primeiros  cristãos  conhecidos  na  Ásia 
eram  Francezes,  chamaram  á  cristandade  Franquia;  e  asi  lhe 
chamam  em  Ormuz,  e  em  todas  essas  terras;  e  aos  que  nas 
suas  terras  moram.  E  eu,  quando  vim  de  Portugal,  pergun- 
tava a  hum  cristam,  que  avia  sido  judeu,  sendo  espanhol, 
e  morava  no  Cairo,  quantos  christãos  avia  no  Cairo  no  tempo 
que  era  do  Soldam***,  e  quantos  judeus,  e  diziame  tantos 
mil  cristãos,  scilicet,  tantos  Arábios,  e  tantos  Francos  e  Ju- 
deus; dizia  que  avia  tantos  Francos:  perguntavalhe  eu  que 
queria  dizer  Francos,  respondiamme  que  Francos  eram  cris- 
tãos da  Europa,  e  Franquia  era  Cristandade;  e  por  aqui 
faço  fim  ás  vossas  perguntas  (4). 


*  Falta  a  palavra  «e»  na  edição  de  Goa;  mas  o  sentido,  confirmado 
pelo  que  Orta  diz  em  um  dos  Colóquios  seguintes,  exige  a  sua  intro- 
ducção. 

*•  Também  falta  a  palavra  «do»,  sendo  certo  que  sem  esta  palavra 
se  não  percebe  a  phrase;  veja-se  a  nota  (4). 

*•*  O  soberano  mameluco  do  Elgypto  independente,  vulgarmente 
chamado  então  o  Soldam  de  Babylonia. 


Das  mangas  109 


Nota  (i) 

A  manga  é  o  fructo  da  Miaiig-ifex-a  indica,  Linn.,  uma  ar- 
vore da  família  das  Anacardiaceae,  muito  commum  na  índia,  e  hoje 
cultivada  também  com  frequência  nas  regiões  tropicaes  e  sub-tropicaes 
da  Africa  e  America.  O  fructo  é  bem  conhecido,  e  gabado  por  todos 
os  que  têem  visitado  as  terras  em  que  chega  á  sua  completa  perfeição, 
particularmente  a  índia,  onde  o  comem  depois  de  maduro,  e  se  servem 
d'elle  ainda  em  verde  para  preparar  diversas  conservas  (pickles  dos  in- 
glezes),  inteiramente  análogas  ás  que  o  nosso  Orta  menciona.  Os  usos 
medicinaes  dos  caroços  são  também  conhecidos;  em  tempos  relativa- 
mente modernos,  o  dr.  Kirkpatrik  chamou  a  attenção  para  as  suas  pro- 
priedades anthelminticas  —«mata  as  lombrigas»—;  assim  como  para 
a  sua  útil  applicaçáo  nos  casos  de  menorrhagia— «os  fluxos»  de  Orta 
(Pharmacopana  of  índia,  So). 

Seria  inútil  accumular  mais  indicações  sobre  uma  arvore  e  fructo 
extremamente  vulgares,  e  de  que  tratam  muitos  livros  correntes;  mas 
devemos  dar  a  seguinte  informação  interessante  acerca  de  uma  das 
noticias  do  nosso  Orta.  Diz  elle,  que  tinha  na  sua  ilha  de  Bombaim 
\imsi  mangueira,  a  qual  dava  fructo  duas  vezes  no  anno.  O  conhecido 
e  erudito  escriptor  Gerson  da  Cunha,  em  uma  carta  de  Bombaim  de  3i 
de  outubro  de  1891,  enviou-me  a  copia  do  trecho  de  um  livro  ali  pu- 
blicado, e  que  se  refere  áquella  phrase.  Depois  de  transcrever  a  passagem 
de  Orta,  diz  assim: 

«É  uma  estranha  coincidência,  que  o  Dr.  Birdwood,  escrevendo  no 
Bombay  Saturday  review,  28  de  julho,  1866,  diz  que  :  « em  Goiaba  uma 
«  famosa  mangueira  do  sr.  Hough  fructifica  duas  vezes  no  anno,  uma 
«no  Natal,  a  outra  na  estação  habitual  das  mangas  (Maio).  A  explica- 
«ção  deve  ser,  que  esta  arvore,  proximamente  aos  cinco  annos,  rece- 
«beria  alguma  grave  lesão,  no  momento  das  marés  do  Natal,  florindo 
«  em  seguida,  e  ficando  depois  no  habito  de  florir  e  fructificar  pelo  Na- 
«tal».  Não  deixa  de  ser  curiosa  esta  repetição  moderna  de  um  caso 
de  parallelismo,  determinado  por  causas  physicas,  com  o  que  succedeu 
ha  mais  de  três  séculos  e  pouco  mais  ou  menos  no  mesmo  solo». 

É  effectivamente  muito  curioso,  que  na  mesma  região  se  repetisse 
o  facto  pouco  vulgar,  mencionado  por  Orta ;  e,  qualquer  que  seja  a 
sua  explicação  physiologica,  a  veracidade  absoluta  do  nosso  escriptor 
fica  mais  uma  vez  demonstrada.  D'aqui  envio  os  meus  agradecimentos 
ao  Dr.  Gerson  da  Gunha,  que  de  longe  segue  com  mteresse  este  meu 
trabalho. 

Não  deixaremos  Bombaim,  sem  notar  que  Orta  falia  mais  uma  vez 
da  sua  ilha  (sua  por  aforamento),  dando-nos  o  nome  do  rendeiro, 
Simão  Toscano.  Havia  effectivamente  na  índia  uma  numerosa  família 


I  IO  Colóquio  trigésimo  quarto 

de  Toscanos,  e  não  é  raro  encontrar  mencionadas  em  documentos 
contemporâneos  pessoas  d'este  appellido.  A  scena  passada  com  o  ren- 
deiro mostra-nos  bem,  como  se  haviam  levado  para  Goa  os  hábitos  da 
antiga  vida  portugueza.  Simão  Toscano  manda  dizer,  que,  depois  de 
amarrar  a  fusta,  virá  pousar  a  casa  de  Garcia  da  Orta,  exactamente 
como  um  rendeiro  alemtejano,  ao  largar  a  falua  no  Terreiro  do  Paço, 
vinha  pousar  a  casa  do  seu  senhorio  em  Alfama  ou  no  Bairro  Alto. 


Nota  (2) 

É  uma  phase  nova  para  nós,  esta  de  Orta  nos  fallar  de  systemas 
philosophicos,  e  das  suas  origens.  Seria,  porém,  um  erro  querermos 
dar  ás  suas  palavras  maior  significação  do  que  na  realidade  tem.  Pare- 
ce-me  claro,  que  elle  não  havia  penetrado,  nem  tentado  penetrar  nos 
mysterios  da  philosophia  sánkhya,  ou  da  vedánta,  ou  de  qualquer  ou- 
tro systema  hindu,  nem  procurado  com  muita  attenção  inteirar-se  das 
analogias  ou  differenças  que  podiam  existir  entre  a  doutrina  indiana  da 
transmigração,  a  metempsychose  grega  1,  e  a  noção  egypcia  das  trans- 
formações. Em  especial  as  differenças,  recentemente  expostas  com 
muita  clareza  em  um  livro  portuguez,  eram  então  absolutamente  des- 
conhecidas, e  demasiado  subtis  para  poderem  ser  devidamente  apre- 
ciadas (Cf.Vasconcellos-Abreu,  A  liter.  e  a  relijião  dos  Árias  na  índia, 
p.  ii5  e  seguintes). 

Orta  devia  ter  sobre  estes  pontos  apenas  as  idéas  geraes  e  muito 
geraes  do  seu  tempo.  Conhecia  a  doutrina  corrente  na  índia,  e  sabia 
da  existência  de  uma  doutrina  análoga  ou  igual  na  velha  Grécia  e  no 
velho  Egypto.  Admittiu  que  os  Baneanes  haviam  aprendido  no  Egypto, 
como  outros  admittiram  a  transmissão  da  doutrma  no  mesmo  sentido, 
ou  em  sentido  opposto:  ex  Egypto  in  orientem  pervenisse  Pythago- 
ram  .  . .  itntiio  ad  Indos  penetrasse,  et  aim  gymnosophistis  colhiciiliim 
fiiisse.  Estes  ascetas  indianos,  mergulhados  na  mais  pura  contemplação, 
despidos  de  todas  as  pompas  mundanas,  Htteralmente  despidos,  haviam 
feito  no  animo  dos  gregos  uma  viva  impressão,  e  não  só  os  philosophos, 
senão  também  os  botânicos  fallavam  d'elles :  indorum  sapientes,  qui  nudi 
degunt,  diz  Theophrasto  (traducçãoWimmer).  Orta  via  em  volta  de  si 
alguns  Brahmanes  e  Baneanes,  comtemplativos  e  semi-nus,  tinha  pelas 
suas  leituras  noticia  dos  «genosofistas»,  e  naturalmente  identificou-os 
— «estes  sam».  Com  o  seu  habitual  amor  á  verdade,  vendo-os  mais  oc- 
cupados  de  transacções  commerciaes  que  de  especulações  philosophi- 
cas,  acrescentou:  "posto  que  agora  se  deitam  mais  a  serem  mercadores 


'  Orta  não  falia  em  Pj'thagoras  no  texto,  menciona-o,  porém,  no  índice  explicitamente: 
«os  genosofistas  que  guardam  o  costume  de  Pitágoras». 


Das  manffãs  1 1 1 


'?? 


que  letrados».  A  isto  e  só  a  isto  se  limitou  a  sua  incursão  no  campo 
philosophico.  No  campo  puramente  religioso  nem  entrou,  e  todas  as 
complicações  da  mythologia  indiana  são  liquidadas  em  uma  só  phrase 
um  tanto  desdenhosa:  «e  sem  isto  tem  mil  cousas  dignas  de  muyto 
riso,  que  volas  não  diguo  por  não  gastar  mal  o  tempo». 

O  mais  que  nos  conta  dos  Baneanes  é  o  simples  resultado  da  sua  ob- 
servação. Os  Baneanes  (do  sanskrito  o{  |U|islH,  vanigjana,  gente  de 
negocio,  ou  mercadores)  constituiam  uma  classe  de  commerciantes  hin- 
dus, espalhados  por  toda  a  índia,  mas  especialmente  numerosos  no  Gu- 
zerate  e  seus  portos,  Diu,  Cambaia,  Surrate  e  outros.  As  necessidades 
do  commercio  levaram-nos  também  —como  Orta  diz —  a  regiões  afas- 
tadas. Arábia,  Pérsia  ou  Egypto.  Quando  Vasco  da  Gama  passou  pela 
primeira  vez  na  costa  africana  de  leste,  em  Mombaça  e  Melinde,  já  en- 
controu ali  estabelecidos  muitos  Baneanes,  que  elle  e  os  seus  compa- 
nheiros tomaram  por  christãos :  «os  christãos  que  estam  n'esta  cidade 
sam  como  estantes  mercadores».  Muito  mais  tarde.  Barros,  fallando 
d'esta  viagem  e  dos  suppostos  christãos,  identificou-os  correctamente: 
«entre  os  quaes  vieram  certos  homens,  a  que  chamam  Baneanes,  do 
mesmo  Gentio  do  Reyno  de  Cambava».  (Cf.  Roí.  da  viagem  de  Vasco 
da  Gama,  41 ;  Barros,  Ásia,  i,  iv,  6). 

Diz  Orta,  que  havia  entre  os  Baneanes  «muytas  especias»;  e  não  é 
fácil  saber  se  se  quiz  referir  a  differenças  de  crença,  pois  é  certo  que 
alguns  eram  sectários  deVíxnu,  e  outros  seguiam  a  religião  jaina;  ou 
se  falia  de  castas,  por  isso  que  alguns  mercadores  podiam  ser  brahma- 
nes,  não  lhes  sendo  absolutamente  vedado  o  commercio,  ainda  que 
esta  occupação  era  mais  própria  da  casta  váixia,  á  qual  devia  perten- 
cer a  maioria  dos  Baneanes.  Orta,  em  todo  o  caso,  distingue  correcta- 
mente os  Baneanes  dos  Brahmanes.  Posto  que  ao  principio  diga  "estes 
Baneanes  ou  Bramenes»,  parecendo  assim  confundil-os,  explica  de- 
pois que  os  Bramenes  eram  mais  venerados,  e  serviam  os  altos  car- 
gos do  estado.  Uns  e  outros  tinham  em  commum  vários  hábitos  e 
crenças,  tão  geralmente  sabidos  que  nenhuma  explicação  necessitam; 
e  unicamente  notarei  — como  uma  circumstancia  curiosa —  que  um 
d'esses  hábitos,  o  das  abluçóes  e  banhos  frequentes,  deu  origem  a  pro- 
por-se  uma  etymologia  muito  singular  do  seu  nome.  Diz  o  padre  Vi- 
cente Maria,  que  os  portuguezes  lhes  chamavam  Bagnani,  pelos  muitos 
banhos  que  elles  costumavam  tomar  (Vincenzo  Maria,  Fza^^/o  ai  Indie 
orientali,  25 1,  Roma,  1672). 

O  respeito  pela  vida  animal,  professado  pelos  Baneanes,  e  filiado  na- 
turalmente na  idéa  da  transmigração,  respeito  em  que  Orta  insiste  como 
em  circumstancia  especialmente  interessante,  é  perfeitamente  conhe- 
cido, e  foi  notado  por  um  grande  numero  de  viajantes  observadores, 
antes  e  depois.  O  nosso  Duarte  Barbosa  conta  a  este  respeito  todas  as 
historias  de  Orta  e  muitas  mais:  os  passarinhos,  ratos  e  cobras,  res- 


112  Colóquio  trigésimo  quarto 

gatados  da  morte ;  as  candeias  apagadas  para  se  não  queimarem  os 
mosquitos;  e  mesmo  os  parasitas  poupados  e  alimentados.  Pietro  delia 
Valle,  no  próprio  dia  em  que  chegou  a  Cambaya,  foi  visitar  um  hos- 
pital de  aves,  talvez  o  mesmo  que  Orta  havia  visto  uns  sessenta  annos 
antes,  e  encontrou-o  cheio  de  pavões,  gallos,  patos  e  pássaros  estro- 
piados e  doentes.  Do  mesmo  modo  que  Orta,  o  viajante  italiano  liga 
este  respeito  pela  vida  com  a  doutrina  da  transmigração,  admitte  que 
os  gymnosophistas  deviam  ser  os  ioguis  hindus,  e  vae  mais  longe,  di- 
zendo-nos  que  Brahma  e  Pythagoras  eram  uma  e  a  mesma  pessoa. 
Outro  viajante  celebre, Tavernier,  teve  também  occasião  de  ver  vários 
asylos  de  animaes  doentes,  nomeadamente  um  de  vaccas  e  de  ma- 
cacos em  Ahmedabad.  Não  será  necessário  accumular  mais  exem- 
plos, para  provar  que  o  nosso  escriptor  é  absolutamente  verídico  no 
que  conta  (Cf.  Duarte  Barbosa,  Livro,  27Ó;  P.  delia  Valle,  Foj'íJ^e5,  iv, 
61,  89,  97;  Tavernier,  Fq/a^ej,  11,  52). 


Nota  (3) 

Em  toda  esta  pagina,  Orta  enredou,  ut  solitus  erat,  os  mais  varia- 
dos assumptos,  alguns  dos  quaes  são  curiosos  e  exigem  umas  palavras 
de  explicação. 

O  nome  de  índia  deriva-se  geralmente  da  palavra  sanskritica  sindhu, 
que  significa  torrente  caudalosa  e  larga,  ou  por  analogia  o  mar,  e  se 
applicou  especialmente  ao  grande  rio  de  noroeste,  estendendo-se  ás 
terras  que  limitava.  Sindhu  converteu-se  em  Hindu,  e  esta  forma  no 
'ivXo;  dos  gregos,  e  no  Indus  dos  latinos,  chamando- se  a  terra  para  alem 
do  Indus,  'h^vAT,  e  índia.  De  modo,  que  a  índia  — como  diz  Orta —  re- 
cebeu o  nome  do  rio  Indo  1.  A  designação  de  Índia  alargou-se  primeiro 
a  toda  a  Península,  a  índia  propriamente  dita,  ou  aquém  do  Ganges, 
como  a  define  Ptolomeu;  e  depois  vagamente  ás  terras  alem  do  Gan- 
ges, e  mesmo  á  China.  Alargou-se  também  para  occidente,  abrangendo 
em  alguns  escriptores  a  Ethiopia  —  Indiam  omnem  plagam  ^Ethiopice 
accipimus,  diz  Servius.  D'aqui  vieram  as  designações  de  índia  major 
e  I)idia  minor,  e  uma  índia  tertia,  que  incluia  ás  vezes  Zanzibar.  A  pa- 
lavra tornou-se  em  certos  casos  tão  extensa,  que  alguns  auctores  di- 
vidiam o  mundo  conhecido  em  Europa,  Africa  e  índia,  tomando-a  como 
synonymo  de  Ásia.  Em  todo  o  caso,  uma  parte  da  Africa  foi  abrangida 


'  Rio  Indo  a  que  chamavam  também  Diul  — segundo  Orta.  Diul  era  propriamente  o 
nome  da  costa  em  que  desemboca  o  rio,  e  de  um  porto  na  embocadura.  Ás  vezes  appli- 
cavam  á  costa  as  designações  de  Diul-Sind,  ou  Diuicinde,  ou  Ulcinde,  como  diz  Camões: 

Olha  a  terra  de  Ulcinde  fértil  issima. 


Das  mangas  1 1 3 

pelo  nome  de  índia,  e  é  n'este  sentido  exacta  a  phrase  de  Orta :  «a 
Etiópia  era  chamada  índia  dos  antigos».  Podemos  notar,  que  a  divisão 
politica  das  colónias  portuguezas,  em  que  todas  as  possessões  da  Africa 
oriental  se  achavam  sob  as  ordens  do  governador  ou  vice-rei  da  índia, 
dava  no  tempo  de  Orta  uma  certa  actualidade  áquella  antiga  extensão 
do  nome. 

Da  divisão  em  Índia  major,  índia  minor,  e  outras,  veiu  o  habito 
de  fallar  das  índias  no  plural;  e  quando  o  nome  se  deu  a  terras  da 
America,  distinguiram-se  as  antigas  índias  orientaes,  das  novas  índias 
occidentaes.  Esta  ultima  designação,  que  irritava  um  pouco  o  nosso 
Orta,  vinha  naturalmente  do  erro  de  Colombo.  O  grande  navegador 
sempre  procurou  a  índia,  e  sempre  julgou  que  a  tinha  encontrado. 
Quando  depois  se  reconheceu,  que  as  novas  índias  eram  bem  diversas 
e  bem  distantes  das  antigas,  deu-se-lhes  o  nome  mais  ou  menos  apro- 
priado de  índias  occidentaes.  Este  é  o  verdadeiro  motivo,  e  não  que 
se  notassem  algumas  similhanças  entre  os  habitantes  do  xMalabar,  e  os 
da  ilha  Espanola  ou  do  Darien.  É  certo  que  essas  similhanças  se  no- 
taram,  como  se  notaram  muitas  mais,  porque  talvez  nenhuma  outra 
questão  desse  logar  a  tanto  disperdicio  de  erudição  como  a  da  origem 
dos  habitantes  da  America,  suppondo  uns  serem  descendentes  dos  car- 
thaginezes,  outros  das  dez  tribus  de  Israel  que  se  perderam,  e  dando- 
se-lhes  mais  algumas  ascendências  igualmente  phantasticas.  Se,  porém, 
se  buscaram  aquellas  similhanças  com  os  habitantes  da  verdadeira  e  an- 
tiga índia,  foi  para  legitimar  o  nome  já  corrente  de  índias,  e  não  que 
da  similhança  viesse  o  nome. 

Ao  mesmo  tempo  que  se  buscavam  ascendentes  conhecidos  aos  ha- 
bitantes da  America,  procurava-se  encontrar  nos  escriptores  antigos 
referencias  ao  Novo  Mundo,  obedecendo  n'este  caso,  como  no  pri- 
meiro, á  idéa  religiosa  de  que  todos  os  homens  deviam  descender  de 
Adão,  ou  antes  de  Noé.  Em  livros,  escriptos  com  muito  saber  e  pouca 
critica,  nós  vemos  discutir  gravemente  o  que  Aristóteles,  Séneca  ou 
Plutarcho  disseram  das  ilhas  e  do  continente  americano.  O  próprio 
Oviedo  —que  Orta  conhecia,  e  é  sem  duvida  um  dos  historiadores  da 
America  que  cita—  o  próprio  Oviedo  estava  convencido  de  que  Solino 
e  outros  antigos  haviam  fallado  das  terras  do  Occidente.  São  estas  as 
opiniões  a  que  Orta  se  refere,  sem  comtudo  as  aceitar,  e  dizendo  pelo 
contrario:  «nunca  forão  sabidas  dos  antigos,  nem  o  Brazil«  (Yule 
Gloss.,  329;  Marco  Polo,  11,  419,  425;  fr.  Gregório  Garcia,  Origen  de 
los  Índios  de  el  Nuevo  Mundo  e  índias  occidentales,  24  e  seguintes 
Madrid,  1729;  Oviedo  em  Ramusio,  iii,  65). 

Notaremos  ainda  uma  phrase  interessante  de  Orta  —  a  que  se  re- 
fere a  Alexandre,  ou  cEzcader»,  e  ás  historias  que  a  seu  respeito 
corriam  no  Oriente.  É  bem  sabido,  como,  parallelamente  á  verdadeira 
historia  de  Alexandre,  se  originaram  relações  da  sua  vida,  mais  ou 


114  Colóquio  trigésimo  quarto 

menos  falsas,  mais  ou  menos  revestidas  de  circumstancias  romanescas, 
e  algumas  tomando  a  forma  de  puros  romances.  A  partir  do  Pseudo- 
Callisthenes,  desenvolveram-se  duas  correntes  d'estas  lendas,  uma  Oc- 
cidental, dando  logar  á  Chanson  d'Alixandre  de  Lambert  le  Court,  ás 
Chansons  de  geste  d^Alixandre,  e  a  muitas  mais  composições  em  prosa 
e  em  verso;  a  outra  oriental  e  não  menos  rica.  Os  próprios  historiadores 
orientaes,  ou  que  n'essa  conta  se  tinham,  alteraram  e  ampliaram  sem 
escrúpulos  a  vida  do  grande  conquistador.  Maçudi,  por  exemplo,  conta- 
nos  de  iJjjCw"^!  alaskander  (Iskandar,  Sikandar,  ou  «Ezcader»)  as  mais 
curiosas  anecdotas  de  pura  invenção  oriental,  á  mistura  com  factos  reaes 
da  sua  vida;  e  alarga  as  suas  conquistas  até  á  China  eThibet.  Os  poetas, 
e  entre  elles  o  celebre  Firdusi  no  seu  Livro  dos  Reis,  levaram  ainda 
mais  longe  a  ficção  e  o  lado  romanesco  da  lenda.  Outras  composições 
versificadas,  arábicas  ou  persas,  eram  especialmente  dedicadas  á  vida 
de  Alexandre,  e  descreviam,  por  exemplo,  a  sua  viagem  a  Ceyláo, 
onde  foi  á  montanha  sagrada  adorar  a  pegada  do  primeiro  homem. 
É,  pois,  certo  — como  diz  Orta —  que  de  «Alixandre  elles  tem  muytas 
historias  mais  que  nós». 

Esta  litteratura  oriental  era  conhecida,  mais  ou  menos  completa- 
mente, dos  portuguezes  cultos  e  instruídos  que  andaram  pela  índia, 
sobretudo  dos  que  visitaram  Hormuz  ou  ali  residiram.  Aquella  rica 
cidade  commercial  foi  um  centro  de  cultura  do  espirito,  onde  floresceu 
o  ensino  oral,  tanto  nos  hábitos  e  na  indole  dos  povos  orientaes.  Muitos 
annos  antes  de  Orta,  António  Tenreyro  contava,  como  em  Hormuz: 

« em  hum  alpendre  grande  a  certas  horas  do  dia  pola  menhã 

e  á  tarde  lê  hum  mouro  velho  coronicas  antigas,  assim  de  Alexandre 
como  de  outros  varões  illustres;  isto  fazem  para  os  mancebos  se  cus- 
tumarem  bem.» 

Do  mesmo  Hormuz  escrevia  Luiz  Falcão  a  D.  João  de  Castro,  a  i  de 
fevereiro  de  1540,  dizendo-lhe :  «Alleyxos  de  carvalho  me  dixe  da  parte 
de  vosa  s.  que  lhe  mãodase  allyxandre  em  parsyo,  la  lho  mando  haimda- 
que  has  escreturas  destes  mouros  tenho-as  por  menos  autentes  que  as 
nossas».  E  a  5  de  fevereiro  do  mesmo  anno,  Garcia  de  la  Penha  escre- 
via também  a  D.  João  de  Castro :  «Aleyxos  de  carvalho  pedio  a  elrey 
e  goazil  hemires  hum  Ivvro  da  ystoria  dalyxandre,  com  muyto  traba- 
lho acharão  hum  que  lhe  mandão».  Como  se  vê,  D.  João  de  Castro 
sabia  da  existência  dos  códices  orientaes  relativos  a  Alexandre,  en- 
commendava-os  para  Hormuz,  e  lá  lh'os  obtinham  os  agentes  portu- 
guezes, embora  tivessem  duvidas  sobre  a  sua  authenticidade. 

Os  livros  de  historia  geral,  por  exemplo  o  de  Mirkond,  também  eram 
conhecidos  dos  nossos  escriptores,  como  João  de  Barros,  ou  PedroTei- 
xeira,  servindo  ao  ultimo  de  fonte  principal  para  escrever  as  suas  Rela- 
ciones, nas  quaes  se  encontra  a  versão,  ou  uma  das  versões  orientaes,  da 
vida  de  Ascandar  ou  Sakandar que  es  lo  que  depmos  Alexandra. 


Das  mangas  ii5 

O  que  acabamos  de  dizer  é  mais  que  sufficiente  para  mostrar,  como 
Orta  pôde  facilmente  alcançar  as  suas  noticias  de  «Ezcader»,  e  da  lit- 
teratura  especial  que  lhe  dizia  respeito  (Cf.  Maçudi,  Prairies  d'or,  ii, 
242  a  278;  Itinerário  de  António  Tenreyro,  8,  edição  de  1829;  Pedro 
Teixeira,  Relaciones,  88  e  seguintes ;  Vida  de  D.  João  de  Castro,  edição 
de  Fr.  Francisco  de  S.  Luiz,  a  p.  509). 


Nota  (4) 

Nas  notas  ao  Colóquio  segundo,  dissemos  já  como  os  mussulmanos 
deram  o  nome  de  Rumí  aos  christãos  do  Império  byzantino,  e  o  de 
Farangi  aos  do  Occidente,  d'onde  depois  vieram  as  conhecidas  desi- 
gnações de  Frangues,  Francos  e  Franquia.  O  nome  era  sabido  dos  nos- 
sos portuguezes  muito  antes  de  Orta,  pois  o  auctor  do  Roteiro  da  via- 
gem de  Vasco  da  Gama  já  o  emprega: 

« dissera  que  taees  homens  nom  podiam  ser  senam  francos, 

que  asy  chamam  a  nós  outros  em  estas  partes.» 

É  certo,  que  sem  referencia  especial  a  uma  doença  e  a  uma  doença 
infamada,  o  nome  comportava  na  boca  dos  orientaes  um  certo  des- 
prezo, pois  os  christãos  foram  sempre  mais  ou  menos  cães  aos  olhos 
dos  mussulmanos,  o  que  de  resto  aquelles  lhes  pagavam  na  mesma 
moeda. 

A  propósito  de  Frangues,  Orta  toca  de  leve  em  uma  das  questões 
mais  debatidas  e  calorosamente  controvertidas  no  seu  tempo,  e  sobre- 
tudo posteriormente  —  a  origem  da  syphilis.  Menciona,  sem  a  comba- 
ter ou  acceitar,  a  opinião  dos  que  consideravam  a  doença  como  nova, 
e  a  suppunham  importada  da  America.  Os  factos  a  que  se  refere,  pas- 
saram-se,  segundo  alguns  diziam,  do  seguinte  modo :  os  companheiros 
de  Christovam  Colombo  haviam  regressado  no  anno  de  1494  (e  não 
1493)  da  sua  segunda  viagem  á  Espanola,  contaminados  por  um  novo 
e  grave  mal,  adquirido  ali  no  contacto  com  as  mulheres  indígenas :.  por 
esse  mesmo  tempo,  Carlos  VIII  de  França  invadia  a  Itália,  atravessan- 
do-a  de  norte  a  sul,  e  ia  cercar  Nápoles,  onde  se  encerrara  Fernando  II, 
o  «Dom  Fernando»  do  nosso  escriptor:  no  anno  seguinte,  os  reis  ca- 
tholicos  enviavam,  em  soccorro  de  Fernando  II,  uma  armada  comman- 
dada  por  Gonçalo  de  Córdova :  foi  então,  que  os  soldados  hespanhoes 
infeccionados  communicaram  o  mal  a  algumas  mulheres  publicas,  e 
estas  aos  italianos,  e  também  aos  francezes  do  exercito  invasor,  os 
quaes,  no  seu  regresso,  o  trouxeram  para  França,  espalhando-se  depois 
por  toda  a  Europa.  Tal  era,  reduzida  aos  seus  traços  mais  geraes,  a 
exposição  dos  factos,  como  a  faziam  os  partidários  da  origem  americana 
da  syphilis,  e  da  sua  importação  na  Europa  nos  fins  do  xv  século.  Nin- 
guém naturalmente  queria  a  responsabilidade  da  nova,  grave  e  repu- 


ii6  Colóquio  irigesimo  quarto 

gnante  enfermidade,  e  por  isso,  de  ter  rebentado  em  Nápoles  lhe  cha- 
maram morbo  napolitano,  de  se  ter  generalisado  por  intermédio  dos 
francezes  morbo  gallico,  e  de  se  ter  desenvolvido  primeiro  entre  os 
hespanhoes  morbo  hispânico,  ou  — como  diz  Orta —  sarna  castelhana. 
Este  sentimento  reconhece-se  em  todos  os  escriptos  d'aquella  epocha, 
e  mesmo  no  titulo  que  o  erudito  Nicolau  Leoniceno  deu  ao  seu  tratado: 
De  epidemia  qitam  Itali  morbum  gallicum,  Galli  verum  morbum  neapo- 
litanum  vocant.  Também  os  christaos  lhe  chamaram  ynal  dos  turcos,  e 
os  mussulmanos  mal  dos  frangues,  o  que  era  a  simples  adopção  de 
morbum  gallicum,  e  de  mal  fran^^o^o,  mala  Franc^os,  como  se  encontra 
escripto  em  vários  opúsculos  do  tempo.  Orta  adopta  para  a  doença  a 
orthographia /riH^ui,  que  encontrámos  também  em  Pedro  Teixeira,  na 

seguinte  passagem : lo  dijen  los  Parsios  doneyfranguy,  que  quiere 

decir  mal  o  sarna  de  los  Franceses Los  canarines  nacion  oriental 

en  la  índia,  corrompiendo  esto  un  poço,  dijen  a  los  Portugueses  y  a 
los  christianos  blancos  de  la  Europa  Franguy  y  a  las  bubas  fringuy. 

Orta  podia  ter  encontrado  a  versão  da  origem  americana  em  vários 
escriptos  médicos,  já  publicados  no  seu  tempo:  no  opúsculo  de  Leo- 
nardo Schmauss,  De  morbo  gallico  (i5i8);  nas  obras  de  António  Musa 
Brasavola,  um  dos  seus  auctores  validos;  ou  no  livro  de  Dias  de  Isla> 
Contra  las  bubas,  livro  dedicado  a  D.  João  III  de  Portugal,  e  que,  por- 
tanto, devia  ter  attrahido  a  attenção  dos  médicos  portuguezes.  Mas  a 
origem  mais  provável,  ou  quasi  segura,  da  sua  informação  é  o  livro  de 
Oviedo.  Gonçalo  de  Oviedo  foi  um  dos  primeiros  a  contar  detidamente 
os  factos  relativos  á  introducção  da  doença  na  Europa,  pouco  mais 
ou  menos  como  os  indica  Orta;  alem  d'isso  nós  sabemos  que  Orta 
conhecia  a  sua  Historia  general  de  las  índias,  porque  a  cita  em  um 
dos  Colóquios  seguintes,  e  vemos  como  n'este  Colóquio  nos  diz  expli- 
citamente, que  encontrara  a  noticia  em  um  historiador  hespanhol  — da 
nacionalidade  de  Ruano —  e  não  em  um  livro  de  medicina.  Parece-me 
claro,  portanto,  que  elle  repetia  Oviedo. 

A  noticia  de  Oviedo  não  era  exacta.  Em  muitos  livros  correntes  de 
medicina,  se  podem  encontrar  numerosas  citações,  pelas  quaes  se  vê 
bem  como  a  syphilis  existia  no  Velho  Mundo  de  antigos  tempos,  em- 
bora houvesse  nos  fins  do  século  xv  uma  recrudescência  de  gravidade 
e  frequência  d'aquella  enfermidade.  De  outro  lado,  o  exame  minucioso 
dos  factos  históricos,  relativos  á  invasão  da  Itália  por  Carlos  VIII,  e  a 
comparação  attenta  das  datas,  provam  até  á  evidencia  que  as  cousas 
se  não  podiam  passar  como  as  conta  Oviedo,  e  como  acima  as  resu- 
mimos. Mas  é  certo  que  a  versão  de  Oviedo  e  de  outros  escriptores 
d'aquella  epocha  foi  recebida  durante  muito  tempo;  foi  admittida  por 
um  dos  médicos  contemporâneos  mais  notáveis,  Gabriel  Fallopo;  e 
ainda  foi  energicamente  defendida  muito  depois  por  médicos  erudi- 
tíssimos, como  Astruc.  Ficou  mesmo  clássica,  passando  para  o  dominio 


Das  mangas  117 

da  litteratura.  No  Candide  de  Voltaire,  o  dr.  Pangloss,  fazendo  a  pi- 
caresca genealogia  da  doença,  que  o  tinha  posto  ás  portas  da  morte, 
diz  que  o  primeiro  da  serie  1'avait  eu  eti  droite  ligne  d'im  des  compa- 
gnons  de  Cristophle  Colomb.  O  que  acceitaram  Fallopo  e  Voltaire, 
podia  bem  ter  acceitado  Garcia  da  Orta;  mas  a  verdade  é  que  elle  não 
acceita  aversão  —  cita-a,  e  nada  mais.  Tem  mesmo  uma  phrase,  que 
se  pode  interpretar  no  sentido  opposto:  «de  principio  as  tiverão  ca». 
Essa  phrase,  porém,  será  mais  opportunamente  discutida  quando  che- 
garmos ao  Colóquio  quadragésimo  sétimo. 

(Cf.  Leoniceno,  Schmauss,  etc,  em  Aloysio  Luisino,  Aphrodisiacus, 
sive  de  lue  venérea,  ed.  de  1728,  dita  de  Boerhaave,  p.  i5,  383,  e  ou- 
tras; Oviedo,  em  Ramusio,  iii,  54,  76; Teixeira,  Relaciones,  35;  Follin, 
Traité  de  path.  externe,  i,  6o5 ;  Renault,  La  Syphilis  au  xv^  siècle,  Pa- 
ris, 1868.) 


COLÓQUIO  TRIGÉSIMO  QUINTO 

DA  MARGARITA  OU  ALJÔFAR,  E  DO  CHANQUO 
DONDE  SE  FAZ  O  QUE  CHAMAMOS  MADREPÉROLA 


INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RUANO 

Humas  das  pedras  medicinaes  he  o  aljôfar'^  ou  seja  cha- 
mada pedra  ou  não,  ja  está  em  uso  chamarse  asi  na  física. 

ORTA 

Chama-se  perla  em  castelhano,  e  pérola  em  portuguez,  e 
em  latim  nnio:  e  isto  no  aljôfar  grande,  porque  o  meudo 
chamase  em  latim  margarita;  e  em  arábio  lulu,  e  em  pér- 
sio; e  nas  outras  gerações  da  índia,  rnoti;  e  em  malavar 
mutu;  e  em  portuguez  e  castelhano  aljôfar. 

RUANO. 

Donde  se  derivam  estes  nomes? 

ORTA 

Dos  Latinos  e  Castelhanos  e  Portuguezes  vos  darei  logo 
rezão,  e  dos  outros  perdoarmeis,  porque  o  não  sei:  perla 
Q  pérola  se  dizem  áç. prefer o,  preferes,  porque  tem  imminen- 
cia,  e  he  perferida  a  todas  as  outras  do  seu  género:  unio 
se  diz,  porque  de  maravilha  se  acham  duas  conformes  em 
grandeza  e  figura,  e  em  ser  viva:  aljôfar  se  diz,  porque  em 
arábio  quer  dizer  de  Julfar,  que  he  o  principal  cabo  donde 
o  ha  qua,  scilicet,  o  milhor  he  de  Julfar,  que  he  hum  porto 
na  terra  da  Arábia  confim  ao  estreito  que  chamam  de  Or- 
muz, e  o  milhor  he  o  pescado  em  Barem,  Catifa,  Julfar, 
Camarão,  e  outros  portos  desta  costa:  e  porque  o  mais  noto 
a  nós  era  Julfar,  e  os  Espanhoes  usamos  da  lingoa  arábia, 
o  chamamos  asi,  casi  trazido  do  porto  de  Julfar. 


120  Colóquio  trigésimo  quinto 

RUANO 

Folgo  de  saber  esta  diri vacam:  e  porque  chamam  orien- 
taes  a  estas  pérolas  boas,  por  ventura  porque  eram  de  cor 
dourada? 

ORTA 

Nam,  senão  porque  vinham  da  banda  do  Oriente,  e  porque 
este  estreito  de  Ormuz  era  oriental  a  respeito  da  nossa 
Europa,  o  chamam  asi. 

RUANO 

Ha  em  mais  cabos,  que  neste,  o  aljôfar? 

ORTA 

Este  he  o  milhor  e  mais  grosso,  e  também  o  ha  cá  do  cabo 
do  Comorim  até  á  ilha  de  Ceilam.  Esta  pescaria  he  delrey 
nosso  senhor,  e  ainda  que  lhe  podia  render  muyto,  por  ser 
tam  zeloso  da  fé  gasta  mais  do  que  lhe  rende  em  mais  de 
cinquenta  mil  cristãos,  que  se  fizeram  em  o  principio ;  e  foi 
feita  esta  cristandade  por  hum  varam,  nam  menos  vertuoso 
que  letrado,  chamado  Miguel  Vaz,  vigairo  geral  que  foy  da 
índia;  e  foy  depois  acrecentada  esta  cristandade  por  Mestre 
Francisquo,  teólogo,  que  foy  principio  desta  santa  Compa- 
nhia, juntamente  com  o  Padre  Ignacio,  cujas  virtudes  e  san- 
tidades, se  se  ouvessem  de  escrever,  se  faria  hum  grande 
livro  (i).  E  agora  esta  cristandade  he  acompanhada  e  favore- 
cida poUos  padres  e  irmãos  da  Companhia  de  Jesus,  e  está 
decorada  por  martírio  de  alguns  religiosos  desta  sancta  Com- 
panhia. Este  aljôfar,  que  nesta  pescaria  se  pesca,  he  mais 
meudo,  porém  ha  entre  este  algum  muyto  bom,  e  também 
o  ha  grosso;  mas  polia  maior  parte  não  he  tam  grosso  como 
o  de  Barem  e  Julfar,  nem  de  tanto  preço;  ha  o  também 
em  Burneo,  e  ainda  que  he  muyto  grosso,  não  he  de  tam 
boa  feiçam;  vem  também  da  China,  ainda  que  não  he  tam 
bom.  E  quanto  he  ao  que  vem  das  terras  e  ilhas  do  vosso 
rey,  e  do  que  ha  em  Europa,  vós  o  sabeis  milhor  que  eu; 
e  porque  eu  não  sey  contradizer,  sem  craramente  ver  rezam 
pêra  isso,  não  diguo  que  os  escritores  do  Peru  dizem  mal 


Da  margarita  121 

em  dizer  que  ha  pérolas  verdes,  e  outras  muytas  cousas 
nesta  matéria. 

RUANO 

Vem  tanto  e  tam  bom  aljôfar  dessas  terras  que  dizeis, 
que  meu  irmão,  o  feitor,  traz  soma  delle  pêra  vender  cá, 
e  diz  que  dobrará  o  dinheiro  duas  vezes  nelle;  e  portanto 
não  sei  como  dizeis  que  he  mercadoria  pêra  Portugal  o  al- 
jôfar. 

ORTA 

Tudo  pode  ser  verdade;  porque  o  aljôfar  que  de  cá  vai, 
e  as  pérolas,  he  grosso  e  redondo,  e  em  toda  perfeiçam :  e 
o  que  de  lá  vem  das  índias  sam  huns  barrocos  mal  afeiçoa- 
dos, e  não  redondos_,  e  com  aguas  mortas. 

RUANO 

E  valem  cá  mais  os  máos  que  os  bons? 

ORTA 

Não,  senam  a  má  feiçam  delles  recompensase  com  mais 
pouco  preço  cá  na  índia  que  em  Espanha,  porque  em  Es- 
panha, de  redondo  a  não  redondo,  de  vivo  a  morto,  de  boa 
feiçam  a  má,  vai  grande  deferença,  que  a  pérola  que  tem 
estas  perfeições,  se  vai  cá  dez,  a  que  não  as  tem  vai  lá  dous 
ou  hum,  e  cá  não  he  asi  acerca  dos  Canaras,  que  sam  os 
habitantes  em  Bisnager  e  seus  reinos,  senão,  se  a  de  toda 
perfeiçam  vai  dez,  a  imperfeita,  no  mesmo  peso,  vai  cinco 
ou  quatro:  de  maneira  que  pôde  vosso  irmão  dobrar  a  mer- 
cadoria cá,  e  levando  aljôfar  da  índia  ganhar  lá  dinheiro. 

RUANO 

Bem  está,  mas  eu  sam  físico,  e  quero  saber  como  se  pes- 
cam, e  se  usam  cá  delias  os  físicos  nas  mezinhas;  e  se  as 
ha  furadas  e  não  furadas,  e  per  natureza  sem  arte,  como 
alguns  dos  nossos  doutores  escrevem,  dizendo:  toma  mar- 
garitas  furadas  e  não  furadas.  E  asi  me  dizei,  se  nisso  não 
levardes  trabalho,  qual  he  a  múov  pérola  que  vistes,  e  o  ai- 


122  Colóquio  trigésimo  quinto 

jofar  usado  na  botica  donde  vai,  e  o  preço  que  vai  a  onça 
delle. 

ORTA 

Achase  nas  ostras,  que  pescam  nos  tempos  já  sabidos 
pêra  isto;  e  as  ostras  que  andam  no  mais  alto,  trazem  mais 
grosso  aljôfar;  e  as  que  andam  em  mais  baixo  pego,  tem 
o  mais  meudo;  e  põem  as  a  secar,  e  abremse;  e  na  carne 
delias  acham  o  aljôfar,  depois  da  carne  ser  sequa  algum 
tanto;  e  achase  em  huma  ostra,  ora  muytas,  ora  poucas, 
segundo  a  concha  he;  e  não  já  huma  só,  como  alguns  dixe- 
ram,  em  que  acham  mais  de  duzentos  grãos.  Dizer  que  ha 
aljôfar  furado  per  natureza,  foy  querer  falar  de  graça,  e 
fingir  fabulas  ao  sabor  do  seu  pádar;  e  nas  mezinhas  usam 
deste  aljôfar  os  Gentios  algum  tanto,  porém  os  Mouros 
usam  muyto  delle  em  todas  as  mezinhas  cordiaes,  asi 
como  nós  usamos.  E  as  milhores  destas  ostras  pêra  dar  os 
aljôfares  sam  humas  ostras  lisas  e  brancas,  a  que  a  gente 
da  terra  chama  cheripo;  e  fazem  delias  colheres  e  búzios 
pêra  beber;  e  também  nas  nossas  ostras,  que  comemos, 
ha  aljôfar,  mas  não  he  tam  bom.  E  a  maior  pérola,  que 
se  acha  no  cabo  de  Comorim,  he  do  pezo  de  cem  grãos  de 
trigo,  e  vi  outras  mu3'to  maiores  vindas  de  Burneo,  mas  não 
de  tam  boa  feiçam;  e  outra  de  qua,  que  pezava  loo  e  6o* 
grãos  de  trigo,  ou  40  quilates,  que  he  o  mesmo.  A  do  pezo 
de  100  grãos  de  trigo,  que  sam  25  quilates,  a  que  chamam 
calanja,  vai  mil  e  600  cruzados.  Nos  mais  preços  vos  não 
falarei,  porque  milhor  he  ser  filosofo  que  mercador.  O  al- 
jôfar se  joeira  ou  pineira  em  humas  pineiras  de  latam,  e  as 
que  per  hum  buraco  saem,  valem  a  tal  preço  a  oitava;  e  as 
que  não  podem  sair  per  elle,  nem  per  outro  mais  grosso, 
valem  a  mais  preço;  e  as  que  saem  per  outro  buraco  mais 
grosso  valem  a  muyto  mais;  e  os  mercadores  desta  terra 
tem  estas  joeiras,  e  per  ellas  fazem  seus  preços;  e  esta  he 
huma  conta  muyto  sutil,  que  vosso  irmam  folgará  de  saber, 


»  (Sic),  isto  é  160,  como  se  vê  da  correspondência  com  o  quilate. 


Da  margarita  i23 

porque  tem  humas  regras  muyto  arteficiosas;  e  o  aljôfar, 
que  he  tam  meudo,  que  se  nam  pôde  furar,  vendemno  pêra 
botica,  e  para  o  levar  a  Espanha:  vai  uma  onça  menos  de 
hum  vintém  (2) . 

RUANO 

Desfalece  o  aljôfar  per  tempo  no  pezo?  porque  me  dizem 
que  si,  e  por  isso  nam  era  bom  pêra  tizouro. 

ORTA 

Si,  desfalece  \  e  porém  nam  o  esprimentei;  e  o  que  se  diz, 
e  o  que  se  tem  por  mais  certo,  he  que  o  aljôfar  pescado 
em  mingoante  da  luna  he  o  que  falece  per  tempos,  e  o  outro 
não,  e  isto  se  tem  per  muyto  averiguado. 

RUANO 

Se  este  aljôfar  não  estiver  tam  limpo  e  pulido,  como  fa- 
remos que  tenha  viveza  e  limpeza  e  polimento?  Dizeime 
isto  se  o  sabeis,  porque  nam  sois  tam  filosofo  como  mos- 
traes,  que  também  quereis  ter  pérolas  e  pedras,  como  os 
outros. 

ORTA 

Si  sei,  e  dirvoloei.  Tomai  aroz  mal  pisado  e  sal,  e  esfre- 
gaio  com  elle  muyto,  e  ficará  tam  limpo,  como  o  milhor 
do  mundo. 

RUANO 

E  o  outro  de  que  fazem  as  cousas,  que  chamamos  de 
madrepérola,  he  esse  que  chamaes  cheripo? 

ORTA 

Nam,  senam  outro  que  chamam  chanquo,  de  que  fazem 
cofres  e  mesas  e  contas;  porque,  ainda  que  por  de  fora 
seja  tosco,  pella  parte  de  dentro  he  muyto  liso  e  fermoso. 
He  este  chanco  mercadoria  pêra  Bengala,  e  ganhavão  noutro 
tempo  mais  do  que  se  ganha  agora;  e  estes  chanquos  gran- 
des, a  que  nós  chamamos  búzios,  que  vam  a  Bengala,  la- 
vranse  lá  muyto  fermosamente;  e  ficam  muyto  lisos  e  bran- 
cos; e  isto  se  gasta  em  pouca  cantidade,  porque  o  mais  se 


124  Colóquio  trigésimo  quinto 

gasta  em  manilhas  e  em  outras  peças.  E  foy  em  Bengala 
até  agora  hum  custume,  que  nenhuma  pessoa  onrada  e  de 
preço,  que  fosse  virgem,  pudexe  ser  corrompida,  senam 
tendo  manilhas  de  chanquo  postas  nos  braços:  e  depois  que 
vieram  os  Patanes  se  perdeo  este  custume  algum  tanto,  por 
onde  o  chanquo  vai  agora  mais  barato;  e  vedes  aqui  hum 
taboleiro  de  tabolas  de  emxadrez,  de  que  vos  faço  serviço, 
pêra  verdes  o  chanquo  á  vossa  vontade  (3). 

RUANO 

Mercê  muyto  grande  he  pêra  mim ;  porém  me  dizei  estas 
taboas  pretas  do  emxadrez  de  que  sam? 

ORTA 

De  tartaruga  •,  e  também  se  fazem  desta  tartaruga  cousas 
muyto  frescas;  e  não  fallo  nellas,  porque  não  he  cousa  medi- 
cinal; porque  falámos  já  muyto  nestas  cousas,  que  não  fazem 
caso  a  física. 


Nota  (i) 

MiguelVaz  foi  uma  figura  bastante  saliente  e  bastante  conhecida  para 
nos  dispensar  de  longos  esclarecimentos.  O  vigário  geral  representou 
um  papel  importante  na  administração  dos  negócios  ecclesiasticos  da 
índia,  substituindo  a  sua  enérgica  vontade  ás  frouxas  e  bondosas  reso- 
luções do  bispo  D.  João  de  Albuquerque,  e  deixando-se  por  vezes  ar- 
rastar pelo  seu  zelo  inconsiderado  a  actos  de  prejudicial  intolerância. 
Toda  a  historia  de  Miguel  Vaz,  da  sua  vinda  a  Portugal,  da  sua  volta 
á  índia  com  instrucções  de  D.  João  III  e  breves  do  papa,  das  devassas 
que  ali  fez  a  respeito  de  gentios  e  christãos  novos,  da  sua  morte  quasi 
repentina  e  attribuida  ao  veneno  e  á  vingança  dos  perseguidos,  toda 
esta  historia  seria  sem  duvida  interessante;  mas,  suppondo  mesmo  que 
tínhamos  elementos  para  a  fazer,  ficaria  absolutamente  deslocada 
n'estas  notas  (Cf.  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  i6i  e  194;  e  também 
Couto,  Gaspar  Corrêa,  a  Vida  de  D.  João  de  Castro,  na  edição  de 
Fr.  Francisco  de  S.  Luiz,  etc). 

Quaesquer  que  fossem  os  erros  de  MiguelVaz,  elle  era  extremamente 
zeloso  pela  propagação  da  fé;  e,  em  tempo  do  Governador  D.  Estevão 
da  Gama,  iniciou  as  missões  na  costa  de  leste,  junto  ao  cabo  Comorim, 


Da  margarita  i25 

mandando  lá  o  seu  grande  amigo,  mestre  Diogo  de  Borba.  Gaspar 
Corrêa,  do  mesmo  modo  que  Garcia  da  Orta,  attribue  a  Miguel  Vaz  a 
gloria  de  ter  começado  aquellas  missões : 

«N'este  tempo  (1544)  o  Rey  do  cabo  de  Comorym,  que  se  chama 
o  Rey  grande  (o  de  Travancore),  teve  guerra  com  outro  seu  visinho 
que  he  Rey  das  terras  d'alem  do  cabo,  da  christindade  de  Manapá  e 
Totucury,  que  Ia  fez  Miguel  Vaz,  vigairo  geral  da  Índia,  que  então 
era ...» 

Manapá  pôde  identificar-se  com  uma  localidade,  que  tem  o  nome 
de  Munahpaud  em  algumas  cartas  modernas;  e  Totucury  é  conhecido 
pelo  mesmo  nome  de  Tutikorin,  ficando  mais  ao  norte,  alem  da  foz  do 
Tamraparni,  e  da  (então)  importante  villa  ou  cidade  de  Kayal  (Cael  de 
Barbosa).  Os  habitantes  das  villas  e  lugares  d'aquelle  littoral,  de  casta 
Parava  (os  Paravas  de  Diogo  do  Couto),  occupavam-se  principalmente 
na  pesca  das  pérolas,  ou  na  sua  própria  costa  de  Tinnevelly,  ou  na 
costa  fronteira  de  Ceylão,  sendo  Kayal  ou  Cael,  já  no  tempo  de  Marco 
Polo  e  ainda  no  tempo  de  Duarte  Barbosa,  uma  villa  rica,  centro 
d'aquella  industria  e  commercio.  Os  nossos  portuguezes  chamaram, 
pois,  costa  da  Pescaria  a  todo  o  littoral  da  índia,  que  limita  o  golfo  de 
Manaar,  desde  o  cabo  Comorim  até  Beadala  ou  Vedãlay  e  ilha  de  Ra- 
meseram  (Cf.  G.  Corrêa,  Lendas,  iv,  408;  Couto,  Ásia,  vi,  vii,  5;  Yule, 
Marco  Polo,  u,  358;  Barbosa,  Livro,  353). 

Foi  esta  costa  da  Pescaria  um  dos  primeiros  campos  de  evangelisação 
de  S.  Francisco  Xavier — a  quem  Ofta  chama  «mestre  Francisquo». 
Chegado  á  índia  com  o  governador  Martim  Affonso  de  Sousa,  seguiu 
cinco  me^es  depois  para  o  sul,  estendendo  as  suas  missões  até  Bea- 
dala, e  até  á  ilha  de  Manaar,  e  baptisando  — segundo  diz  Lucena —  por 
aquellas  aldeias  de  pobres  pescadores  mais  de  quarenta  mil  pessoas, 
o  que  não  anda  longe  dos  cincoenta  mil  christãos,  de  que  falia  Orta. 
Nada  mais  será  necessário  dizer  do  iliustre  apostolo  do  Oriente;  e  só 
notarei,  que  os  Colóquios  seriam  incompletos,  se  n'elles  se  não  encon- 
trasse esta  menção,  ao  mesmo  tempo  familiar  e  respeitosa,  do  grande 
«mestre  Francisquo». 

Nota  (2) 

Orta  toca  em  muitas  particularidades  interessantes  a  respeito  de 
pérolas,  e  o  Colóquio  exige  uma  nota  um  tanto  longa. 

Encontram-se  pérolas  no  interior  de  vários  molluscos;  mas  as  pé- 
rolas finas  dos  mares  orientaes  e  tropicaes,  aquellas  de  que  Orta  falia, 
formam-se  unicamente  na  espécie  Mieleagi-ina  iiiarg-ariti- 
fex*a,  Linn.  Os  nomes  mencionados  no  Colóquio  são  exactos,  tanto 
os  mais  vulgares,  pérola  ou  perla,  unio,  jnargarita,  e  aljôfar,  como  os 
menos  geralmente  conhecidos,  o  arábico  J^J),  lulu,  o  hindustani     J  <^, 


126  Colóquio  trigésimo  quinto 

muti,  e  o  tamil  mutu,  devendo  derivar-se  estes  últimos  do  sanskritico, 
Hrtil,  muktâ.  Se  os  nomes  são  exactos,  as  etymologias  podem  dar  logar 

a  varias  duvidas.  Derivar  pérola  (perla  na  baixa  latinidade)  de  prcefero, 
poderá  parecer  um  tanto  forçado;  mas  será  mais  uma  derivação,  a 
juntar  a  muitas,  que  se  encontram  em  livros  correntes,  como  o  de 
Bluteau  ou  o  de  Littré,  e  todas  são  pouco  satisfatórias.  A  etymologia 

de  unio  é  da  responsabilidade  de  Plinio : in  tantum  ut  niilli  duo 

reperiantur  indiscreti:  unde  nominum  unioiium  romance  scilicet  impo- 
suere  delicice  (ix,  56,  ed.  Littré).  A  de  aljôfar  é  falsa,  embora  enge- 
nhosa; aljôfar  não  se  deriva  do  logar  em  que  se  pescava,  ,'jdss.,  Djol- 
far,  e  é  simplesmente  ^asr'!,  al-djauhar,  que  significa  do  mesmo  modo 
pérola  (Dozy,  145;  Sousa,  49). 

Das  localidades,  apontadas  por  Orta,  e  onde  se  pescavam  pérolas, 
«Barem,  Catifa,  Julfar,  Camarão»,  as  três  primeiras  estavam  situadas 
na  costa  da  Arábia  oriental  ou  junto  d'ella,  e  apenas  Camarão,  de  que 
logo  fallaremos,  ficava  distante  d'ali.  Ao  longo  da  costa  arábica  do 
golfo  de  Oman  e  do  golfo  Pérsico  pescavam-se  pérolas  em  muitos 
pontos  e  desde  tempos  muito  antigos',  sendo  bem  conhecidas  as  pes- 
carias de  Djolfar,  de  que  falia  Edrisi,  e  particularmente  nomeadas  as  da 
ilha  de  Bahrein,  e  as  de  Catifa,  ou  el-Qatif,  porto  na  terra  firme  da 
Arábia  em  frente  de  Bahrein,  do  qual  já  se  occupa  Maçudi  no  x  século. 
Dos  no.ssos  portuguezes,  António  Tenreyro  é  um  dos  que  descrevem 
mais  detidamente  estas  pescarias  do  golfo  Pérsico,  mencionadas  tam- 
bém pelo  Camões: 

Attenta  a  ilha  Barem,  que  o  fundo  ornado 
Tem  das  suas  perlas  ricas,  e  imitantes 
A  côr  da  Aurora ; 

As  pescarias  do  golfo  Pérsico  estiveram  mais  ou  menos  sujeitas  aos 
portuguezes,  emquanto  estes  occuparam  Hormuz,  sendo  as  barcas  de 
pesca  obrigadas  a  tirar  uma  espécie  de  passaporte,  pelo  qual  pagavam 
um  certo  direito.  AfFonso  de  Albuquerque,  com  o  seu  génio  dominador 
e  inventivo,  tinha  mesmo  pensado  em  tornar  mais  directa  a  sua  inter- 
venção, tomando  conta  d'aquella  industria,  e  transformando-a  pelo 
emprego  de  dragas  e  redes  de  arrastar.  Em  carta  de  20  de  outubro  do 
anno  de  i5i4,  dizia  elle  o  seguinte: 

«babarem,  senhor,  he  cousa  muito  grosa  e  muito  Rica:  ha  Pescaria 
do  aljôfar  não  he  nada  (é  fácil)  d  asenhorear  porque  sam  homeens  que 
o  pescam  jemte  de  trabalho  e  mizquinha,  que  vem  aly  ganhar  sua  vida 


'  Sobre  o  conliecimento  que  houve  das  pérolas  nos  antigos  tempos,  pode  ver-se  I.ocard 
Hist.  des  mollusques  dans  1'antiqiuíé,  p.  iSg  e  seguintes. 


Da  margarita  127 

cadano,  e  parece  me  que  pescandose  com  Rastos  de  lá  desas  partes, 
que  se  dobraria  o  proveito.» 

Diz  Orta  que  o  aljôfar  do  golfo  Pérsico  era  o  «milhor  e  mais  gros- 
so». Um  viajante,  que  percorreu  repetidas  vezes  a  Pérsia  e  a  índia, 
menos  de  um  século  depois  de  Orta,  e  tinha  especial  auctoridade  no 
assumpto,  porque  era  joalheiro  e  negociante  de  pedras  preciosas,  João 
Baptista  Tavernier,  confirma  esta  opinião  até  certo  ponto,  dizendo-nos 
que  aquellas  pérolas  eram  geralmente  mais  grossas  que  as  da  índia  e 
de  boa  forma,  comquanto  um  pouco  amarelladas.  A  ma\or  pérola  que 
viu,  propriedade  do  Scháh  da  Pérsia,  procedia  justamente  da  pescaria 
de  Catifa;  e  outra  que,  embora  não  fosse  muito  grande,  elle  considerava 
a  mais  perfeita  de  quantas  existiam,  pertencia  ao  Imam  de  Mascate,  e 
devia  também  proceder  d'aquella  costa  (Cf.  Edrisi,  Géogr.  i,  157;  Ma- 
çudi,  Prairies  d'or,  i,  240,  828;  Tenreyro,  Itin.,  cap.  49;  Affonso  de  Al- 
buquerque, Cartas,  264;  Les  six  voyages  de  Jean  Baptiste  Tavernier, 
II,  36o,  Paris,  1679). 

Orta  cita  «Camarão»  de  envolta  com  Julfar  e  Catifa,  como  se  ficasse 
nas  proximidades,  o  que  não  é  assim.  Camarão  era  uma  ilha  do  Mar 
Vermelho,  junto  da  qual  também  houve  pescarias  de  pérolas,  embora 
muito  menos  conhecidas  e  celebradas.  Affonso  de  Albuquerque,  fal- 
lando  de  uns  prisioneiros  que  fez,  estando  na  mesma  ilha  de  Camaram, 
diz  o  seguinte: «amtre  os  quaees  se  tomou  huum  homem  hon- 
rado, que  foy  xeqe  e  senhor  da  ilha  de  dalaca  e  de  meçuá  e  das  ilhas 
da  pescaria  do  aljôfar».  Quasi  pelo  mesmo  tempo,  Thomé  Pires  dava 
noticia  d'estas  pescarias  de  pérolas  do  marVermelho,  na  sua  conhecida 
carta  a  D.  Manuel,  enviada  de  Cochim  a  27  de  janeiro  de  i5i6.  Diz 

assim :  «ho  aljoufar  nacee  nestas  partees  em  dalac dalac  sãa  ylhas 

dez  legoas  a  la  mar  do  porto  de  meçua,  terra  dabixia  ou  a  elle  sojeyta 

no  mar  Roxo,  sesemta  legoas  da  entrada  e  menos ».  Como  se  vê 

d'estas  cartas  de  Albuquerque  e  de  Pires,  nas  costas  da  Abyssinia  e  da 
Arábia,  e  nas  ilhas  intermédias  do  grupo  de  Dahlac  e  de  Kamaran  al- 
gum aljôfar  se  encontrava  por  aquelles  tempos,  e  d'este  falia  o  nosso 
escriptor  (Cf.  Affonso  de  Albuquerque,  Cartas,  218;  Thomé  Pires,  na 
Ga^.  de  Pharm.  (1866),  41). 

Ao  contrario  das  pouco  conhecidas  pescarias  da  ilha  de  Camarão,  as 
do  sul  da  índia  e  Ceylão  tern  sido  descriptas  largamente,  e  por  varias  ve- 
zes— pelo  nosso  portuguez  João  Ribeiro,  por  Sir  J.  E.Tennent,  não  fal- 
lando  de  muitos  outros.  Estavam  situadas  no  Golfo  de  Manaar,  e  — pelo 
que  diz  Simão  Botelho —  parece  que  havia  duas  epochas  de  pesca;  uma 
em  que  se  pescava  na  costa  da  índia,  chamada  costa  da  Pescaria  (Ca- 
lecaré  de  Simão  Botelho,  e  Quilicare  de  Barbosa),  entre  o  cabo  de 
Comorim  e  a  ilha  de  Rameseram;  a  outra  em  que  se  pescava  no  sitio 
chamado  Caradiva  da  costa  fronteira  de  Ceylão.  Esta  pesca  do  lado  de 
Ceylão  era  no  emtanto  a  mais  importante,  como  explica  muito  clara- 


128  Colóquio  trigésimo  quinto 

mente  Thomé  Pires,  na  sua  carta  já  citada:  «geralmente  dizem  aljou- 
fare  de  caile  (Kayal)  porque  de  caile  ho  vãa  lia  pescar;  mas  pescase 
pegado  a  terra  da  ylha  de  ceylão».  No  tempo  de  João  Ribeiro,  já  a 
praia  de  Aripo  em  Ceylão  era,  como  continuou  a  ser,  o  principal 
centro  onde  se  reuniam  as  champanas  dos  mergulhadores,  para  d'ali 
partirem  todas  as  manhãs  nos  mezes  de  março  e  abril  em  busca  dos 
bancos  de  ostras,  que  Orta  chama  cheripo,  e  Ribeiro  chipe  (de  chippi, 
ostra  em  tamil).  A  descripção  d'esta  pesca  tem  sido  feita  tantas  vezes, 
que  a  não  repetirei  aqui,  remettendo  o  leitor  para  alguns  dos  livros 
abaixo  citados.  Unicamente  notarei,  emquanto  á  qualidade  das  pérolas 
do  golfo  de  Manaar,  que  Tavernier  concorda  com  Orta,  atíirmando 
serem  muito  boas,  brancas,  de  boa  forma  e  boa  agua;  mas  pequenas, 
excedendo  raras  vezes  3  a  4  quilates,  e  não  passando  em  geral  de  al- 
jôfar meudo. 

Estas  pescarias  de  Manaar  pertenciam  a  Portugal,  ou,  no  modo  de 
dizer  do  tempo,  a  «elRey  nosso  senhor»;  mas  rendiam-lhe  menos  do 
que  lhe  deviam  render  por  elle  ser  «tam  zeloso  da  fé«.  Explica-se  esta 
phrase  de  Orta,  primeiro  porque  directamente  se  fariam  despezas  avul- 
tadas nas  missões  d'aquella  costa;  segundo  porque  o  rendimento  dimi- 
nuía á  medida  que  o  numero  dos  christáos  augmentava.  Ao  principio, 
o  capitão  da  pescaria  cobrava  de  direitos  por  conta  do  Rey  de  Portugal 
o  mesmo  que  os  pescadores  pagavam  antes  ao  «senhor  da  terra»,  isto 
é  «setenta  e  cinquo  mil  ftanões,  de  dez  ffanões  o  xerafim».  Mas  quando 
os  pescadores  se  começaram  a  fazer  christãos,  os  missionários  e  par- 
ticularmente os  jesuítas  intervieram  em  seu  favor,  de  modo  que  «ffoy 
a  pescarya  demenuindo  e  rendendo  muito  menos.»  É  isto  o  que  nos  diz 
Simão  Botelho,  que  de  modo  algum  se  conformava  com  a  intervenção 
dos  padres  na  administração  da  fazenda.  Comprehende-se  assim,  que 
ali  se  gastasse  mais  do  que  se  cobrava,  como  aflfirma  Orta.  De  uma 
carta  de  Felipe  II  para  o  vice  rey  da  índia,  escripta  no  anno  de  i586, 
se  vê  que  as  cousas  continuavam  no  mesmo  estado;  e  ali  se  diz,  que 
se  não  podiam  pagar  as  despezas  a  fazer  com  alguns  navios  de  remo, 
pelo  não  «soprir  o  rendimento  da  pescaria,  por  não  emportar  mays 
huns  anos  por  outros  que  nove  myl  pardáos,  valendo  as  despezas  que 
fazião  em  cada  hum  ano  de  xbiii  (18),  a  xx  mil  pardáos».  (Cf.  João  Ri- 
beiro, Fatalidade,  cap.  xxii;  Tennent,  Ceylon,  11,  56o  e  seguintes;  Ta- 
vernier, 1.  c.  36o  a  370;  Tombo,  244;  Thomé  Pires  1.  c. ;  Ar  eh.  por  t. 
oriental,  fase.  3.°,  61). 

Em  «Burneo»  — segundo  diz  Orta —  encontrava-se  aljôfar,  grande 
mas  não  de  «boa  feiçam».  E.sxa%  pérolas  não  deviam  vir  propriamente 
de  Borneo,  e  sim  das  ilhas  do  archipelago  de  Sulu  ou  Suluk,  que  se 
extende  da  extremidade  oriental  de  Borneo  até  Mindanáo.  Duarte 
Barbosa  falia  de  Sulu,  sob  o  nome  de  Solor,  e  concorda  inteiramente 
com  a  noticia  de  Orta:  « e  asy  muyto  aljôfar  que  os  moradores 


Da  margarita  129 

apanhaom,  e  boas  pérolas  perfeitas  em  coôr  e  nom  em  redondeza». 
É  de  notar,  que  a  traducção  italiana  de  Barbosa  pelo  Ramusio  — citada 
por  Crawfurd —  não  é  exacta,  e  diz  que  as  pérolas  eram  fine  cosi  in 
colore,  come  in  ritotidet^a.  Não  era  assim,  Barbosa  havia  dito  que  não 
eram  perfeitas  em  «redondeza»,  como  Orta  disse  que  não  eram  de  boa 
«feiçam»  (Cf.  Duarte  Barbosa,  Livro,  SyS;  Ramusio,  i,  32o;  Crawfurd, 
Dct.^  V.  pearl  e  SoolooJ. 

Pelo  que  diz  respeito  ás  pérolas  da  China,  encontrámos  a  confirmação 
da  noticia  de  Orta  no  bem  conhecido  livro  de  um  dos  seus  compatriotas 
e  contemporâneos.  O  illustre  Fernão  Mendes  Pinto,  navegando  com 
António  de  Faria,  foi-se  encontrar  na  bahia  de  Camoy  da  ilha  de  Ay- 
nam,  com  uma  grande  armada  de  pescadores  de  pérolas  chinezes,  e 
conta  detidamente  o  que  lá  viu  e  ouviu.  Ainda  que  haja  alguma  exa- 
geração no  numero  de  gente  e  barcos,  que,  segundo  elle  diz,  ali  an- 
davam pescando  e  guardando  a  pesca,  devemos  admittir  que  aquella 
industria  se  exercia  então  com  actividade  nos  mares  da  China.  Muitos 
annos  antes,  Thomé  Pires  fallou  d'este  mesmo  aljôfar  de  «hainan», 
explicando  com  muito  correcta  geographia  como:  «hainan  sam  ylhas 
antre  o  Reyno  de  cauche  (Cochinchina).  e  a  china».  O  aljôfar  d'ali 
vendia-se  nos  mercados  da  índia,  segundo  se  vê  da  Lembrança  das 
cousas  da  Ymdea;  e  o  omnisciente  Duarte  Barbosa  também  conhecia 
as  pérolas  da  China,  notando  como  Orta  que  não  eram  muito  boas : 

« não  saom  perfeitas  em  redondeza»  (Cf.  Fernão  Mendes  Pinto, 

Peregr.,  cap.  xuv;  Thomé  Pires,  1.  c;  Lembrança,  nos  Subsidias,  Sg; 
Duarte  Barbosa,  Livro,  3'j5). 

Por  ultimo,  Orta  falia  das  pérolas  da  America,  muito  ao  de  leve,  e 
como  de  cousa  distante,  da  qual  pouco  sabia.  No  emtanto  a  sua  menção 
tem  um  ponto  interessante,  pois  nos  dá  meio  de  saber  quem  era  o  es- 
criptor  do  Peru,  ou  pelo  menos  um  dos  escriptores,  que  elle  cita  habi- 
tualmente. Oviedo,  fallando  das  pérolas  negras  e  coradas,  diz  que  se 
encontravam  algumas  (cito  pela  versão)  quasi  a^^urre^  altre  pendono  ai 
verde.  Aqui  temos  as  pérolas  verdes,  e  a  prova  de  que  Orta  citava 
Oviedo  (Cf.  Ramusio,  iii,  168  v."). 

João  Baptista  Tavemier  diz-nos,  que  Goa  tinha  sido  antes  do  seu 
tempo  — era,  portanto,  no  tempo  de  Orta —  um  dos  grandes  mercados 
do  Oriente  para  pedras  preciosas  e  pérolas.  Ali  vinham  ter  as  mais  no- 
táveis de  Bahrein,  Manaar  e  outras  pescarias  orientaes,  e  algumas  da 
America,  e  ali  concorriam  baneanes,  negociantes  do  Occidente  e  la- 
pidarios  venezeanos  e  florentinos.  Não  nos  deve,  pois,  surprehender 
que  Orta  tivesse  occasião  de  ver  varias  pérolas  de  notável  valor.  Pé- 
rolas, como  as  que  cita,  de  ^S  e  40  quilates  não  são  vulgares,  com- 
quanto  não  sejam  absolutamente  excepcionaes.  Tavernier  viu  uma  do 
Scháh  da  Pérsia,  que  custara  1:400:000  libras  (livres  francezas)  e  era 
muito  maior;  e  viu  algumas  entre  as  jóias  do  Grão-Mogol,  Aureng  Zeb, 


i3o 


Colóquio  trigésimo  quinto 


pesando  6o  e  70  ratis^.  EUe  próprio  vendeu  ao  tio  do  mesmo  Aureng 
Zeb  uma  parola  americana,  do  peso  de  55  quilates.Todas  esxas  pérolas 
eram  regulares,  porque  das  irregulares  ou  barrocos  muitas  havia  de 
peso  superior,  sem  por  isso  terem  valores  correspondentes. 

Acabámos  de  ver,  como  Tavernier  havia  vendido  na  índia  uma  pé- 
rola americana;  e  assim  como  Orta,  elle  trata  de  explicar  aapparente 
contradicção  de  se  levarem  pérolas  para  o  Oriente,  trazendo-se  muitas 
de  lá;  dá-nos,  porém,  motivos  um  pouco  diversos,  dizendo  que  os  reis 
e  potentados  da  índia  pagavam  melhor,  sobretudo  quando  se  tratava  de 
peças  pouco  vulgares.  Naturalmente  o  aljôfar  meudo  não  se  levava  para 
lá  da  America,  e  o  do  Oriente  vendia-se  em  Goa  por  preços  variados  e 
não  muito  altos,  depois  de  dividido  em  «pineiras»  ou  crivos  de  latão. 
Os  preços,  é  claro,  variavam  segundo  a  dimensão.  Na  curiosa  miscella- 
nea  de  apontamentos  diversos,  que  constituem  a  Lembrança  das  cousas 
da  Ymdea  no  anno  de  i525,  encontram-se  tabeliãs  d'estes  preços,  por 
onde  se  pôde  ver  a  sua  variação :  assim  o  aljôfar  de  mil  a  mil  e  duzentos 
grãos  em  matical  podia  valer  onze  até  treze  fanóes  os  dez  maticaes,  em- 
quanto  o  de  oitenta  a  cento  e  vinte  grãos  por  matical  valia  cincoenta 
fanóes  os  dez  maticaes.Tudo  isto  podia  dar  logar  ás  contas  complicadas 
a  que  Orta  allude;  mas  quando  elle  falia  de  uma  «cojita  muyto  sutil», 
com  «regras  muyto  artificiosas»,  creio  que  se  quer  referir  ao  chego.  O 
chego,  usado  unicamente  em  Goa,  e  unicamente  no  commercio  áas pé- 
rolas, era  um  peso  engenhosamente  variável,  cuja  correspondência  com 
o  quilate  e  os  pesos  decimaes  se  pode  ver  da  seguinte  tabeliã: 


Quilates 

Chegos        Grammas 

Quilates 

Chegos          Grammas 

I 

= 

5      =  0,20735 

8 

=    ^\       =  1,65885 

2 

= 

8     =  0,41471 

9 

^    %       =  1,86621 

3 

= 

1 1  1=  0,62207 

10 

=    69       =  2,07357 

4 

= 

16     =  0,82942 

i3 

=-  i5ó     =  3,iio35 

5 

= 

21       =    1,03678 

20 

=-  277  í  =4,i47'4 

6 

= 

27       =    1,24414 

3o 

=  623     =  6,22071 

7 

= 

34       =    1,45149 

40 

=  1 1 1 1  1  =  8,29428 

A  combinação  engenhosa  consiste  em  o  peso  do  chego  diminuir  á 
medida  que  o  da  pérola  augmenta.  Assim,  fixado  um  preço  ao  chego, 
o  preço  ou  valor  da  pérola  augmentava  rapidamente  com  o  seu  peso, 
e  uma  pérola  de  40  quilates  não  valia  dez  vezes  mais  que  uma  de  4, 


'  Segundo  Tavernier,  o  rati  equivalia  a  7»  do  quilate.  O  ralli  era  propriamente  o  peso 
médio  da  semente  vermelha  de  uma  leguminosa,  Abrus yrecalorius.  Os  pesos  pequenos  da 
índia  foram  originariamente  procurados  no  peso  de  varias  sementes;  e  nas  leis  de  Manu 
vem  marcadas  as  correspondências  de  peso  das  sementes  de  papoula,  de  mustarda,  de  ce- 
vada, etc.  Vemos  em  Garcia  da  Orta  uma  influencia  d'estes  hábitos  indianos,  quando  falia 
dos  grãos  de  trigo,  era  logar  de  dizer  simplesmente  grãos. 


Da  maj^garita  i3i 

mas  perto  de  setenta  vezes  mais.  Claro  está,  que  estas  regras  se  não 
podiam  applicar  a  pérolas  de  excepcional  belleza,  cujo  valor  era  pura- 
mente de  estimação;  mas  deviam  servir  a  regular  as  transacções  ordi- 
nárias. Não  encontro  nos  documentos  do  xvi  século  menção  do  chego; 
mas  Tavernier  falia  (1660  proximamente)  d'este  modo  de  pesagem, 
como  de  cousa  estabelecida  em  Goa  de  longa  data,  por  onde  parece 
que  já  existiria  no  tempo  de  Orta,  e  que  esta  seria  a  sua  conta  «muyto 
sutil».  Por  outro  lado  ainda  se  vê  o  chego  mencionado  em  livros  com- 
merciaes  modernos,  do  que  se  pode  inferir  que  ainda  o  empregam 
(Lembrança,  nos  Subsídios,  33 ;  Tavernier,  Voyages,  n,  277,  371,  376; 
The  Merchanfs  Handbook,  270,  th.''  édition,  1879). 

De  outras  indicações  de  Orta,  mais  ou  menos  exactas,  não  será  ne- 
cessário fallar,  e  unicamente  nos  referiremos  brevemente  ao  que  diz 
respeito  ao  emprego  medicinal  das  pérolas.  Este  emprego  foi  geral  no 
tempo  de  Orta,  e  as  pérolas  eram  — como  elle  diz —  uma  das  «pedras 
medicinaes».  No  Electarium  de  Gemmis  Qnnawam  três  drachmas  mar- 
garitarum  albarum,  ingrediente  que  igualmente  figurava  em  muitas 
outras  composições  da  antiga  pharmacia.  Não  sei  bem  quando  as  pé- 
rolas desappareceram  das  pharmacopêas  da  Europa,  onde  se  conser- 
varam durante  muito  tempo  como  antiácidas;  mas  na  matéria  medica 
oriental  continuaram  até  aos  tempos  modernos,  a  serem  consideradas 
como  cardíacas — as  «mesinhas  cordiaes»  de  Orta.  Naturalmente,  des- 
tinavam-se  a  este  uso  as  pérolas  mais  pequenas,  e  não  susceptíveis  de 
serem  furadas  e  aproveitadas  de  outro  modo.  Este  aljôfar  meudo  cus- 
tava um  preço  minimo,  uma  «onça  menos  de  um  vintém»,  como  diz 
Orta,  ou  —segundo  as  tabeliãs  já  citadas—  «Aljôfar  de  botiqua,  que 
nam  é  furado,  valem  dez  matiquaes  a  dous  fanóes  até  treze  1». 

(Cf  Concórdia  pharmacopolanim,  29;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i,  293; 
Lembrança,  1.  c). 

Nota  (3) 

O  «chanquo»,  ou  chank,  do  sanskrito  sankh,  é  a  concha  da  Tiii*l>i- 
nella  pyi-uin,  Linn.,  de  que  a  Turbinella  rapa,  Gm.,  parece  ser 
uma  simples  variedade,  e  que  se  pesca  em  vários  mares  dos  trópicos, 
mas  principalmente  no  golfo  de  Manaar,  proximamente  nas  mesmas 
localidades  e  bancos  em  que  se  encontra  a  ostra  das  pérolas. 

Esta  grande  concha,  ou  «búzio»,  como.  Orta  lhe  chama  com  pro- 
priedade, é  venerada  pelos  hindus,  que  a  tocam  nos  templos 2,  ou  se 


'  Parece  haver  aqui  um  erro;  e  deve  ler-se  «dous  fanóes  até  três». 

'  O  uso  dos  búzios  ordinários  como  instrumento,  ou  uma  espécie  de  trombeta,  é  muito 
commum  em  algumas  das  nossas  províncias  para  chamar  de  manhã  a  gente  de  trabalho. 


i32  Colóquio  trigésimo  quinto  da  ynargarita 

servem  d'ella  como  de  lâmpada,  ou  como  de  taça  nas  suas  libações. 
A  variedade,  bastante  rara,  em  que  a  hélice  se  enrola  para  a  esquerda, 
é  sobretudo  muito  apreciada,  e  vê-se  com  frequência  figurada  na  mão 
das  imagens  de  Víchnu.  Diz-se,  que  algumas  vezes  é  vendida  pelo  seu 
peso  de  ouro,  o  que  pode  levar  o  preço  a  40  ou  5o  libras  esterlinas. 

O  emprego  da  concha  da  Turbinella  no  fabrico  de  contas,  pequenos 
objectos  de  ornato,  e  sobretudo  de  braceletes  e  manilhas  é  perfeita- 
mente conhecido,  e  Orta  é  exactissimo  n'este  ponto.  Ainda  recente- 
mente se  exportam  das  pescarias  de  Manaar  para  Calcutá  e  Bengala 
grandes  quantidades  d'aquellas  conchas,  exactamente  como  succedia 
então. 

É  mais  duvidoso  que  a  madrepérola,  trabalhada  n'aquelles  tempos 
em  «cofres»  e  «mesas»,  procedesse  toda  da  Turbinella,  ainda  que  Fryer 
(1673)  diga,  do  mesmo  modo  que  Orta :  chanquo,  the  shells  ofwhich  are 
the  mother  of  pearl.  Parece  que  a  madrepérola,  hoje  empregada  na  in- 
dustria, procede  principalmente  de  espécies  de  Strombus  e  de  Haliotis, 
e  já  então  deviam  ser  aproveitadas  estas  conchas.  A  madrepérola  en- 
contrada em  grande  abundância  nas  costas  de  muitas  das  ilhas  do  ar- 
chipelago  Malayo,  e  que  já  n'aquelles  antigos  tempos  devia  ser  traba- 
lhada na  índia  e  na  China,  diz-se  proceder  de  ostras  (?),  e  por  esta 
palavra  seguramente  se  devem  designar  molluscos  bivalvos,  muito  di- 
versos da  Turbinella. 

(Cf.  Yule  e  Burnell,  Gloss.,  i4o;Tryon,  Man.  of  Concheio gia,  iii,  68; 
Fisher,  Man.de  Conchologie,  11,  618  e  845;  Crawfurd,  Dict.,  33o). 


COLÓQUIO  TRIGÉSIMO  SEXTO 

DO  MUNGO  E  MELAM  DA  ÍNDIA, 
A  QUE  QUA  CHAMAMOS  PATECA 


INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA,  SERVA 
RUANO 

Todas  as  cousas  enfastiam  por  saborosas  que  sejam, 
quando  se  come  muyto  delias;  e  asi  me  acontece  a  mim 
com  simples  medicinais,  quando  me  falaes  muito  delles,  ainda 
que  sejam  cousas  de  notar;  e  por  esta  causa  he  bem  que 
sempre  nas  mezas  aja  cousas  que  incitem  o  apetito,  asi 
como  alcaparras  e  azeitonas;  e  eu  fiquei  tam  gostoso  das 
mangas,  que  estimaria  agora  que  falasemos  em  outra  fruta 
alguma  da  índia. 

ORTA 

Darvoshei  a  comer  patecas  ou  melões  da  índia. 

RUANO 

Nam  seja  de  huns  melões  que  aqui  vi  em  casa,  que  me 
enganarão,  porque  me  cheiram  ao  mais  fino  melam  do 
mundo,  e  quando  o  provei  acheio  de  sabor  de  lama,  e  a 
causa  foi  uma  vossa  compradeira  que  me  enganou;  per- 
guntandolhe  eu,  se  era  bom,  dixeme  que  si;  e  eu  porque 
vejo  nesta  terra  pepinos,  como  os  de  Portugal,  pareceome 
que  também  averia  melões  como  os  nossos. 

ORTA 

EUa  falouvos  segundo  seu  gosto,  e  como  pessoa  que  nam 
comera  melões  em  Europa;  e  porém  seyvos  dizer  que  em 
Dio  ha  melões,  que  se  podem  muyto  bem  comer,  porque 
sam  arrasoados  no  sabor  e  no  cheiro,  como  os  de  Portugal ; 
e  asi  os  ha  em  muytas  partes  do  Balagate,  e  os  que  ha  em 
Ormuz  sam  tam  bons  como  os  de  Espanha.  Mas  não  sam 


1 34  Colóquio  trigésimo  sexto 

estes  os  melões  de  que  vos  eu  quero  falar;  senão  outros  que 
os  Portuguezes  de  cá  chamamos  patecas,  e  he  hum  melam 
grande  e  redondo,  ou  de  feiçam  oval,  por  milhor  dizer;  nam 
se  come  cortando  ao  comprido,  como  nós  comemos  o  me- 
lam, senão  cortando  ao  largo.  He  redondo,  tem  a  semente 
preta,  quando  he  maduro,  e  quando  he  verde,  branca;  e 
posto  que  nam  he  doce,  como  os  nossos  melões,  he  muyto 
suave,  esfria  muyto,  humedece,  desfazse  todo  em  aguoa,  e 
he  muyto  bom  nos  causomees*  e  pêra  todas  as  febres  coléri- 
cas, e  esquentamento  do  fígado,  e  rins,  segundo  vemos  cá 
por  experiência;  provoca  muyto  a  orina,  e  os  sãos  o  costu- 
mão  cá  tomar  4  oras  depois  de  jantar,  que  he  o  tempo 
mais  quente;  e  a  mim  pareciame  melhor  começar  por  elles 
os  jantares.  A  semente  destes  melões  provoca  o  sono,  e  sam 
as  milhores  sementes  frias  que  cá  temos,  posto  que  não  ca- 
recemos das  outras**.  E  em  este  género  de  melões  não  se 
pode  duvidar  da  sua  conpleixam  ser  fria  e  húmida;  porque 
nos  nossos  melões,  por  serem  abstersivos  ou  alimpadores  e 
doces,  duvidam  alguns  na  sua  compleixam  ser  fria.  E  por- 
que vejaes  tudo  ao  olho,  e  sejaes  testemunha  de  vista,  asan- 
taivos  a  comer,  e  provareis  deste  melam  chamado  de  nós 
pateca.  Moça,  traze  cá  esse  melam  ou  pateca. 

SERVA 

Melão  vossa  mercê  não  o  sóe  comer:  mas  aqui  estam 
patecas  que  vieram  de  Chaul,  e  outras  melhores  de  Dabul. 
Eilas  aqui. 

ORTA 

Querovos  fazer  a  salva;  deitai  as  pevides  fora,  e  provai 
que  boa  está  esta  pateca. 


*  «Causomees»  deve  ser  erro  de  imprensa,  por  causónes,  sing.  causón, 
que  o  Diccionario  de  la  Real  Academia  Espahola  define :  calentura  re- 
pentina mui  ardiente. 

•*  As  quatro  grandes  sementes  frias  da  antiga  pharmacia  eram  as 
do  melão,  do  pepino,  da  melancia  e  da  abóbora  (Guibourt,  iii,  262). 


Do  mungo  e  melam  da  índia  i35 

^  RUANO 

He  huma  das  milhores  frutas  que  vi  em  minha  vida;  e 
em  certos  tempos  a  queria  antes  que  os  nossos  melões; 
porque  não  faram  mais  que  alterar,  e  muyta  parte  parece 
que  ade  sair  polia  orina,  e  alguma  por  camarás,-  e  não  fi- 
cará lá  couza  sujeita  a  corruçam,  como  acontece  nos  me- 
lões, e  pepinos  e  cogombros:  e  eu  levarei  estas  sementes 
pêra  em  Espanha  semear.  Mas  dizeime  o  nome  delia  em 
todas  as  lingoas,  e  porque  lhe  chamaes  pateca. 

ORTA 

Segundo  querem  os  Arábios  e  Pérsios  esta  fruta  fo}^  le- 
vada ás  suas  terras  de  qua  da  índia;  e  por  isso  lhe  chamam 
battec  indi,  que  quer  dizer  inelam  da  índia;  e  Avicena  asi 
a  chama  em  muytas  partes;  e  batiec  somente,  quer  dizer 
melam,  e  o  nome  da  terra  indiana  he  calangari. 

RUANO 

E  quem  vos  dixe  que  se  chamava  batiec  indi?  Faz  por 
ventura  mençam  delia  algum  arábio  escritor? 

ORTA 

O  nome  he  comum ;  e  asi  lhe  chamam  os  físicos,  que  sa- 
bem a  lingoa  arábia,  se  lhe  acertam  o  nome;  e  Serapio,  se 
lhe  escreveo  outro  nome,  foy  por  se  chamar  assi  em  sua 
terra,  ou  estará  a  letra  corruta;  mas  Avicena  craramente 
lhe  chama  batiec  indi,  no  quarto  livro,  no  capitulo  da  febre 
terçam  pura:  e  ahi  pÕe  grandes  louvores  delle,  os  quaes 
vós  sabeis  melhor  que  eu,  ainda  que  eu  o  tenha  mais  espre- 
mentado  que  vós.  E  se  Deos  quizer  que  vades  a  Hespanha, 
e  a  lá  semearem,  vós  achareis  quam  boa  cousa  he  pêra  as 
febres  coléricas,  e  pêra  outras  muytas  emfermidades. 

RUAiNO 

Ouvi  dizer  que  avia  em  muytas  partes  de  Castella  huns 
melões  muito  finos,  a  que  chamavam  budiecas,  as  quaes 
pode  ser  sejam  estas  patecas,  e,  corrompendo-lhe  o  nome, 
lhe  chamaram  budiecas  por  patecas. 


i36  Colóquio  trigésimo  sexto 

ORTA 

Eu  vi  já  estes  melões  em  algumas  partes  de  Castella,  e 
chamavamlhe  budiecas,  e  outros  lhe  chamavam  samdias;  e 
proveios  e  he  hum  pomo  mui  deferente  deste;  por  onde  não 
se  pode  dizer  da  mesma  especia,  nem  chamar  batiec  indi;  e 
mais  estas  patecas  não  tem  as  folhas  como  os  melões,  senão 
mui  deferentes  destas  budiecas,  e  mais  he  huma  mata  alta, 
e  não  estendida  pollo  cham  como  as  patecas;  e  dixeramme 
que  as  avia  em  Africa,  da  mesma  maneira  destas  da  índia; 
isto  bem  pode  ser,  mas  eu  não  dou  fé  do  que  nam  vi  (i). 

RUANO 

Vós  quando  me  dizeis  que  isto  não  he  medecinal,  entam 
lhe  acho  eu  mais  medecina,  e  me  dizeis  cousas  de  que  eu 
mais  gosto,  e  eu  mais  estimo  pêra  curar.  E  os  físicos  desta 
terra  sabem  deste  melam  da  índia? 

ORTA 

Nenhum  soube  isto,  senão  a  quem  o  eu  dixe,  e  não  por- 
que elles  não  sejam  homens  mui  bons  letrados,  senão  por- 
que não  se  prezam  de  couzas  tam  baixas:  mas  eu  pergunto 
estas  cousas  aos  físicos  grandes.  Arábios  e  Gentios. 

RUANO 

E  como  lhe  sabeis  perguntar  isto  aos  Arábios? 

ORTA 

Porque  sei  todas  as  emfermidades  do  terceiro  e  4  de  Avi- 
cena,  e  todos  os  simples  do  segundo  em  arábio;  e  isto  me 
aproveitou  muyto  curando  aquelle  rey  meu  amiguo,  e  a 
seus  fílhos,  posto  que  ao  principio  foi  trabalho  pêra  mim. 
E  aproveitavame  pêra  isto  o  bem  que  me  queria  o  rey,  que 
elle  me  ensinava  estes  nomes  das  emfermidades  e  mezinhas 
em  arábio,  e  eu  lhos  ensinava  em  latim,  do  que  elle  muyto 
gostava;  e  per  sua  causa  mo  ensinavam  também  os  físicos 
que  elle  tinha  Arábios  e  Coraçones. 


Do  mimgo  e  melam  da  índia  iSy 


RUANO 

E  OS  Gentios  entendeivos  com  elles? 


ORTA 

Muyto  bem;  porém  elles  sam  homens,  que  nam  curam 
senam  per  esperiencia  e  per  costume;  e  he  tam  boa  de  en- 
ganar a  gente  portugueza,  que  facilmente  sam  enganados 
por  elles,  e  o  que  pior  he  que  alguns  Portuguezes,  ou  por 
contentar  o  povo,  ou  por  se  desocupar  de  curar  os  emfermos, 
e  nam  querer  trabalhar  em  especular  as  curas,  vamse  com 
o  seu  parecer  delles ;  e  porque  ser  aprazível  ao  povo  faz  ao 
físico  ganhar  mais  dinheiro,  usam  loguo  em  principio  das 
mezinhas  delles. 

RUANO 

Elles  usam  das  nossas? 

ORTA 

Muytas  vezes;  mas  as  mais  delias  nam  ao  propósito;  por- 
que dizem  — sangrese —  e  elles  nunqua  usarão  sangria,  senão 
desque  nós  somos  nesta  terra;  bem  que  usavam  deitar  vento- 
sas, e  çarrafar,  e  deitar  sangufexugas:  oulham  as  agoas, 
segundo  que  soube  pellos  físicos  de  Soldam  Bhadur  e  do 
Nizamoxa,  e  nunqua  acostumaram  ver  agoas,  senão  vêem 
que  o  fazemos,  e  fazemno  como  bugios;  e  daqui  lhes  acon- 
tece que  se  vem  a  orina  branca,  sem  nenhuma  digestam, 
tem  a  por  boa,  e  se  a  vem  vermelha  e  grossa  com  diges- 
tam louvada,  tem  a  por  má.  Estas  e  outras  cousas  muytas 
soube  eu  delles,  tomandoos  pollo  beiço,  e  porque  não  ha 
quem  saiba  tam  pouquo  que  não  saiba  algumas  cousas 
boas,  seivos  dizer  que  curam  bem  nas  camarás,  e  pollo 
pulso  dizem  se  tem  febre  ou  não,  e  se  está  fraco  ou  rijo, 
e  qual  he  o  humor  que  peca,  se  he  sangue  ou  cólera,  ou 
fleima,  ou  melamcolia:  dam  bom  remédio  para  as  opilações. 


RUANO 


Dam  xaropes  ou  agoas  estiladas,  e  he  costume  antiguo 
entre  elles? 


i38  Colóquio  trigésimo  sexto 

ORTA 

Nam,  nem  o  usam  os  do  Balagate,  senão  os  que  tratam 
aqui  comnosco,  que  dizem  loguo:  dailhe  xarope  violado;  dai- 
Ihe  lambedor;  dailhe  agoa  contra  fluxo;  dailhe  agoa  de  chan- 
tagem ou  cevada;  ou  talhadas  cordiaes;  ou  açucare  rosado 
com  agoa  de  almeirões;  e  nenhuma  destas  cousas  costuma- 
vam cá  na  índia,  ante  que  viesemos;  somente  sei  que  no 
Balagate  usam  os  Mouros  e  Gentios  de  semente  de  emdipia, 
pisada,  e  bebida  com  agoa  da  fonte,  isto  em  toda  maneira 
de  febre.  Não  o  custumavam  ante  que  viesemos  a  estilar 
agoas,  senão  o  costume  seu  próprio  he  dar  a  beber  cozi- 
mentos de  legumes  e  sementes,  e  çumos  de  ervas  tosca- 
mente perparados:  andam  per  huma  rua,  e  a  todos  curam 
com  hum  frasquo  que  trazem. 

RU.VNO 

Nam  venha  ahi  Galeno,  que  mais  pragueje  de  Tesalo,  e 
segundo  mostraes  em  vossas  palavras  mal  estaes  com  essa 
gente:  ei  medo  que  vos  dêem  peçonha. 

ORTA 

Antes  todos  estam  bem  comiguo;  porque,  digem  como 
eu  nam  sam  muyto  cobiçoso,  ou,  por  dizer  mais  verdade, 
sam  preguiçoso,  deixo  os  curar  quantas  curas  me  tomão,  e 
perguntolhes  primeiro  o  que  lhe  ande  fazer,  e  se  he  mezi- 
nha que  eu  conheço  ser  boa,  ou  que  não  fará  mal,  digolhe 
que  usem  delia  se  o  paciente  se  quer  curar  com  ella;  e  se 
he  má,  defendolha;  e  se  he  mezinha  que  não  se}'^  se  he 
boa  ou  má  (como  muitas  vezes  acontece)  também  lha  de- 
fendo. Erram  também  estes  íisicos  nas  graduações  destas 
mezinhas,  porque  a  pimenta  e  o  cardamomo  dizem  ser  frio, 
e  o  ópio  ser  quente;  da  anatomia  nam  sabem  onde  está  o 
fígado,  nem  onde  está  o  baço,  nem  cousa  alguma. 

RUANO 

Vós  não  me  confesaes  que  tomaes  algumas  couzas  delles? 


Do  mungo  e  melam  da  Lídia  i3g 

ORTA 

Si,  muytas;  mas  primeiro  provo  as  mezinhas  dos  meus 
doutores,  quando  me  não  aproveitam,  tomo  as  dos  Bra- 
menes  desta  terra*. 

SERVA 

Aquella  moça  que  trouxestes  do  Decanim,  pedeme  7nimgo, 
e  diz  que  em  sua  terra  lho  davam  a  comer,  tirada  a  casca, 
e  cozido:  darlhoei  asi? 

ORTA 

Dailho  a  comer,  pois  que  o  deseja;  mas  milhor  fora  pam 
e  frangam  cozido,  pois  he  da  terra  onde  comem  pam,  e  não 
aroz;  que  he  o  Balagate,  que  o  tem  pouquo  e  em  poucos 
cabos. 

RUANO 

Ha  trigo  nesse  Balagate  e  em  Cambaia? 

ORTA 

Mu3^to ;  posto  que  lhe  não  fazem  ás  terras  o  estercar  e  la- 
vrar, como  nós  fazemos,  senão  semeamno  á  face  da  terra** 
muyto  pouco  lavrada,  e  isto  por  novembro;  e  quando  he 
meado  de  janeiro  colhemno  muyto,  e  muyto  bom;  e  ás  vezes 
sem  lhe  chover  cousa  alguma,  somente  com  o  orvalho  e 
grossura  da  terra,  que  he  muyto  boa  pêra  isso. 

RUANO 

E  que  mezinha  he  essa,  que  vos  falia  essa  moça? 

ORTA 

He  huma  semente  verde,  e  quando  he  muyto  madura 
e  preta,  do  tamanho  do  coentro  sequo;  comem  delia  os  ca- 
valos, e  a  gente  ás  vezes;  e  os  Guzarates  e  Decanins  usam 


»  Os  médicos  ou  curandeiros  gentios  eram  geralmente  Sudras,  como 
veremos  na  nota  (2);  mas  os  Brahmanes  também  se  occupavam  de  me- 
dicina, comquanto  não  exercessem  a  clinica. 

*»  «Semear  á  face»  é  ainda  hoje  uma  expressão  corrente  em  todo 
o  Alemtejo. 


140  Colóquio  trigésimo  sexto 

delia  em  as  febres,  e  todo  o  homem  que  tem  febres  não 
come  10  dias  e  ás  vezes  i5,  e  ao  cabo  delles  lhe  dam  a  beber 
agoa  de  cozimento  do  miingo,  onde  vai  alguma  sustançia 
delle;  e  depois  lho  dam  a  comer,  tirada  a  corteza,  e  cozido 
com  arroz:  pão  de  trigo  lhe  não  dam  a  comer  dahi  a  muitos 
dias.  E  mais  vos  contarei  o  que  me  aconteceo;  caminhando 
com  o  Soltam  Bhadur,  em  companhia  do  senhor  Martim 
Afonso  de  Sousa,  adoeceo  elle  de  febres,  e  chamoume  elrey, 
e  perguntoume  como  avia  de  curar  Martim  Afonso  daquellas 
febres:  eu  lhe  dixe  que  o  avia  de  sangrar,  e  o  avia  de  xa- 
ropar  com  enxarope  feito  de  çumo  de  limões,  romans  e  açu- 
care, e  que  o  purgaria  com  uma  pouqua  de  manná  e  rui- 
barbo que  trazia  comigo,  pois  outras  mezinhas  nam  avia  no 
seu  arraial  de  mim  conhecidas.  Elle  me  respondeo  que  os 
Portuguezes  não  sabiam  tam  bem  curar  febres  como  os  Gu- 
zarates;  porque  os  Guzarates  não  as  curavam  com  outra 
cousa,  senão  com  não  comer;  e  eu,  por  não  aporfiar  com 
elle,  lhe  dixe  que  dizia  bem,  e  que  por  tanto  avia  3  dias 
que  eu  nam  lhe  dava  a  comer  cousa  alguma;  e  que  já  aguora 
o  queria  xaropar,  e  darlhe  a  comer  alguma  dieta  sutil.  Elle 
me  dixe  que  4  dias  era  muyto  pouco,  c  que  avia  mester  ao 
menos  estar  20  dias  sem  comer  cousa  alguma;  e  que  os 
Portuguezes  elle  me  confessava  serem  muyto  bons  físicos 
nas  outras  emfermidades,  mas  que  nas  febres  não  sabiam 
tanto  como  os  Guzarates.  Eu  nam  quiz  aporfiar  com  elle, 
porque  era  voluntário  e  o  maior  rey  que  avia  na  Mourama; 
e  mais  por  não  ser  letrado,  nem  ter  fisicos  que  o  curassem 
pella  nossa  regra*.  E  depois  alguns  annos  me  achei  em  Gam- 
baiete,  cidade  muito  principal  do  Guzarate,  onde  hum  mouro 
muyto  rico  deTripol  de  Berbaria**,  que  sabia  falar  português, 


*  Curiosíssima  toda  esta  discussão,  que  teve  logar  no  mez  de  no- 
vembro ou  dezembro  do  anno  de  i535,  a  caminho  de  Ahmedábád;  ve- 
ja-se  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  p.  99  e  seguintes. 

•*  Tripoli,  na  costa  africana,  que  Orta  distingue  muito  bem  do  Tri- 
poli asiático,  na  costa  da  Syria,  citado  em  outro  Colóquio. 


Do  mungo  e  melam  da  índia  141 

residia;  e  chamando-me  pêra  curar  seu  filho  de  febres,  que 
as  tinha  avia  4  dias,  o  curei,  dandolhe  a  comer  primeiro  ga- 
linhas, porque  avia  4  dias  que  não  comia  cousa  alguma;  e 
depois  o  sangrei,  e,  sem  o  purgar,  sarou  das  febres;  e  elle 
me  alegava  o  modo  de  curar  dos  Guzarates,  já  acima  dito. 
Eu  lhe  respondi,  que  o  çapateiro  não  calçava  a  todos  com 
huns  çapatos;  que  aquelle  curar  he  para  os  Gentios,  que 
naquelle  reino  não  comem  cousa  de  sangue;  mas  que  seu 
filho  e  os  mercadores  ricos,  que  eram  acostumados  a  comer 
muita  carne  e  beber  vinho,  quando  o  tinham,  aviam  mester 
outro  modo  de  curar.  Pareceolhe  bem  o  meu  dito,  e  suce- 
deolhe  milhor;  e  dahi  avante  os  dias  que  ahi  estive,  todos 
os  Mouros  se  queriam  curar  comigo. 

RUANO 

Peçovos  por  mercê  que  me  digaes,  como  se  quer  curar 
O  Nizamoxa,  vosso  amiguo;  se  desvaria  muyto  da  nossa 
maneira,  e  contaime  algum  caso,  que  vos  aconteceo  com 
elle,  se  vier  a  propósito;  porque  esses  casos  decráram  mu3'to 
os  erros  que  acontecem  no  curar*. 

ORTA 

Elle  vontade  tinha  de  se  curar  á  nossa  maneira;  mas  o 
custume  da  terra  está  muyto  em  contrairo,  e  he  mao  de  ar- 
rincar,  em  especial  porque  os  físicos  letrados,  que  elle  ti- 
nha, folgavam  de  comprazer  á  gente  da  terra,  e  contradi- 
zer a  mim;  de  modo,  que  estando  eu  presente  o  curavam 
de  huma  maneira,  e  ausente,  de  outra.  E,  se  vos  não  emfa- 
dar,  vos  direi  o  que  me  aconteceo,  curando  ao  seu  príncipe 
erdeiro**,  que  entonces  era  homem  de  3o  annos,  muyto  for- 


*  Exactamente  a  exigência  de  um  medico  moderno,  pedindo  obser- 
vações. 

**  Este  enfermo  era  Huçein,  filho  de  Buhrán  Nizam  Scháh,  veja-se 
Garcia  da  Orla  e  o  seu  tempo,  236;  e  as  notas  ao  Colóquio  decimo 
(vol.  I,  p.  134). 


142  Colóquio  trigésimo  sexto 

coso,  e  bem  acompreisoado  e  comedor.  E  porque  aprendia 
a  lingoa  portugueza  comigo,  me  perguntou  em  português 
que  faria  a  huma  sarna  que  tinha  com  muyto  prorido;  eu 
lhe  dixe  que  seria  bom  sangrarse,  e  tomar  algum  soro  com 
ruibarbo;  elle  me  dixe  que  lhe  contentava  o  sangrar,  porque 
aquelles  dias  passados  avia  deitado  sangue  pollos  narizes. 
E  querendo  fazerlho,  estorvou  hum  físico  seu,  que  he  senhor 
de  muytas  terras;  e,  posto  que  o  pay  e  o  filho  eram  meus 
amiguos,  folguaram  de  fazer  o  que  lhe  mandava  o  outro 
físico;  porque  lhe  dixeram  que  estava  muyto  gastado  de 
mulheres,  avendome  o  enfermo  dito  o  contrario  disto;  mas 
aquillo  foy  feito  por  emveja  dos  físicos.  E  dahi  a  lõ  dias  adoe- 
ceo  o  mesmo  de  febres,  e  o  meu  voto  foy  que  se  sangrase; 
e  os  físicos  e  o  pai  não  consentiram  nisso  polia  rezam  acima 
dita:  e  mais  diziam  que  aquillo  aviam  de  ser  bexiguas,  a  qual 
emfermidade  he  muyto  perigosa  nesta  terra:  eu  lhe  dixe  que 
os  sinaes  das  bexigas  não  os  avia  ahi,  e  que  se  os  ouvesse, 
que  entonces  era  melhor  sangrarse  nos  três  primeiros  dias, 
conforme  ao  seu  Avicena»,  e  darlhe  alguma  espersam  de  ta- 
marinhos;  e  elles  me  dixeram  que  era  verdade  que  dizia 
aquillo  Avicena,  mas  que  o  custume  da  terra  estava  em  con- 
trario; e  que  também  os  Decanins  tinham  pêra  si  que  os  ta- 
marinhos  eram  ruin  cousa  pêra  as  bexigas;  de  modo  que 
nem  texto  nem  rezam  me  aproveitou  com  elles,  de  que  bem 
pesou  ao  pay  e  mais  ao  filho;  porque  loguo  lhe  começaram 
a  dar  agoa  de  cozimento  de  figos  e  funcho  e  avenca,  e  aça- 
fram,  pêra  que  saissem  as  bexiguas,  as  quaes  nunca  sairam. 
E  por  elle  estar  em  cabo  muito  quente,  sairamlhe  somente 
humas  burbulhas  muito  miúdas  polias  costas,  as  quaes  nam 
foram  bexigas,  nem  serampam,  e  elles  me  diziam  que  eram 
bexigas,  e  que  por  ali  se  avia  de  determinar  a  febre ;  e  eram 
já  passados  14  dias,  e  nam  se  tirava  a  febre,  nem  avia  mais 
sinaes  de  bexigas,  nem  o  queriam  sangrar,  nem  purgar,  nem 
lhe  davam  a  comer,  senão  mungo,  e  agoa  de  espersam  de 


Avicena,  4,  1  (nota  do  auctor). 


Do  mwigo  e  melam  da  índia  143 


arroz,  e  o  pecador  morria  de  fome;  e  queixavaseme  disso 
cada  dia  em  portuguez.  E  per  derradeiro  aconselhei  ao  pai, 
que  o  mandasse  sangrar,  que  milhor  era  tarde  que  nunca, 
e  lhe  desse  a  comer  galinhas  gordas,  pois  era  tam  comedor 
e  bebia  vinho  do  nosso,  quando  era  são.  Pareceo  bem  ao  pai 
o  conselho,  e  ao  filho  milhor.  Sangreio  duas  vezes  copiosa- 
mente, e  deilhe  de  comer  muyto  bem,  e  disto  nam  souberam 
liada  os  físicos,  per  conselho  de  elrey,  até  ver  o  suceso;  e 
acabados  os  20  dias  esteve  sam,  sem  febres  nem  burbu- 
Ihas,  estando  seus  físicos  com  este  suceso  contentes,  gaban- 
dose  em  o  modo  de  curar,  lhe  pediram  alviçaras.  Respondeo 
o  pae  que,  per  sua  cura  mereciam  asados,  que,  se  eu  nam 
fora,  seu  fílho  erdeiro  fora  morto.  Então  lhe  contou  a  maneira 
que  tevera  eu  em  o  curar  depois  dos  14  dias  pasados;  e 
elles,  em  ouvindo,  meteram  o  dedo  na  boca  dizendo  Alá 
qutbir,  que  quer  dizer  Deus  grande;  mas  nem  por  isso  fica- 
ram envergonhados,  nem  corridos  (2). 

RUANO 

Mercê  vos  faria  o  rey  e  o  filho? 

ORTA 

Si,  fizeram. 

RUANO 

E  o  mimgo  que  chamais,  pareceme  que  não  escreverão 
delle  os  Arábios,  nem  os  Gregos,  posto  que  he  cá  tam  usado. 

ORTA 

Na  Palestina  sei  que  o  ha,  segundo  dixe  hum  mouro, 
que  dahi  he;  e  também  Avicena  escreve  delle  no  segundo 
livro  cap  489*,  e  isto  ante  de  o  saber  me  custou  asaz  traba- 
lho, e  chamase  mesce,  e  o  Belunense  emenda  mês,  mas  eu 
soube  dos  fisicos  e  de  outros  letrados  que  se  ade  dizer  tnex^ 
e   a  letra   do  cabo  ade   ser  pronunciada   com   os   dentes 


*  Avie.  I,  cap.  489  (nota  do  auctor);  ou  cap.  488  da  edição  de  Rinio. 


144  Colóquio  trigésimo  sexto 

muyto  fechados;  porque  asi  a  pronunciam  elles.  E  bem  se 
que  isto  nam  releva  muyto,  nem  contar  vos  as  estorias  que 
vos  contei,  mas  muitas  vezes  as  conta  Galeno,  ao  qual  eu 
nam  sam  digno  de  desatar  as  correias  dos  seus  çapatos ;  por- 
tanto perdoai  o  sobejo,  que,  des  que  homem  entra  a  pairar, 
desenfrease  e  paira  muyto;  mas  vós  podeis  não  escrever 
mais  que  o  neseçario  disto. 

RUANO 

De  mais  vos  guarde  Deus,  que  de  menos  nam  ei  de  es- 
crever; e  dizeime  se  fala  em  algum  outro  cabo  Avicena 
deste  mex? 

ORTA 

No  primeiro  livro  na  fem  terceira  no  capitulo  7*,  diz  que 
nam  comam  aves  com  mex,  e  diz  bem,  porque  se  digerem 
primeiro  que  o  mex,  e  entonces  penetra  o  mex  indigesto  (3). 


*  Avie.  Lib.  I,  cap.  7  (nota  do  auctor) ;  isto  é  Lib.  i,  Fen  iii,  Doctr.  11, 
cap.  7;  o  fen,  uma  das  divisões  do  livro  árabe,  conservou-se  com  o 
mesmo  nome  nas  versões  latinas. 


Nota  (i) 

A  identificaçáo  das  patecas  suscita  um  certo  numero  de  difficuldades 
á  em  parte  apontadas  por  H.  Yule  e  A.  Burnell  em  um  interessante 
artigo  do  seu  Glossary,  e  que  é  necessário  examinar  brevemente. 

Queixando-se  Ruano  de  que  os  melões  de  Goa  eram  de  inferior 
qualidade,  Orta  diz-lhe,  que  mais  ao  norte,  em  Diu  e  em  Hormuz,  ou 
nas  terras  mais  altas  e  temperadas  do  interior,  no  «Balagate»,  se  en- 
contravam melões  tão  bons  ou  quasi  tão  bons  como  os  da  Hespanha; 
falia  evidentemente  do  vulgar  Oucumis  3I!elo,  Linn.,  e  sobre 
isto  não  pode  haver  hesitação. 

Refere-se  depois  a  outros  melões,  a  que  chama  melões  da  índia  ou 
patecas,  os  quaes  devem  ser  o  que  hoje  chamamos  melancias,  Ci- 
■ti-ullus  ^'ulgaris,  Schrad.  (Cucurbita  Citrullus,  Linn.).  O  que 
nos  diz  do  fructo  ser  redondo;  de  não  ser  tão  doce  como  os  nossos 
melões,  mas  suave,  frio,  húmido,  desfazendo-se  todo  em  agua;  das  suas 


Do  mungo  e  melam  da  índia  145 

sementes,  a  principio  brancas,  se  tornarem  pretas  na  maturação;  tudo 
isto  se  applica  muito  naturalmente  á  melancia.  Os  nomes  citados  levam- 
nos  igualmente  a  julgar  que  elle  falia  das  melancias.  «Batiec»,  isto  é 
o  arábico  bittikh,  ou  no  modo  mais  vulgar  de  pronunciar  battikh, 
applica-se  geralmente  á  melancia,  comquanto  por  vezes  se  tenha  dado 
a  outros  fructos  de  cucurbitaceas.  «Calangari«  é  a  palavra  maralha  ka- 
lingar,  que  — segundo  Yule  e  Burnell —  designa  o  water  melon,  ou 
melancia.  «Pateca»  era  entre  os  portuguezes  do  Oriente  synonymo 
de  melancia:  «pediu  o  mouro  uma  pateca  ou  melancia»,  diz  Gouveia, 
citado  no  Vocabulário  de  Bluteau.  A  mesma  palavra,  na  forma  bateca, 
é  dada  por  fr.  João  de  Sousa  nos  Vestígios  como  um  dos  nomes  da 
melancia.  Rumphius,  fallando  da  melancia  no  seu  Herbariínn  amboi- 
nense,  chama-lhe  Anguria  indica  seu  Batteca.  Finalmente  recordare- 
mos o  {rancez  pasteque,  que  designa  o  mesmo  fructo.  Tudo  isto  é  claro 
e  conclusivo,  no  sentido  de  identificarmos  a  pateca  de  Orta  com  o  fructo 
do  Citrullus  vulgaris;  mas  vejamos  o  outro  lado  da  questão. 

Orta  mostra  as  patecas  a  Ruano  como  uma  cousa  nova  para  elle 
(Ruano),  isto  é,  desconhecida  na  Hespanha.  Poderemos  por  ventura 
interpretar  esta  passagem,  como  significando  que  os  portuguezes  não 
conheciam  então  as  melancias,  ou  — como  dizem  Yule  e  Burnell —  as 
iynplying  that  the  water  melon  was  strange  to  the  portuguese  of  that 
time?  Não  me  parece  de  modo  algum  acceitavel  esta  conclusão.  A  me- 
lancia, cultivada  desde  tempos  muito  antigos  na  bacia  mediterrânica, 
não  podia  ser  desconhecida  na  Península.  O  próprio  Orta  nos  diz,  que 
tinha  visto  em  Castella  budiecas  e  samdias.  Recorrendo  aos  dicciona- 
rios  hespanhoes,  encontramos  no  de  Covarrubias  e  no  da  Academia 
as  palavras,  albudeca,  badea  e  sandia,  como  nomes  diversos  de  um 
mesmo  fructo,  que  o  diccionario  da  Academia  define:  unos  t7ielonajos 
mui  grandes,  que  em  Roma  se  Ihaman  melones  de  agua.  Segundo  Co- 
varrubias, albudeca  usava-se  mais  na  Catalunha  e  Valença,  e  badea  na 
Castella.  Pedro  de  Alcalá  no  seu  Vocabulista  (i5o5)  dá  o  nome  árabe 
em  caracteres  hespanhoes,  al-baticha.  Effectivamente  albudega,  albu- 
teca,  bateca,  pateca  e  badea  vinham  do  árabe  Ls-\J^^£j  bittikha,  ou  com 
o  artigo  is-JUíiJ I ,  al-bittikíia.Todos  estes  nomes  designavam  a  sandia 
ou  melancia,  e  o  facto  de  Pedro  de  Alcalá  citar  em  i5o5  um  nome 
vulgar,  o  simples  facto  da  origem  árabe  de  muitos  nomes  portugue- 
zes e  hespanhoes,  provam  que  a  introducção  e  cultura  na  Península 
da  espécie  Citrullus  vulgaris  remontava  a  uma  epocha  bastante  an- 
tiga, provavelmente  aos  primeiros  tempos  da  dominação  mussulmana. 
É  indubitável  que  Orta  conhecia  a  melancia,  chamando-lhe  «budieca» 
e  «samdia»;  como  é,  pois,  que  elle  dá  as  patecas  da  índia  por  uma  cousa 
nova?  Admittiremos  que  elle  quiz  designar  por  aquelle  nome  um  fructo 
diverso?  O  árabe  battikh  parece  ter  tido  uma  applicação  um  tanto  vaga, 
dando-se  avarias  cucurbitaceas,  entre  as  quaes  se  fizeram  sempre  nume- 

10 


146  Colóquio  trigésimo  sexto 

rosissimas  confusões,  tanto  na  linguagem  vulgar  como  na  nomenclatura 
scientifica;  e  o  próprio  Orta  diz  que  o  melão  se  chama  «batiec»,  e  o 
outro  fruto  «batiec  indi».  Apesar  d'isso,  battikh  designou  mais  especial- 
mente a  melancia,  e  o  seu  derivado  pateca  ou  bateca,  como  vimos  já, 
applicou-se  sempre  áquelle  fructo.  É,  pois,  difíicil  admittir,  que  Orta 
desse  á  palavra  pateca  um  sentido  diverso  do  que  lhe  davam  todos  os 
mais.  Por  outro  lado,  também  não  é  fácil  encontrar  um  fructo  de  cucur- 
bitacea,  que  não  seja  a  melancia,  e  corresponda  de  um  modo  geral 
á  descripção  de  Orta,  sendo  agradável  ao  paladar,  comido  cru,  e  tendo 
sementes  pretas.  É  forçoso  admittir  que  a  pateca  de  Orta  era  a  me- 
lancia; e  a  única  explicação  plausível  das  suas  palavras  será,  que  elle 
encontrou  na  índia  alguma  variedade  cultural  do  Citrullus  vulgaris, 
e  a  não  soube  identificar  com  as  sandias,  que  muitos  annos  antes  tinha 
visto  em  Castella.  É  a  única  explicação  que  encontro,  e  dou-a  pelo  que 
pôde  valer,  pois  me  não  satisfaz  completamente. 

(Cf.  as  palavras  citadas  em  Yule  e  Burnell,  Glossary;  Bluteau,  Voca- 
bulário; Dicc.  de  la  lengua  castellana;  Sousa,  Vestígios;  Dozy,  Gloss.; 
veja-se  também  Rumphius,  Herb.  Amb.,  v,  400;  Cogniaux  in  Monogr. 
Phanerogamarum,  in,  5o8,  Paris,  1881;  De  Candolle,  Orig.  des  plantes 
cultivées,  209.) 

Estava  escripta  e  impressa  esta  nota,  quando  reparei  na  referen- 
cia ás  patecas,  que  Orta  faz  adiante  em  um  dos  últimos  Colóquios. 
O  dr.  Dimas  Bosque  estabelece  ali  a  identificação  das  patecas  com  as 
balancias,  e  Orta,  apresentando  ainda  algumas  objecções,  mostra-se 
pouco  seguro  na  sua  opinião,  e  disposto  a  admittir  que  se  havia  enga- 
nado. Isto  confirma,  pois,  a  nossa  conclusão. 


Nota  (2) 

As  noticias,  dadas  n'este  Colóquio  acerca  de  medicina  mussulmana 
e  de  medicina  hindu,  constituem  sem  duvida  uma  das  partes  inte- 
ressantes do  livro;  mas  estas  questões  são  conhecidas  de  um  modo 
geral,  e  unicamente  nos  occuparemos  do  que  diz  respeito  ao  exer- 
cício d'aquella  medicina  em  Goa  e  suas  dependências,  no  tempo  de 
Orta. 

O  medico  portuguez  distingue  de  um  modo  claro  os  hakims,  ou  mé- 
dicos mussulmanos,  seguindo  o  systema  Yunáni,  dos  vidyasi,  ou  mé- 
dicos hindus,  seguindo  o  systema  Vaidak.  Tem  evidentemente  maior 
consideração  pelos  primeiros,  e  comprehende-se  bem  que  assim  succe- 


'  Vidyas  ou  Vitj'as.  Orta  náo  emprega  nenhum  d'estes  nomes,  e  parece  que  não  eram 
conhecidos  dos  portuguezes  no  seu  tempo. 


Do  miingo  e  melam  da  índia  147 

desse.  Entre  a  sua  sciencia  e  a  d'aquelles  physicos  «Arábios  e  Coraço- 
nes»  havia  estreitas  relações.  O  Qanún  de  Avicenna,  uma  das  principaes 
fontes  dos  conhecimentos  dos  hakims,  tinha  sido  o  compendio  de  Gar- 
cia da  Orta  nas  aulas  de  Salamanca.  Os  livros  de  Rasis,  de  Mesué  e 
outros,  e  mesmo  as  versões  dos  gregos  andavam-lhes  nas  mãos,  como 
elle  diz  explicitamente  logo  no  Colóquio  segundo.  Com  a  sua  leve  tin- 
tura de  arábico,  sabendo  de  cór  os  nomes  das  «mezinhas»  e  das  «emfer- 
midades»,  que  lhe  ensinara  o  seu  amigo  Buhrán ',  Orta  podia,  pois, 
discutir  com  elles,  porque  tinham  um  fundo  commum  de  noções  e 
de  principios.  Na  curiosa  conferencia  em  que  debateram  o  tratamento 
a  applicar  ao  filho  de  Buhrán,  Hucein,  Orta  cita-lhes  para  os  con- 
vencer textos  de  Avicenna.  Nem  texto  nem  rasão  os  persuadiu,  porque 
os  prendia  a  rotina  e  o  «custume  da  terra»;  e  esta  expressão  mostra- 
nos  como  Orta  conhecia  um  facto  que  ainda  hoje  se  dá,  como  conhecia 
a  influencia  exercida  no  systemaYunáni  peloVaidak,  a  modificação  que 
a  medicina  mussulmana  experimentou  na  índia,  no  contacto  com  a  hindu. 

Orta  julgava-se,  e  evidentemente  era,  muito  superior  aos  hakims  em 
sciencia  medica;  mas  chama-lhes  «físicos  letrados»,  e  vê-se  que  tratava 
com  elles  de  igual  a  igual.  Alem  de  lhes  reconhecer  illustração,  en- 
contrava-os  nas  cortes  dos  príncipes  mussulmanos,  onde  tinha  de  usar 
a  seu  respeito  de  certa  diplomacia.  Com  effeito,  da  leitura  dos  Coló- 
quios deduz-se  que  Orta  tratou  com  os  hakims  principalmente  no  inte- 
rior ou  no  norte.  Pôde  encontrar  casualmente  um  ou  outro  em  Goa; 
mas  em  geral  viu-os  e  conferenciou  com  elles  no  Balaghate,  ou  em 
Cambaya,  na  corte  de  Bahádur  Scháh,  na  de  Berid  Scháh,  cujo  irmão 
foi  tratar,  e  sobretudo  na  do  seu  amigo  Buhrán  Nizam  Scháh.  Parece, 
pois,  que  elles  não  vinham  a  Goa,  pelo  menos  com  frequência,  e  assim 
devia  succeder.  A  sua  qualidade  de  mussulmanos  tornava-os  particular- 
mente suspeitos,  e  nem  os  médicos  portuguezes  estariam  dispostos  a 
acceital-os  ali  em  pé  de  igualdade,  nem  elles  se  sujeitariam  a  occupar 
uma  posição  inferior. 

Não  succedia  o  mesmo  com  os  vidyas;  estes  eram  numerosos  em 
Goa,  e  conformavam-se  pacientemente  com  a  sua  situação  modesta. 
Em  um  dos  Colóquios  seguintes,  Orta  põe  em  scena  um  «físico»  gentio, 
chamado  Malupa;  trata-o  com  muita  amabilidade,  mas  com  a  condes- 
cendência de  um  superior,  como  um  medico  antigo  trataria  um  mestre 
sangrador.  Não  havia  n'isto  simples  arrogância  europêa  ou  portugueza, 
mas  também  um  reflexo  dos  prejuízos  indianos,  porque  os  vidyas  em 
geral  eram  sudras,  isto  é,  de  casta  muito  baixa.  E  certo,  que  a  sua  si- 
tuação em  Goa  foi  modesta,  e,  quando  alguns  mais  ricos  se  quizeram 
elevar,  as  suas  pretensões  foram  reprimidas  pelas  auctoridades  portu- 


'  Veja-se  o  que  eu  disse  sobre  este  ponto  na  Vida  de  Garcia  da  Orta,  p.  243  e  seg. 


148  Colóquio  trigésimo  sexto 

guezas  com  muita  sem  ceremonia.  Um  documento  pouco  posterior  a 
Orta  é  explicito  a  este  respeito,  e  merece  ser  reproduzido: 

«O  governador  da  índia  etc.  Faço  saber  aos  que  este  meu  alvará 
virem  que  eu  hey  por  bem  e  me  praz  e  por  este  mando  a  todos  os 
panditos  1  e  phisicos  gentios  que  não  andem  por  esta  cidade  e  arrabal- 
des delia  a  cavallo  nem  em  andores  e  palanquins,  sob  pena  de  pagarem 
pela  primeira  vez  dez  cruzados,  e  pela  segunda  vinte  para  o  sapal,  e 
perderem  os  taes  cavallos  e  andores  e  palanquins,  e  pela  terceira  serem 
cativos  para  as  galés  d'ElRev  meu  senhor;  e  isto  se  não  entenderá  no 
pandito  que  cura  minha  casa  e  he  meu  phisico.  Notefico  assy  ao  Ou- 
vidor geral  etc.  António  Barbosa  o  fez  em  Goa  a  i5  de  Dezembro 
de  1574 — Governador,  António  Moniz  Barreto.» 

O  alvará  é  curioso,  porque  mostra  como  o  governador  coUocava 
rudemente  os  panditos  e  vidyas  em  uma  situação  subalterna,  e  ao 
mesmo  tempo  declarava  ter  um  d'elles  para  physico  da  sua  casa.  De 
resto,  isto  está  plenamente  de  accordo  com  o  que  Orta  diz  por  mais 
de  uma  vez,  citando-nos  casos  de  fidalgos  honrados  que  se  queriam 
curar  com  os  médicos  da  terra  ou  com  os  malabares.  A  casa  do  próprio 
Orta  vinha  todas  as  manhas  um  d'aquelles  médicos  tratar  as  negras. 
Resulta  do  que  levamos  dito,  que  o  exercício  da  medicina  hindu  em 
Goa  e  terras  portuguezas,  sem  ser  muito  considerado,  era  no  emtanto 
perfeitamente  legal  e  devia  ser  lucrativo.  Os  vidyas  tinham  como  clien- 
tes todos  ou  quasi  todos  os  naturaes,  e  alem  d'isso  muitos  portuguezes, 
desejosos  de  novidade,  e  crédulos  como  são  em  geral  os  doentes  — 
«gente  boa  de  enganar». 

Em  ultima  analyse,  o  nosso  medico  portuguez  não  é  muito  severo 
com  os  vidyas;  accusa-os,  como  todos  os  que  d'elles  tem  fallado,  de 
não  saberem  uma  palavra  de  anatomia;  condemna  muitas  das  suas  pra- 
ticas, particularmente  as  abstinências  prolongadas  e  exageradas  a  que 
sujeitavam  os  doentes;  descreve  comicamente  o  modo  por  que  imita- 
vam os  médicos  europeus  sem  os  perceber;  mas  reconhece  que  trata- 
vam bem  certas  enfermidades;  admitte  que  dispunham  de  uma  matéria 
medica  valiosa;  e,  quando  lhe  perguntam  se  aprendeu  alguma  cousa  com 
elles,  responde  franca  e- categoricamente  : — «Si,  muytas». 

Se  compararmos  a  sua  apreciação  com  a  que  faz  o  viajante  francez 
Sonnerat  dois  séculos  depois,  veremos  quanto  ella  é  benévola.  Sonnerat 
descreveu  aquelles  médicos  como  simples  curandeiros  sem  sciencia  e 
sem  consciência;  como  homens  de  vários  officios,  lavadores  de  roupa, 
ferreiros,  tecelões,  que  á  falta  de  trabalho  se  mettiam  a  tratar  doentes 
para  ganhar  a  vida.  Isto  é  evidentemente  exagerado,  e  o  que  disse  no 


'  Do  sanskr.  pandita,  um  homem  instruído,  versado  nas  scienciás  ou  nas  leis ;  a  palavra 
é  hoje  muito  usada  pelos  inglezes  nas  formas  pioidit  e  pandít. 


Do  miingo  e  vielam  da  índia  149 

fim  do  século  passado  o  illustreWilliam  Jones,  ou  já  no  nosso  o  erudito 
e  escrupuloso  VVhitelaw  Ainslie,  deve  ser  mais  próximo  da  verdade,  e 
está  mais  de  accordo  com  o  que  havia  dito  Garcia  da  Orta  alguns  sé- 
culos antes.  Reconhecendo  a  ignorância  de  alguns  vidyas  e  o  puro  em- 
pirismo da  sua  pratica,  Ainslie  reconhece  também,  que  muitos  são  acti- 
vos, desejosos  de  acertar  e  conhecedores  de  uma  vastíssima  matéria 
medica,  na  qual  ha  muitas  cousas  aproveitáveis,  ao  lado  de  muitas  inú- 
teis e  de  algumas  prejudiciaes.  Ainda  recentemente,  no  congresso  de 
orientalistas  celebrado  em  1891,  nós  vemos  como  os  trabalhos  relativos 
á  medicina  indiana,  apresentados  pelo  pandito  Janardhan  e  por  outros 
vidyas  illustrados,  foram  recebidos  com  geral  interesse,  reconhecendo-se 
o  valor  scientifico  doVaidak  Hindu.  É  muito  de  notar,  que  o  nosso  Orta 
tivesse  ha  três  séculos,  a  perspicácia  e  a  largueza  de  espirito,  necessárias 
para  reconhecer  e  confessar  que  tinha  aprendido  muitas  cousas  com  os 
vidyas. 

Orta  parece  ter  conhecido  diversas  classes  de  vidyas;  e  em  uma 
passagem  diz:  «eu  pergunto  estas  cousas  aos  físicos  grandes,  Arábios 
e  Gentios».  Mas,  em  geral,  só  teve  relações  com  os  que  exerciam  a 
clinica  em  Goa,  sudras  pela  maior  parte,  bastante  ignorantes  de  litte- 
ratura  sagrada,  e  — como  elle  diz —  curando  apenas  «per  experiência 
e  per  custume».  D'aqui  resultou  o  facto  de  elle  não  alcançar  noticia 
da  litteratura  medica  dos  hindus,  como  já  indiquei  mais  largamente 
na  sua  Vida.  Por  um  lado,  os  vidyas  com  quem  fallava  conheciam  mal 
a  sua  própria  litteratura,  e  não  estavam  dispostos  a  revelarem  a  um 
estrangeiro  o  pouco  que  d'ella  sabiam;  e,  por  outro,  era-lhe  difficil 
reconhecer  nas  breves  menções  de  um  Xarch  indus,  ou  de  um  Scerak 
indum,  encontradas  nas  suas  versões  latinas  de  Avicenna  ou  de  Se- 
rapio,  referencias  ao  venerável  e  lendário  escriptor  sanskritico  Cha- 
raka.  Quanto  ao  conhecimento  directo  da  litteratura  sanskritica,  esse 
estava  fora  da  questão.  As  noções  de  medicina,  contidas  no  Atharva 
Veda,  ou  nas  obras  de  Charaka  e  de  Susruta,  que,  nos  fins  do  século 
passado  e  princípios  d'este,  começaram  a  ser  reveladas  á  Europa  pelos 
trabalhos  de  sir  W.  Jones,  de  Colebrooke  ou  de  Wilson,  eram  então 
letra  morta.  No  tempo  de  Orta  apenas  se  começava  a  suspeitar  da 
existência  de  livros  sagrados,  escriptos  em  uma  lingua  que  se  não  en- 
tendia, e  em  caracteres  que  se  não  decifravam^, — esses  livros  que, 
annos  depois,  Diogo  do  Couto  chamava  os  «Vedáos»,  escriptos  «no 
seu  latim».  Era,  pois,  naturalíssimo,  que  Orta  não  soubesse  das  no- 
ções medicas  contidas  n'aquelles  livros,  e  julgasse  que  os  vidyas  cura- 
vam unicamente  «per  custume» — por  uma  sciencia  tradicional  e  pura- 
mente oral. 


'  Sousa,  no  Oriente  conquistado,  diz  que  o  padre  Belchior  Carneiro  obteve  em  iSSg  al- 
guns manuscriptos,  roubados  a  um  brahmane  das  terras  firmes  de  Goa. 


1 5o  Colóquio  U^igesimo  sexto  do  mungo  e  melam  da  Lídia 

(Cf.  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  287  a  247  e  337;  Sonnerat, 
Vqyag-e  aux  Indes  orientales,  i,  iio  a  121;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  11,  v  a 
xxxvii;  Royle,  Ant.  of  Hindoo  med.,  47  e  seguintes  ;772e  Imp.  and  Ásia- 
tic  quarterly  review  (october  1891),  p.  lxxxv;  Zimmer,  Altindisches 
Leben,  374  e  seguintes,  Berlin,  1879;  para  a  Goa  moderna,  algumas 
interessantes  indicações,  em  Lopes  Mendes,  índia  portugue^^a,  11,  107.) 


Nota  (3) 

O  Mungo  é  o  Phaseoliis  M^ungo,  Linn.,  uma  leguminosa, 
cultivada  com  muita  frequência  na  índia,  e  particularmente  apreciada 
nos  annos  de  escassez,  em  que  falta  o  arroz.  É  também  cultivada  em 
outras  regiões  quentes,  como  o  Egypio,  e  deveria  sel-o  na  Palestina, 
como  disse  o  mouro  a  Orta.  De  uma  phrase  muito  obscura  do  texto, 
pode  talvez  concluir-se  que  Orta  conhecia  a  variedade  de  sementes 
verdes,  Phaseohis  Mungo,  Linn.,  e  Roxburgh;  e  a  variedade  de  se- 
mentes pretas,  Phaseohis  Max,  Linn.,  e  Roxburgh. 

O  t}ies  ou  Jiíex  ou  mesch  de  Avicenna,  ^i'-*,  a  propósito  do  qual 
Orta  nos  dá  uma  curiosa  lição  sobre  o  modo  de  pronunciar  a  letra 
schin,  era  evidentemente  uma  semente  de  leguminosa,  e  provavelmente 
um  Phaseolus;  mas  não  é  fácil  decidir  se  seria  propriamente  o  Pha- 
seohis Mungo.  O  nome  especifico  Max,  dado  por  Linneu  em  1753  á 
variedade  de  sementes  pretas,  parece  ser  procurado  em  uma  designa- 
ção vulgar,  o  que  viria  confirmar  a  identificação  de  Garcia  da  Orta. 
Confesso,  porém,  não  saber  qual  a  origem  d'este  nome  linneano. 

Na  segunda  citação  de  Avicenna,  Orta  enganou-se;  a  palavra  vem  es- 
cripta  inest,  e  os  annotadores  explicam-na:  lac  coagulatum  acetosum,  sed 
minoris  acetositatis  quam  lac  coagulatum.  Parece,  pois,  que  Avicenna 
recommendou  que  não  comessem  carne  de  aves  com  leite  azedo,  o 
que  alem  de  ser  indigesto  devia  ser  péssimo. 

(Cf.  Roxburgh,  Flora  Indica,  111,  292  e  294;  Avicenna,  Qanun,  Lib.  i, 
Fen  III,  Doct.  11,  cap.  7,  p.  118  da  edição  de  Rinio;  e  Lib.  11,  cap.  488; 
Clusius,  Exotic,  236  e  252.) 


COLÓQUIO  TRIGÉSIMO  SÉTIMO 

DOS  MIRABOLANOS 

t 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RUANO 

Eu  me  conheço  por  muito  descuidado,  pois  a  principal 
cousa  porque  avia  de  perguntar  he  os  mirabolanos,  tanto 
louvados  de  todos  os  Gregos  e  Arábios  antiguos  e  moder- 
nos, e  até  ao  presente  nam  perguntei  por  isso. 

ORTA 

Também,  se  vos  praz,  sam  louvados  dos  Castelhanos;  por- 
que dizem:  aqiiel*  honibre,  que  tanto  pio,  mirabolanos  comio. 

RUANO 

Deixaivos  desses  adágios  ou  provérbios;  e  dizeime  os  no- 
mes delles  polia  linguoa  da  terra, ,e  porque  se  chamaram  wz'- 
rabolanos  acerca  de  nós;  e  como  lhe  chamam  os  Arábios 
e  os  Indianos;  e  se  os  físicos  desta  terra  usam  delles,  e  pêra 
que  enfermidades  se  servem  delles. 

ORTA 

Craro  está  que  os  mirabolanos  dos  Gregos  antiguos  nam 
sam  estes;  nem  Dioscorides,  nem  Galeno,  nem  Plinio  co- 
nhecerão estes  nossos  mirabolanos;  senam  chamaram  mira- 
bolanos outra  mezinha,  de  que  faziam  azeite;  e  mirabolanos 
quer  tanto  dizer  em  grego,  como  noz  ou  bolota  cheirosa  ou 
unguentaria.  E  porque  estes  nossos  pareciam  feiçam  de  no- 
zes ou  bolotas,  por  isso  lhe  chamaram  asi  a  estes  de  que 
usamos,  ainda  que  mais  verdadeiramente  me  parecem  a  mim 
ameixas,  mas  isto  nam  he  cousa  que  faz  ao  caso;  e  o  que 


*  «Aquelle»  na  edição  de  Goa. 


i52  Colóquio  trigésimo  sétimo 

treladou  Aviçena  e  Serapio  do  arábio  em  latim,  por  lhe  pa- 
recer milhor,  lhe  pos  este  nome;  e  onde  Aviçena  lhe  chamou 
delegi  pos  elle  mivabolanos  (i). 

RUANO 

Pois  Serapio  lhe  chama  aliligi,  sendo  tam  arábio  como 
Aviçena. 

ORTA 

Foy  isso  error  do  escritor,  ou  o  tempo  corrompe  estes 
nomes,  mas  os  físicos  arábios  a  quem  perguntei,  me  dixeram 
estes  nomes,  scilicet,  delegi  a  todos,  e  os  citrinos  a-^far^  e 
os  Índios  açuat,  e  os  quebulos  quebulgi,  e  os  belericos  hele- 
regi,  e  os  emblicos  embelgi;  e  daqui  lhe  tomámos  nós  os 
nomes. 

RUANO 

Os  negros  porque  nam  falastes  delles,  nem  dos  de  Seni, 
dos  quaes  faz  menção  Aviçena? 

ORTA 

Os  negros  nam  os  ha  ahi,  nem  sam  outros  senam  os  Índios; 
e  porque  sam  mais  negros  que  todos,  nam  avia  nesecidade 
de  me  perguntardes  isto;  pois  muytos  doutores  modernos 
o  escrevem,  em  especial  os  vossos  Frades  italianos  que  os 
chamam  negros,  porque  sam  mais  negros  que  todos,  quando 
sam  maduros;  e  isto  provam  elles  da  ordem  do  texto  do 
Serapiam  e  Mesue;  porque  está  muito  craramente  provado 
por  elles,  como  podeis  ver,  nam  fallo  mais  nisto. 

RUANO 

Pois  bem  está  isso,  mas  esses  Frades,  que  vós  alegaes, 
dizem  que  nam  ha  mais  que  4  especias;  porque  faltam  os 
de  Seni  nomeados  por  Aviçena;  e  já  vos  pedi  que  me  deseis 
a  razam  delles;  e  vós,  desimulando,  nam  me  respondestes 
a  isto. 

ORTA 

Esses  de  Seni  sam  os  emblicos,  os  quaes  conta  Mesue 
e  Aviçena;  e  chamoulhe  de  seni,  e  por  esta  maneira  sam 


Dos  mirabolanos  i53 

5  especias;  porque  os  belericos  não  faz  mcnçam  delles  Avi- 
cena,  e  esta  he  a  verdade;  porque  Serapiam  diz  que  tem 
corteza  sutil,  estes  sam  os  ejublicos,  porque  a  tem  mais 
delgada  que  todos. 

RUANO 

Outra  especia  traz  Sarapiam  per  auctoridade  de  Mesa- 
runge,  e  chamalhe  de  Damasquo,  e  diz  que  aproveita  pêra 
a  melancolia:  que  respondeis  a  isto? 

ORTA 

Diguo  que  em  Damasco  não  ha  mirabolanos,  senam  foram 
levados  lá  em  conserva  alguns  mir^abolanos  indos;  e  porque 
as  achou  ahi,  lhe  chamou  de  Damasquo,  e  porque  aprovei- 
tavam á  melancolia  dixe  isto  delles;  mas  elles  não  sam  ou- 
tros senam  os  que  nós  chamamos  indos. 

RUANO 

Pois  o  mesmo  Serapiam  diz,  aleguando  a  Mesue  e  Alba- 
sar,  que  os  de  Seni  sam  da  especia  da  azeitona? 

ORTA 

Não  ha  azeitonas  em  toda  esta  terra,  senão  porque  os 
emblicos  sam  usados  nesta  terra  a  comerse  salgados,  e  per 
outra  maneira  com  vinagre  (a  que  chamam  achar)  lhe  cha- 
mou azeitonas:  mas  elles  mais  se  parecem  com  ameixas  re- 
dondas, e  nisto  não  releva  muyto  enganarse. 

RUANO 

Parece  rezam  serem  todos  de  huma  arvore,  e  que  huns 
seram  maduros  e  outros  não;  e  que  quando  huns  forem  se- 
quos,  seram  os  outros  verdes;  e  deste  parecer  sam  alguns, 
scilicet,  que  os  quebidos  e  citrinos  ao  menos,  sam  de  huma 
mesma  arvore;  verdade  he  que  Mateolo  Senense  diz  que 
nem  aprova  nem  reprova  isto:  vós,  que  o  vistes,  nos  podeis 
desenganar  a  todos. 

ORTA 

Enganados  estam  todos  os  que  dizem  que  sam  de  huma 
arvore;  porque  sam  cinquo  arvores  de  cinco  especias  de 


i54  Colóquio  trigésimo  sétimo 

mÍ7'abolanos;  e,  o  de  que  mais  vos  maravilhareis,  que  huns 
ha  em  huma  terra,  e  outros  6o  legoas  e  loo  delia;  porque 
em  Goa  e  em  Batecalá  ha  huns,  e  no  Malavar  e  em  Dabul 
e  em  toda  Cambaia  ha  as  4  feições  de  mirabolanos,  e  os 
quebulos  ha  em  Bisnager  e  no  Decam,  e  no  Guzarate  e  em 
Bengala,  e  pode  ser  que  os  aja  em  outras  partes.  E  estes 
arvores  sam  todos  montezes  e  nam  cultivos;  e  os  que  levam 
a  Portugal  sequos  sam  pola  mor  parte  ávidos  de  Dabul  até 
Cambaia;  porque  se  acha  per  esperiencia  a  terra  mais  che- 
gada ao  norte  dar  as  frutas  menos  sujeitas  a  putrefaçam, 
segundo  que  eu  soube  nesta  ilha  de  Goa  dos  físicos  gentios 
delia.  E  achei  que  nella  ha  três  feições  de  mirabolanos,  de 
que  usam  pêra  purgar,  onde  o  querem  fazer  sem  trabalho, 
e  em  pouqua  cantidade;  e  chamam  a  estas  três  feições  ou 
maneiras,  em  lingoajem  da  terra,  tinepala,  que  quer  dizer 
três  feições,  scilicet:  a  primeira  chamam  arare  (e  isto  no 
povo,  porque  os  físicos  lhe  chamam  aritiqui),  e  estes  sam 
redondos,  e  purgam  a  cólera,  e  nós  chamamoslhe  citrinos: 
a  outros  chama  a  gente  indiana  anvale,  e  nós  lhe  chama- 
mos emblicos:  e  a  outros  chamam  re^^anvale,  e  sam  os  que 
chamam  Índios:  ha  outros  que  chamam  gotim,  e  sam  redon- 
dos, e  sam  os  que  nós  chamamos  belericos:  e  os  quebulos 
que  purgam  a  freima  (que  os  ha  em  Bisnager  e  Cambaia 
e  Bengala)  chamamse  aretca.  E  asi  tendes  ahi  cinquo  ma- 
neiras; scilicet,  três  usadas  em  Goa,  e  huma  achada  em 
Cambaia  e  Bengala  e  Bisnager;  e  porque  amde  ser  cinquo 
maneiras,  vos  diguo  que  o  mirabolano,  dito  anvale,  posto 
que  he  achado  em  Goa,  porque  não  usam  delle  em  física, 
não  chamam  em  Goa  mais  que  as  três  maneiras  já  ditas, 
e  as  de  Bengala  e  Bisnager  e  Cambaia;  e  a  este  que  elles 
chamam  atwale,  e  nós  chamamos  emblicos,  usam  delle  em 
cortimento  de  pelles,  como  çumagre,  e  em  tinta,  afora  co- 
merem os  verdes  por  apetite.  E  pois  tendes  as  cinquo  ma- 
neiras, vede  que  quereis  mais  de  mim,  em  que  vos  sirva; 
e  eu  quero  de  vós  o  que  dizem  os  escritores  do  Peru,  sci- 
licet, que  em  muytas  terras  ha  mirabolanos,  se  he  verdade 
ou  não? 


Dos  jnivaholanos  i55 


RUANO 


Nunqua  os  vi  em  Espanha,  senão  os  que  de  cá  vam; 
c  quero  mais  que  me  digaes  a  feiçam  de  cada  huma  es- 
pecia,  e  das  arvores  e  das  folhas. 


ORTA 


Diguo  que  o  arare,  o  que  chamamos  citrino^  he  redondo, 
e  tem  a  folha  como  de  sovereira:  o  anvale,  que  sam  os  em- 
hlicos,  tem  a  folha  como  feto,  e  a  estes  já  vos  dixe  que  lhe 
chamamos  emblicos:  o  re^aripale,  que  sam  os  índios,  tem 
oito  quinas,  e  a  folha  como  de  salgueiro:  os  helénicos,  a  que 
chamam  guíi,  tem  a  folha  como  de  louro,  senam  que  he  mais 
pardaça :  os  quebulos,  a  que  elles  chamam  aretca,  sam  gran- 
des e  redondos,  e  quando  sam  maduros,  alguma  cousa  mais 
compridos,  e  tem  quinas,  e  a  folha  do  arvore  he  como  de 
pexegueiro;  e  todos  os  arvores  sam  do  tamanho  de  amexu- 
eiras:  e  isto  he  o  que  pude  saber  e  ver  da  feiçam  de  todos 
e  das  suas  arvores. 

RUANO 

Vós  o  tendes  tam  bem  esplicado,  que  não  he  neseçario 
falar  mais  nisso-,  mas  aguora  quero  que  me  satisfaçaes  ás 
minhas  duvidas,  dizendo  de  que  compreições  os  fazem  os 
índios,  porque  todos  confessam  serem  de  compreiçam  fria 
e  seca,  e  Serapiam,  alegando  a  Xarach,  diz  que  sam  quentes, 
todos  universalmente:  que  dizeis  a  isto? 

ORTA 

Dizem*  que  sam  frios  e  sequos,  ainda  que  o  não  dixeram 
os  índios,  e  os  Arábios  e  Latinos-,  porque  o  seu  sabor  he 
pontico,  mesturado  com  acetoso,  que  parece  como  sorvas 
verdes,  senão  que  he  mais  azedo;  e  mais  sam  pesados  todos, 
e  aquestas  cousas  todas  arguiem  e  decraram  ser  a  com- 
preisam  delles  fria  e  seca. 


Parece  ser  um  erro  por  «digo»,  o  que  faria  melhor  sentido. 


i56  Colóquio  trigésimo  sétimo 

RUANO 

Do  modo  da  preparaçam  delles  me  dizei  como  os  pre- 
param os  Indianos;  porque  Serapiam  manda  os  preparar 
com  ameixas,  pêra  reprimir  a  ponticidade  delles. 

ORTA 

Não  se  preparão  cá,  porque  não  os  querem  senam  pêra 
comprimir  e  reprimir;  nem  usam  delles  pêra  purgar,  senão 
em  cozimento,  e  deitam  mu3^to  mais  cantidade  do  que  nós 
deitamos  em  Portugal:  usam  também  delles  em  conserva, 
scilicet,  dos  quebulos  que  tem  em  muyto  preço;  estes  fazem 
em  Bisnager,  e  Bengala  e  Cambaia:  e  também  usam  em 
conserva  dos  citrinos  e  Índios,  feitos  em  Batecalá  e  Bengala; 
e  sem  duvida  nenhuma,  que  esta  he  huma  mezinha,  que 
elles  muyto  louvam,  e  com  o  seu  uso  nenhum  físico  he  des- 
onrado. E  quando  embora  fordes,  levai  estas  três  especias 
em  conserva,  porque  será  pêra  Castella  muyto  boa  merca- 
doria; e  eu  vos  farei  serviço  de  duas  jarras  delles,  que  mandei 
trazer  de  Bengala,  se  em  boa  ora  vierem;  e  sabei  que  eu  uso 
também  de  mandar  estilar  a  agua  de  mirabolanos  verdes 
pêra  dar  a  beber  sobre  alguma  conserva  pontica;  e  a  mando 
mesturar  nos  xaropes,  quando  he  neseçario;  e  sobre  estes 
mirabolanos  verdes  sabe  muyto  bem  a  agoa.  E  eu  uso  de 
citrinos  e  belericos  no  principio  de  comer,  em  quem  tem 
camarás  ou  estômago  muyto  corredio;  e  he  hum  comer  bom 
e  estitico,  com  ser  azedo  hum  pouco;  e  também  do  çumo 
destes  mirabolanos  uso  muyto,  nas  camarás,  quando  sam 
verdes;  e  já  provastes  muytos  destes  em  minha  caza. 


Nota  (i) 

Efíectivamente  os  myrobalanos  dos  antigos  escriptores  procediam 
de  uma  planta  muito  diversa  d'aquellas  a  cujos  fructos  depois  se  deu 
o  mesmo  nome.  O  paXavo^  u/jisÇur,  de  Dioscorides,  aupsPaAxv:;  de  outros, 
myrobalanum  de  Plinio,  tem-se  identificado  com  uma  planta  da  familia 


Dos  mirabolanos  iSy 

das  Legiiminosce,  ]Mox*iiig'a  aptei^a,  Decaisn.,  de  habitação 
principalmente  africana,  de  cuja  noz,  ou  antes  semente,  conhecida  pelo 
nome  de  «Of  de  ben  ou  glans  unguentaria,  se  extrahe  um  óleo  especial 
(Cf.  Diosc,  I,  645,  ed.  Sprengel;  Plinio,  xii,  46,  ed.  Littré;  Guibourt, 
Drogues  simples,  iii,  286). 

Nota  (2) 

A  divisão  corrente  dos  fructos,  impropriamente  mas  geralmente  cha- 
mados ynyrobalanos^,  em  cinco  sortes  ou  qualidades,  indicos,  citrinos, 
quebulicos,  belericos  e  emblicos,  esta  divisão  vinha  de  tempos  muito  an- 
teriores a  Orta,  e  continuou  a  ser  seguida  depois,  encontrando-se  ainda 
em  livros  modernos,  como  o  de  Guibourt.  Os  árabes  haviam  dado  a 
todas  estas  qualidades,  ou  a  parte  d'ellas,  o  nome  geral  ^JJL»,   heliledj 

11  -  ^  ". 

(forma  persiana  íXIí,  helileh),  que  nas  edições  latinas  de  Avicenna  com 

notas  do  Bellunense  vem  incorrectamente  transcripto  delegi  ou  dilegi, 

e  Orta  repetiu  na  mesma  forma. 

As  três  primeiras  qualidades,  isto  é,  os  myrobalanos  indicos,  citrinos 
e  quebulicos  procedem  da  mesma  espécie,  Tex"iixiiialia  Clie- 
1>ixla,  Retz,  da  familia  das  Cotnbretacece,  uma  arvore  bastante  fre- 
quente por  quasi  toda  a  índia.  As  differenças  parecem  depender  unica- 
mente do  estado  de  desenvolvimento  do  fructo;  e  alguns  escriptores 
hindus,  como  alguns  escriptores  persas  relativamente  modernos  — ci- 
tados por  Dymock —  enumeram  nada:  menos  de  sete  formas  diversas, 
resultantes  todas  do  momento  da  colheita.  As  formas,  mencionadas  por 
Orta,  parecem  corresponder  ás  três  seguintes: 

— helileh-i-hindi,  droga  que  consiste  no  fructo  ainda  pouco  des- 
envolvido, quando  tem  proximamente  as  dimensões  de  uma  uva,  e  que» 
depois  de  colhido,  se  torna  enrugado  e  negro.  Estes  são  os  myrobalanos 
chamados  indicos,  e  também  negros,  ou — segundo  Orta —  «açuat»,  da 
palavra  .>o^!,  asuad,  que  significa  preto.  Não  encontrei  o  nome  «re- 
zanvale»,  citado  pelo  nosso  escriptor. 

— helileh-i-asfar,  consistindo  no  fructo  maior,  já  quasi  chegado  á 
maturação,  e  de  côr  amarella.  Estes  são  os  citrinos,  chamados  também 
— segundo  Orta —  «azfar»,  de  yL^\^  açfar,  que  simplesmente  significa 
amarello.  Diz  Orta,  que  o  vulgo  lhes  chamava  «arare»,  o  que  corres- 
ponde ao  nome  moderno  har  ou  hara  em  hindustani;  e  os  physicos 
«aritiqui»  o  que  é  o  sanskrito  ^TTTrT^,  hãritaka,  ou  mais  vulgarmente 
haritaki. 


'  Não  se  sabe  claramente  como  se  fez  a  transferencia  de  nome ;  e  é  possível  ser  devida 
—  como  diz  Orta—  aos  traductores  medievaes,  que  trasladaram  para  latim  as  obras  dos 
árabes. 


i58  Colóquio  trigésimo  sétimo 

—  helileh-i-kabuli,  que  é  o  fructo  perfeitamente  maduro,  o  myroba- 
lano  quebulico,  menos  adstringente  que  os  anteriores,  e  empregado  ge- 
ralmente na  medicina  hindu  como  laxante.  Deve  notar-se,  que  o  nome 
oaretca»,  dado  por  Orta  a  estes  myrobalanos,  se  prende  ás  designações 
acima  hãritaka  e  haritaki,  as  quaes  não  são  simplesmente  applicadas 
aos  citrinos,  mas  de  um  modo  mais  ou  menos  geral  ás  três  formas.  O 
nome  mais  commum,  quebulicos,  vem  do  adjectivo  kabuli,  e  este  parece 
derivar  do  Kabul,  por  onde  se  fazia  parte  do  commercio  da  índia  com 
a  Pérsia.  A  derivação  vem  já  indicada  por  Pedro  Teixeira,  o  qual,  a 
propósito  de  yriyrobalanos,  citou  o  nosso  escriptor:  Alilah  Kabidy, 
vnrabolanos  que  vienen  de  Kabul,  que  son  los  que  nuestros  médicos 
llaman  Kebulos.  El  dotor  Garcia  dorta  trato  destos  y  de  todos  suffi- 
cientemente 

Sendo  estas  três  sortes  procedentes  de  uma  mesma  espécie,  segue-se 
que  Orta  estava  em  erro,  quando  affirmava  a  existência  de  três  arvores 
distinctas,  e  indicava  os  seus  caracteres,  ou  pelo  menos  as  formas  difFe- 
rentes  das  suas  folhas.  É  necessário  dizer,  no  emtanto,  que  na  índia 
existem  algumas  variedades  da  espécie  Terminalia  Chebula,  o  que  o 
pôde  induzir  n'aquelle  erro*.  Comquanto,  ainda  muito  depois  e  até  ao 
tempo  de  Guibourt,  algumas  duvidas  existissem  sobre  a  identidade  de 
procedência  d'estes  myrobalanos,  devemos  confessar,  que  Duarte  Bar- 
bosa já  diz  da  maneira  a  mais  clara,  que  indicos,  citrinos  e  quebulos 
nascem  todos  sobre  a  mesma  arvore.  Não  é  a  primeira  vez,  que  nós 
vemos  Barbosa  mais  bem  informado  do  que  Orta  em  um  ou  outro 
ponto,  mesmo  na  especialidade  do  ultimo. 

Os  myrobalanos  belericos  são  o  fructo  de  uma  espécie  bem  distincta 
do  mesmo  género,  Tex*iiiiiialia  "belei^ica,  Roxb.,  bastante 
frequente  também  em  diversas  partes  da  índia.  Estes  fructos  são  menos 
alongados  que  os  precedentes;  e  a  folha  d'esta  espécie  pôde  compa- 
rar-se  na  forma  com  a  do  «louro»,  sendo  menos  brilhante,  ou  um  pouco 
mais  «pardaça»,  o  que  resulta  das  suas  numerosas  pontuações  esbran- 
quiçadas. Orta  cita  um  nome  d'estes  fructos,  nas  formas  «guti»  e  «go- 
tim»,  que  não  encontrei  mencionado  em  outros  livros. 

Por  ultimo  os  myrobalanos  emblicos  são  o  fructo  de  uma  planta  muito 
diversa  da  Terminalia,  a  espécie  Phyllanthus  Eiixlblica, 
Linn.,  da  familia  das  Euphorbiacecp,  chamada  em  hindustani  anvula, 
ou  antes  anvala^  o  «anvale»  de  Orta.  O  Phyllanthus  tem  uma  folhagem 
finamente  dividida  e  recortada,  que  o  nosso  escriptor  compara  não 
muito  impropriamente  com  as  frondes  de  alguns  fetos,  posto  que  na 
realidade  seja  uma  cousa  muito  diversa. 


'  Existe  também  uma  espécie  particular,  Terminalia  citrina ;  mas  esta  espécie  só  se 
encontra  para  oriente  do  Ganges,  de  modo  que  os  myrobalanos  citrinos  da  parte  occidental 
e  septentrional  deviam  proceder  da  Terminalia  Chebula  (Cf.  Hooker  in  Fl.  of  Brit.  índia). 


Dos  niirabolanos  159 

Os  myrobalanos  em  geral,  e  nomeadamente  os  procedentes  da  Ter- 
minalia  Chebula,  chamados  haritaki,  e  tendo  muitos  outros  nomes  sans- 
kriticos,  foram  altamente  louvados  pelos  antigos  escriptores  hindus, 
como  poderosos  medicamentos  tónicos  e  alterantes,  e  em  certos  casos 
laxantes.  Uma  prova  da  estima  em  que  os  tinham,  é  a  curiosa  lenda 
relativa  á  sua  origem :  contavam  os  hindus,  que  Indra,  bebendo  néctar 
no  céu,  deixara  cair  sobre  a  terra  uma  gota  d'aquelle  precioso  liquido, 
e  d 'essa  gota  nascera  a  planta.  Os  myrobalanos  belericos  são  igualmente 
empregados  na  medicina;  e  os  emblicos,  alem  de  terem  os  mesmos  usos, 
servem  para  preparar  conservas  em  vinagre  e  sal,  a  que  os  inglezes  cha- 
mam pikles,  e  Orta  chamava  achar,  nome  que  ficou  na  nossa  lingua.  O 
uso  dos  myrobalanos  no  tratamento  das  «camarás»  é  também  muito 

conhecido,  apontado  por  Bontius, valent  adversus  Dysenterias, 

Choleras,  et  cceteros  è  bile  natos  affectus,  e  seguido  até  aos  tempos  mo- 
dernos pelos  vid)'^as  da  índia. 

Notaremos  ainda,  quanto  é  vulgar  o  emprego  dos  myrobalanos  no 
«cortimento  das  pelles»  e  na  tinturaria,  não  só  dos  emblicos,  a  que  Orta 
se  refere  mais  especialmente,  mas  de  todas  as  formas,  sendo  hoje  ex- 
portadas da  índia  grandes  quantidades  d'estes  fructos,  exclusivamente 
destinadas  a  essa  applicação  industrial. 

Orta  menciona  a  «tinepala,  que  quer  dizer  três  feições».  É  fácil  re- 
conhecer n'esta  «tinepala»,  o  nome  hindustani  tin-phal,  e  o  sanskrito 
triphala,  os  três  fructos,  nome  que  se  dava  a  um  celebre  medicamento, 
constituído  pelos  três  myrobalanos,  muito  louvado  na  mais  antiga  me- 
dicina dos  hindus,  mencionado  no  Amarakocha  e  em  uma  receita  de 
Susruta,  e  usado  até  hoje  no  tratamento  de  variadíssimas  enfermidades. 
Este  medicamento  e  o  seu  nome  sanskritico  chegaram  ao  conhecimento 
dos  árabes,  e  por  estes  ao  dos  gregos  modernos,  como  Actuario  (xiii  sé- 
culo), o  qual  falia  da  tryphera,  e  da  sua  applicação  nos  mesmos  casos 
para  que  a  recommendam  Serapio  e  Mesué. 

Os  myrobalanos  fornecem-nos,  de  feito,  um  dos  exemplos  mais  fri- 
santes  da  influencia  que  os  antigos  tratados  de  medicina  hindu  exerce- 
ram sobre  os  escriptores  arábicos.  Não  só  aquelles  fructos  são  de  pro- 
cedência indiana  e  só  indiana;  mas  os  árabes  dizem  claramente,  que 
consultaram  a  seu  respeito  os  escriptores  hindus,  citando  nominalmente 
Charaka.  Serapio  diz  o  seguinte :  et  Xarch  Indus  dixit  in  mirobalanis, 
universaliter  mirobalani  sunt  calidi  et  stiptici — é  esta  a  phrase,  que  nós 
encontrámos  citada  por  Orta,  sem  que  este  soubesse  muito  bem  a  quem 

se  referia.  Avicenna,  fallando  dos  emblicos,  nota et  apud  Scirek 

indum  in  ipso  est  calefactio.  E  Rasis,  a  propósito  da  mesma  droga,  cita 

também  o  escriptor  sanskritico inqiiit  Scarac  indianas.  Sob  estas 

diversas  formas,  Xarch,  Scirek,  Scarak,  mais  ou  menos  deturpadas  nos 
códices  arábicos,  e  mais  ou  menos  alteradas  também  na  translitteracão 
imperfeita  das  versões  latinas,  é  fácil  reconhecer  o  nome  do  celebre  e 


i6o         Colóquio  trigésimo  sétimo  dos  mirabolanos 

lendário  Charaka.  Como  se  v8,  os  médicos  árabes  não  só  receberam 
da  índia  este  medicamento,  como  aprenderam  nos  velhos  livros  sans- 
kriticos  as  suas  propriedades,  provando-se  assim,  que  conheciam  aquelles 
livros. 

Os  myrobalanos  passaram,  pois,  da  matéria  medica  hindu  para  a 
arábica,  e  d'esta  para  a  europêa,  que  durante  séculos  foi  regida  pelas 
prescripções  dos  árabes,  sobretudo  pelas  do  divino  Mesué.  Orta  refere- 
se  explicitamente  ao  emprego  d'aquelles  fructos  em  Portugal,  especial- 
mente como  laxantes,  explicando  como  na  índia  deitavam  muito  maior 
quantidade  «do  que  nós  deitamos  em  Portugal».  Abrindo  a  Pharma- 
copéa  de  Barcelona  de  iSSy,  encontramos  em  muitas  composições  uma 
certa  quantidade  de  myrobalanoriim  citrinorum,  indonim,  etc.  Estes 
fructos,  que  hoje  só  tèem  na  Europa  um  emprego  industrial,  deviam 
ter  então  um  largo  consumo  nas  pharmacias. 

D'esta  procura,  e  dos  seus  usos  na  índia,  resultava-lhes  uma  certa  im- 
portância commercial.  Thomé  Pires  escrevia  de  Cochim  (i5i6),  que  os 
«mirabulanos  são  cinquo  sortees e  todas  estas  sortees  são  mer- 
cadorias nestas  partes».  Duarte  Barbosa  notava  .cuidadosamente  os 
preços  das  diversas  variedades  no  mercado  de  Calicut.  Em  Goa,  en- 
travam na  chamada  «Renda  da  especiaria»,  isto  é,  no  contrato  para  o 

exclusivo  da  venda  de  uma  serie  de  objectos  diversos :  « alhos  e 

cebolas  sequas,  cânfora,  aguila,  mirabulanos  sequos,  papell,  saal  d'ur- 
muz,  ffio  de  coser,  tamarinhos  sequos,  azougue,  vermelhão,  etc».  An- 
tónio Nunes  (iSS^)  diz-nos,  como  em  Hormuz  se  vendiam  «mirabulanos 
secos»,  e  «mirabulanos  em  comserua»  (conserva).  Esta  conserva,  á 
qual  se  refere  também  Orta,  era  feita  em  assucar,  e  usava-se  desde 
tempos  muito  antigos.  Pegolotti  (i343),  enumerando  as  mercadorias 
vindas  do  Oriente,  falia  dos  mirabolani  conditi,  isto  é,  conservados  em 
calda  de  assucar,  e  que  se  deviam  guardar  em  jarras  ou  panellas  de 
barro  vidrado.  De  tudo  isto  se  vê  como  estes  fructos  eram,  desde  a 
idade-media,  um  objecto  de  regular  commercio  para  a  Europa. 

(Cf.  Guibourt,  Drogues  simples,  ii,  364  e  iii,  282;  Dymok,  Mat. 
med.,'  317,  699;  Roxburgh,  Fl.  Ind.,  11,  431;  Hooker,  Fl.  of  British  ín- 
dia, 11,  445;  Pedro  Teixeira,  Relac,  76;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i,  336,  11,  128; 
Pharm.  o f  índia,  88;  Bontius,  Hist.  nat.,  Livro  vi,  cap.  24,  na  edição 
de  Piso,  Inditv  utriusque  Re  nat.  et  med.,  Amstelodami,  i658;  Royle, 
Ant.  of  Hindoo  medic,  35;  Avicenna,  Qanún  11,  11,  228,  457;  Thomé 
Pires,  na  Ga:^.  de  Pharm.  (1866),  41;  Duarte  Barbosa,  Livro,  385; 
Lyvro  dos  Pesos,  8,  19;  Tombo,  40;  Pegolotti  em  Yule  e  Burnell, 
Gloss.,  460.) 


COLÓQUIO  TRIGÉSIMO  OITAVO 

DAS  MANGOSTÃES 

t 
INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

Queixavase  comiguo  aquelle  fidalgo,  que  andava  falando 
comvosco  nas  cousas  de  Malaqua,  dizendo  que  parecia  que 
tinheis  ódio  ás  frutas  de  Malaqua  e  dessas  bandas;  porque 
escasamente  falastes  no  dortam,  sendo  a  mais  louvada  fruta 
que  ha  na  índia:  e  nas  cousas  da  China  não  falastes  cousa 
alguma,  avendo  lá  muyto  louvadas  frutas,  asi  como  são  li- 
xias  (i),  e  outras  frutas  muyto  boas  que  lá  ha. 

ORTA 

Eu  nas  cousas  da  China  não  falei,  porque  a  China  he 
terra  em  que  ha  tanto  que  contar,  que  he  nunqua  acabar: 
falei  de  algumas  mezinhas  delia,  como  he  galanga,  e  o  pau 
da  China,  porque  eram  medicinaes;  e  das  outras  frutas 
nam  faltará  quem  fale ;  e  nos  diiriôes  de  Malaqua  nam  falei 
mais  que  o  geral,  porque  sei  que  he  hum  arvore  grande, 
tamanho  como  huma  nogueira,  e  a  folha  he  como  loureiro, 
e  o  arvore  também  he  asi  em  geral.  E  no  geral  sempre  ouvi 
dizer,  que  eram  as  mais  saborosas  frutas  do  mundo  as  de 
Malaqua*. 

RUANO 

Gabaramme  huma  fruta  muyto,  que  chamão  mangostães; 
falemos  do  que  sabeis  nellas. 

ORTA 

O  que  tenho  sabido  das  mangostães,  he  que  he  huma  das 
saborosas  frutas  que  ha  nesta  terra.  He  hum  pomo  tamanho 


*  Da  galanga  tratou  Orta  no  Colóquio  vigésimo  quarto,  e  dos  doriões 
no  vigésimo;  mas  do  pau  da  China  só  trata  em  um  dos  seguintes. 


II 


i62  Colóquio  trigésimo  oitavo  das  mangostães 

como  huma  laranja  pequena,  a  casca  he  separada  do  ama- 
guo-,  a  cor  da  casca  he  lionada  e  crara;  tirandolhe  a  casca 
fora,  o  de  dentro  sam  âmagos,  asi  como  de  laranjas  peque- 
nas. O  arvore  he  tamanho  como  huma  maceira,  e  não  he 
muyto  grande;  a  folha,  he  como  de  louro;  dá  flores  ama- 
relas; dizem  que  o  sabor  desta  fruta  não  he  tam  doce  que 
faça  fastio,  e  mais  não  sei  a  que  volo  compare,  pois  nam  a 
provei  (2), 


Nota  (i) 

Este  fructo  da  China,  chamado  por  Orta  «-lixia»,  deve  ser  o  li-tchi, 
produzido  por  uma  espécie  da  família  das  Sapindaceo',  IVeplie- 
liuni  Litclii»  Camb.  {Dimocarpus  Lichi,  Loureiro),  cultivada 
desde  tempos  antigos  na  China  e  Cochinchina,  e  hoje  também  na  índia 
e  outras  regiões  tropicaes.  Que  eu  saiba,  Orta  foi  o  primeiro  escriptor 
europeu  que  o  mencionou. 

Nota  (2) 

O  mangostão,  produzido  por  uma  arvore  da  familia  das  Gitttiferce, 
Gí-ax-ciniíi  iiiíiiigostana.,  Linn.,  passa  por  ser  um  dos  me- 
lhores, senão  o  melhor  fructo  das  regiões  quentes.  A  espécie  é  mais 
do  que  tropical,  póde-se  dizer  equatorial,  afastando-se  poucos  graus 
para  o  norte  do  equador,  e  ainda  menos  para  o  sul.  Não  se  encontrava, 
portanto,  na  hidia,  o  seu  fructo  não  se  podia  transportar  em  bom  estado 
nas  antigas  e  demoradas  viagens,  e  Orta  apenas  o  conhecia  de  repu- 
tação, como  conhecia  os  duriÕes.  Apesar  d'isso  a  sua  descripção  é  bas- 
tante exacta;  o  que  elle  chama  «-âmagos»  são  as  sementes,  envolvidas 
em  uma  camada  tegumentar,  branca,  succulenta,  aromática,  e  de  excel- 
lenie  sabor.  Na  Garcinia,  a  parte  comestivel  não  é  propriamente  o  fru- 
cto, mas  a  semente. 


COLÓQUIO  TRIGÉSIMO  NONO 

DO  NEGUNDO  OU  SAMBALI 

» 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA,  SERVA 

RUANO 

Guabam  muyto  estas  vossas  negras  hum  arvore,  que 
dizem  que  nós  lavamos  aqui  sempre  os  pés  com  o  cozi- 
mento delle,  e  dizem  que  aproveita  pêra  tantas  cousas  que 
estou  pasmado. 

ORTA 

Pareceme  que  nesta  orta  está :  venha  qua  a  negra  que  o 
gaba.  Moça? 

SERVA 

Que  manda  vossa  mercê? 

ORTA  . 

Que  arvore  he  esse  que  gabas  muyto? 

SERVA 


He  negwido. 


ORTA 


He  huma  arvore  que  tem  mais  propriedades  ou  milhores 
que  pode  ser;  e  quanto  mais  lhe  tiram  os  ramos,  tanto  crece 
mais.  He  mezinha  muito  resulutiva,  e  metiga  o  dor  em  grande 
maneira,  quando  não  ha  chaga,  scilicet,  o  lavatório  do  cozi- 
mento desta  erva  quente,  ou  a  mesma  erva  quente  pisada, 
posta  emcima,  ou  frita  em  azeite  e  posta  emcima.  E  verda- 
deiramente que  deita  a  perder  os  físicos ;  porque  não  entrais 
em  casa  a  curar  cousa  alguma  de  dor,  que  nam  saia  loguo 
de  travez  alguma  pessoa  que  digua:  pondelhc  negundo  co- 
zido, oii  torrado,  ou  frito  em  azeite.  Também  dizem  muytos 
homens  que  o  puseram  emcima  de  chagas  muido  em  tal 


164  Colóquio  trigésimo  nono 

maneira,  e  que  em  huma  noite  degiriam  a  matéria  de  tal 
maneira,  que  ficava  sem  dor  \  e  dahi  por  diante  continuando, 
as  folhas  a  modificavam  em  tal  maneira  que  cerava*  de  todo 
ponto;  e  isto  contam  muitas  pessoas  e  não  huma  só.  As 
mulheres  o  tem  por  muyto  bom  pêra  preparar  a  madre 
pêra  conceber,  e  dizem  que  bebido  faz  este  mesmo  efeito. 
Eu  julgoa  por  milhor  mezinha,  e  mais  forte  que  macela; 
tem  mu3'to  bom  cheiro;  mastigando  queima  hum  pouquo, 
como  masturço,  por  onde  he  manifesto  ser  de  compleiçam 
quente.  Chamase  este  arvore  comummente  negimdo,  e  alguns 
no  Balagate  o  chamam  sambali,  e  em  Malavar  lhe  chamam 
noche,  e  usam  os  Malavares  disto  em  caril.  A  folha  delle  he 
similhante  á  do  sabugueiro,  farpada  como  elle,  e  velosa 
polias  costas  hum  pouco ;  e  o  arvore  he  tamanho  como  hum 
pecegueiro,  deita  flores  brancas  e  algum  tanto  pardas,  e 
huma  semente  preta,  tamanha  como  pimenta  e  alguma  cousa 
maior.  Ouve  hum  boticairo  nesta  índia,  homem  velho  em 
quem  confiava  muyto  hum  governador  casto  e  vertuoso,  e 
querendo  reprimir  os  estimules  da  carne,  perguntou  áquelle 
boticairo  se  avia  alguma  cousa  pêra  isso;  o  boticairo  lhe 
dixe  que  si,  e  que  era  hum  arvore  que  chamavam  agnocasto; 
e  fez  usar  este  governador  deste  negwido,  o  qual  usou  delle 
muytos  dias,  porque  não  faltou  hum  fisico  que  dixe  que  era 
verdade,  que  aquelle  era  o  arvore  chamado  agnocasto;  e 
quando  me  foy  dito  isto,  oulhei  o  capitulo  do  agnocasto,  e' 
cotejeio  com  o  arvore  chamado  negundo,  e  acheio  tam  de- 
ferente, que  não  pudia  mais  ser;  entonces  dixe  que  não 
era  negundo,  agnocasto,  e  nam  quis  afirmar  isto  sem  ver  o 
livro,  porque  eu  nam  conheço  agnocasto,  nem  avia  boticairo 
aqui,  que  o  conhecese.  Despois  veo  a  esta  terra  hum  fisico 
letrado  e  homem  que  fala  verdade  em  seus  ditos**,  e  disseme 
que  em  Portugal  avia  ao  presente  muytos  agnocastos,  e  que 
eram  bem  deferentes  destes  na  folha,  e  em  tudo. 


*  Pôde  entender-se,  que  a  chaga  cerrava  ou  sarava. 
**  O  licenciado  Dimas  Bosque  (nota  do  auctor). 


Do  negundo  ou  sambali  i65 


Nota  (i) 

Duas  espécies  do  género  Vitex,  da  família  das  Verbenacece,^ ites:. 
Negniido,  Linn.,  e  T^itex  trifolia,  Linn.,  gosam  na  medi- 
cina hindu  de  quasi  igual  reputação,  e  são  designadas  pelos  mesmos 
nomes  vulgares,  ou  por  nomes  muito  similhantes,  de  modo  que  não 
é  fácil  saber  a  qual  d'ellas  Orta  se  quiz  referir,  ou  se  abrangeu  ambas 
sob  a  designação  de  «negundo»,  o  que  julgo  mais  natural: 

—  este  nome,  «negundo»,  prende-se  ao  sanskrito  nirgundi  e  outras 
formas  similhantes,  que  parecem  applicar-se  ás  duas  espécies  (Cf.  Ain- 
slie,  Mat.  Ind.,  ii,  287,  252 ;  e  Amarakocha,  94,  ed.  Lois.  Deslongchamps). 

—  «sambali»  é  o  nome  vulgar  hindustani  J'_^.:J;,,  chambali  (Ains- 
lie,  1.  c). 

—  «noche»  é  o  nome  tamil  nochie,  ou  nochchi. 

Ruano  não  exagera,  dizendo  que  estava  pasmado  de  ouvir  para  quan- 
tas cousas  aproveitava  o  negundo,  pois  o  dr.  Waring  nota  que  poucas 
plantas  têem  na  índia  usos  medicinaes  tão  variados  como  as  duas  espé- 
cies citadas  de  Vitex.  D'estes  usos,  o  principal  é  justamente  aquelle  em 
que  Orta  mais  insiste,  isto  é,  no  tratamento  de  qualquer  «cousa  de  dor», 
causada  por  rheumatismo,  contusões  ou  distensões.  Em  qualquer  d'estes 
casos,  o  negundo  é  considerado  um  resolutivo  poderoso,  ao  qual  re- 
correm desde  logo  os  clínicos  hindus,  ou  a  medicina  caseira.  O  dr.  Fle- 
ming descreve  o  modo  de  applicação  exactamente  como  Orta:  as  folhas 
frescas  são  aquecidas  em  uma  vasilha  de  barro,  e  simplesmente  coUo- 
cadas  sobre  a  parte  affectada,  mantidas  por  uma  ligadura.  Repetida 
esta  applicação  três  ou  quatro  vezes,  pôde  dar  — segundo  o  mesmo 
dr.  Fleming —  resultados  extremamente  favoráveis.  Roxburgh  menciona 
o  habito  de  as  mulheres  indianas  tomarem,  depois  do  parto,  banhos 
preparados  com  as  folhas  aromáticas  do  negundo  —  o  que  lembra  o  bom 
effeito  sobre  a  «madre»,  apontado  pelo  nosso  escriptor. 

Um  dos  conhecidos  commentadores  de  Garcia  da  Orta,  o  medico 
hollandez  Bontius,  fallando  (1629)  da  curiosa  doença,  chamada  beribéri, 
diz  que  em  Java  empregavam  com  resultado  no  seu  tratamento  fomen- 
taçóes  e  banhos  da  herba  nobili  Lagondi  dicta^;  e,  segundo  Waring 
e  Dimock,  era  igualmente  útil  este  lagondi  em  outra  enfermidade  dos 
naturaes,  obscuramente  alliada  com  o  beribéri,  a  que  davam  o  nome 
de  pés  queimados  (burning  of  the  feet);  este  era  talvez  o  motivo  de 
lavarem  por  precaução  os  pés  com  o  cozimento  do  lagondi  ou  negundo, 
como  affirma  o  nosso  escriptor.  Como  se  vê,  todas  as  informações  dos 


'  Lagondi  é  o  nome  javanez  do  negundo,  e  segundo  parece  de  ambas  as  espécies  de  Vi- 
íex,  ás  quaes  Rumphius  chamou  respectivamente  Lagondium  vulgare  e  Lagondium  litto- 
rale. 


i66     Colóquio  trigésimo  nono  do  negundo  ou  samhali 

Colóquios,  relativas  aos  usos  therapeuticos  do  negundo,  são  confirma- 
das pelos  médicos  que  posteriormente  têem  habitado  as  regiões  orien- 
taes,  desde  Jacob  de  Bondt,  ou  Boniius,  até  aos  clinicos  inglezes  do 
nosso  século. 

Orta  distingue  com  rasáo  o  negundo  do  agno-casto;  mas  não  tem 
igualmente  rasão  em  dizer  que  eram  muito  differentes,  pois  o  agno-casto 
pertence  ao  mesmo  género  Vitex,  o  qual  de  mais  a  mais  é  muito  natural. 

(Cf.  Dymock,  Mat.  rned.,  600;  Phannac.  o f  índia,  i63;  Roxburgh,  7^^. 
Ind.,  iii,  70;  Jac.  Bontii,  Hist.  nat.  et  med.  Ind.  orient.  libri  sex,  a  p.  18 
da  edição  de  Piso.) 


COLÓQUIO  QUADRAGÉSIMO 

DO  NIMBO 

r 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RUANO 

Querovos  alembrar  o  arvore  com  que  curastes  o  vosso 
cavalo  muito  estimado,  que  me  dixestes  que  volo  lembráse. 

ORTA 

Tendes  muita  rezam,  porque  certo  he  hum  arvore  muito 
proveitoso  e  medicinal  acerca  das  gentes  que  conheço,  e  em 
todas  se  chama  nimbo.  Vim  a  conhecer  sua  bondade  no  Ba- 
lagate,  porque  vi  curar  com  elle  chaguas  de  cavalos  muito 
deficultosas  de  modificar  e  alimpar,  e  alimparemse  muito 
asinha  as  chagas,  e  o  cavalo  foy  muyto  asinha  sam;  e  nam 
foi  com  mais  que  com  pôrlhe  as  folhas  deste  arvore  pisadas, 
e  postas  emcima  das  chaguas,  mesturadas  com  çumo  de 
linicão;  e  asi  o  fazem  nas  chaguas  dos  homens,  e  dizem  que 
milagrosamente  saram  com  só  o  çumo  desta  erva.  E  mu3'tas 
pessoas  ma  gabaram  já,  e  me  diserão  que  no  Malavar  o  usa- 
vam muyto  pêra  o  que  Já  disse-,  e  o  çumo  destas  folhas  o 
usavam  pêra  lombriguas,  e  pareceme  que  tem  rezam  porque 
amarga  algum  tanto. 

RUANO 

Lembrame  que,  quando  me  falastes  nisto  da  cura  do  ca- 
valo, me  dixestes  que  nesta  cidade  não  sabeis  mais  que  huma 
arvore  destas,  e  que  ma  queríeis  mostrar  hindo  a  Sam  Do- 
mingos a  ouvir  missa,  o  que  eu  vi,  e  he  do  tamanho  de  hum 
freixo,  e  tem  a  folha  como  de  oliveira,  e  ao  redor  he  farpada 
toda,  e  verde  de  todas  as  bandas,  não  he  parda  nem  vellosa, 
tem  a  ponta  mais  aguda  que  a  da  oliveira;  he  o  arvore  muyto 
cheo  de  muytas  folhas:  diguovos  isto  porque  vejais  se  pinto 
bem  o  arvore,  mas  huma  só  cousa  não  sei,  e  he  se  tem  frol 
ou  fruito. 


i68  Colóquio  quadragésimo 


ORTA 


Mu3'to  bem  pintastes  o  arvore;  mas  o  milhor  tendes  por 
saber,  que  he  dar  fruito  muito  proveitoso,  o  qual  he  como 
azeitonas  muito  pequenas,  das  quais  fazem  azeite  mu3^to  me- 
dicinal pêra  os  nervos,  com  que  se  muyta  gente  acha  bem, 
untandose  com  elle  quente:  he  muyto  usado  em  Bisnager 
e  no  Malavar,  e  trazemno  aqui  a  Goa  a  vender  por  merca- 
doria em  que  ganham  muyto,  e  as  froles  sam  brancas,  e 
deste  arvore,  até  ao  presente,  não  sei  mais,  e  como  souber 
eu  volo  escreverei  de  qua  (i). 


Nota  (i) 

O  «nimbo»  é  a  Mielia  A-zadiraclita,  Linn.  [Melia  indica, 
Brandis,  A:^adirachta  indica,  Juss.),  uma  bella  arvore  da  família  das 
Meliacece,  conhecida  em  geral  na  índia  pelo  nome  vulgar  de  nim  ou 
nimb,  e  no  sul  pelo  de  nimbu  ou  nimba.  Gosa  entre  os  hindus,  desde 
tempos  antigos,  de  grande  reputação  medicinal,  e  parece  que  já  vem 
mencionada  nos  escriptos  de  Susruta,  sob  o  nome  de  |H^o|,  nimba 
(para  outros  nomes  sanskriticos,  cf.  Amarakocha,  92).  Em  tempos  mo- 
dernos foi  admittida  officialmente  na  Phantmcopéa  da  índia,  sendo  cha- 
mada nas  pharmacias  margosa  (a  casca  córtex  margosce),  o  que  cla- 
ramente se  deriva  da  palavra  portugueza  amargosa. 

A  casca  é  considerada  adstringente,  tónica  e  antiperiodica,  e  as  folhas 
estimulantes.  Na  Pharmacopceia  of  índia  vem  indicada  uma  cataplasma 
das  folhas  frescas,  pisadas  e  humedecidas  com  agua  tépida,  como  uma 
excellente  applicação  em  chagas  e  ulceras  indolentes  e  de  mau  caracter, 
applicação  muito  recommendada  pelo  dr.  Grant  e  pelo  dr.  Dunbar. 
É  exactamente  a  indicação,  dada  ha  três  séculos  pelo  nosso  medico. 
O  óleo  das  sementes  é  também  empregado  medicinalmente,  ou  como 
anihelmintico,  ou  em  uso  externo  no  rheumatismo  e  outras  doenças, 
o  que  ainda  concorda  com  o  que  diz  Orta. 

Segundo  notaram  já  Fliickiger  e  Hanbury  na  Pharmacographia, 
o  nosso  auctor  foi  o  primeiro  europeu  que  tratou  d'esta  arvore  e  das 
suas  propriedades  medicinaes.  Poucos  annos  depois.  Acosta  deu  uma 
figura  bastante  boa  de  um  ramo,  confirmando  o  que  Orta  havia  dito, 
e  acrescentando  varias  informações  sobre  a  therapeutica  indiana  do 
nimbo. 


Do  nimbo  169 

Comquanto  a  Melia  A^adirachta  seja  vulgar  na  índia,  em  Goa  existia 
— segundo  Orta  diz —  um  único  exemplar  na  cerca  de  S.  Domingos, 
que  ficava  na  parte  oriental  da  ilha,  para  lá  da  Alfandega  e  do  Bazar, 
perto  do  Passo  de  Daugim. 

(Cf.  Fliick.  e  Hanb.,  Phannac,  i35 ;  Dymock,  Mat.  med.,  168;  Ainslie, 
Mat.  Ind.,  11,  453;  Phannac.  of  índia,  53;  Christoval  Acosta.,  Tract.  de 
las  drogas,  283.) 


COLÓQUIO  QUADRAGÉSIMO  PRIMEIRO 

DO  AMFIAM  DITO  ASSI  CORROMPIDAMENTE 
PORQUE  O  SEU  NOME  HE  ÓPIO 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 
RUANO 

Queria  saber  a  certeza  do  amjiam,  que  he  o  que  a  gente 
desta  terra  usa,  se  he  o  que  chamamos  ópio;  e  donde  ha 
tanta  cantidade  quanta  se  gasta,  e  quanto  comem  cada  dia. 

ORTA 

O  amjiam  he  o  ópio,  e  por  ser  muyto  usado  em  comer 
entre  muitos,  ainda  que  o  comam  em  pouca  cantidade,  fica 
em  mercadoria  necesaria  muyto  pêra  todollos  cabos  onde 
se  usa  comer;  porque,  se  o  nam  usam,  correm  perigo  de 
morrer-,  e  por  esta  causa  na  .terra  onde  faltou  vai  muyto 
caro,  e  apetecese  bem  muyto  sempre,  pêra  o  ter  (como  quem 
CTuarda  o  trigo  pêra  maio).  Faz  os  homens  que  o  comem 
andar  dormindo;  e  dizem  que  o  tomam  pêra  nam  sentir  o 
trabalho. 

RUANO 

E  não  o  tomam  pêra  a  luxuria,  como  me  dizem  *,  porque 
isto  he  contra  toda  a  medecina,  e  contra  toda  a  rezam,  se 
pêra  obra  de  Vénus  aproveita. 


ORTA 


He  muyta  verdade  o  que  dizeis,  porque  pêra  isto  não 
aproveita,  mas  antes  dana;  e  asi  os  que  o  tomam  para  isto 
nam  sam  reys,  nem  pessoas  poderosas,  nem  mercadores 
ricos,  que  entendam  bem  a  verdade;  porque  estes  nam  o 
tomão  senão  em  pouca  cantidade,  e  pêra  outros  efeitos;  e  os 
físicos  todos  letrados,  a  nossa  guisa,  me  afirmavam  que 
tornava  os  homens  inpotentes,  e  os  fazia  leixar  a  Vénus 


1 72  ,    Colóquio  quadragésimo  primeiro 

mais  cedo.  E  eu  conheci  no  Balagate  hum  português  que 
andava  lá  alevantado,  o  qual  foy  com  uso  delle  tornado 
inpotente,  e  os  Portugueses  que  lá  andavam  mo  certifica- 
ram asi. 

RUANO 

Pois  tanta  gente  usa  isto  pêra  deleitaçam  carnal,  não  pode 
ser  que  todos  se  enganem. 

ORTA 

Eu  vos  direi  pêra  que  aproveita,  se  me  derdes  licença, 
porque  a  matéria  não  he  muyto  limpa,  em  especial  dita  em 
português. 

RUANO 

Dizei,  porque  as  cousas  não  são  cujas,  senam  quando  as 
dizem  os  cujos,  e  com  não  limpa  emtençam, 

ORTA 

A  vertude  imaginativa  ajuda  mu3to  a  deleitaçam  carnal, 
e  como  ella  seja  superior  da  vertude  expulsiva,  obedecelhe 
a  ella,  a  qual  vertude  imaginativa,  quanto  he  mais  forte, 
tanto  mais  asinha  se  acaba  o  auto  de  Vénus,  porque  manda 
a  imaginativa  vertude  á  espulsiva,  que  deite  nos  companhois 
a  semente  genital,  e  quanto  mais  se  imagina  niso,  tanto  vem 
mais  asinha  ao  membro  a  semente;  e  porque  os  que  comem 
este  amjiam,  estam  como  fora  de  si,  acabam  este  auto  ve- 
néreo mais  tarde;  e  porque  muytas  fêmeas  não  deitam  a 
semente  tam  asinha,  em  quanto  tarda  o  homem,  exercita 
ella  a  obra  de  Vénus  mais  tarde,  e  em  hum  tempo  junta- 
mente se  acaba  o  auto  de  conceber  delles  ambos,  e  pêra  isto 
ajuda  o  comer  do  amjiam,  scilicet,  pêra  acabar  o  auto  venéreo 
mais  tarde;  e  mais  o  amjiam  aperta  os  caminhos  por  onde 
vem  a  semente  genital  do  cérebro,  por  causa  da  sua  frial- 
dade, e  vem  a  fazerse  a  confeiçam  de  ambos  juntamente, 
E  bem  sei  que  isto  o  entendeis  muyto  bem,  mas  se  o  escre- 
verdes em  romance*,  não  parecerá  pratica  muito  honesta. 


*  Em  portuguez,  ou  na  nossa  lingua  vulgar.  Camões  applica  a  palavra 

a  qualquer  lingua  vulgar: «que  o  romance  da  terra  chama  Oby» 

(Lus.  X,  96). 


Do  amfiam  lyS 

RUANO 

Logo  alguma  rezam  tem  elles,  posto  que  não  muyto  ho- 
nesta; e  porém  me  dizei,  como  lhe  chamam  amjiam,  e  quem 
lhe  chama  asi. 

ORTA 

Todos  lhe  chamam  ajiom,  scilicet,  os  Mouros  donde  o 
tomaram  os  Gentios,  e  nós  mais  corrompidamente  lhe  cha- 
mamos amfiam;  e  a  causa  de  os  Mouros  o  chamarem  afiom 
ou  ofiom,  he  porque  os  Arábios  tomarão  muytos  nomes  da 
lingua  grega,  a  qual  elles  chamam  jhunani  (casi  lingua  joni- 
qua*):  e  porque  os  Gregos  lhe  chamam  ophmi,  e  porque 
ácerqua  dos  Arábios  a  letra /e  a  letra  jc  sam  muito  hirmans, 
e  põemse  muytas  vezes  huma  por  outra,  chamaramlhe  elles 
ofiiim  ou  afiinn,  e  também  ápeonia  chamam  áks  Jaunia,  e 
asi  outros  muytos  nomes,  mudando  o  p  por^**. 

RUANO 

De  quantas  maneiras  o  ha? 

ORTA 

De  muitas  maneiras  o  ha,  deferençandoo  polias  terras  e 
sinaes:  o  do  Cairo  (a  que  elles  chamam  meceri)  he  alvo, 
e  vai  muyto  dinheiro,  e  deve  ser  o  que  nós  chamamos  te- 
baico:  o  de  Adem,  e  de  outras  partes  vizinhas  ao  mar  Roxo, 
he  preto  e  muyto  duro,  e  este  em  humas  terras  vai  muyto, 
e  em  outras  pouquo:  e  o  de  Cambaia,  e  do  Mandou,  e  do 
Chitor,  que  he  mais  molle  e  mais  louro,  vai  em  muytas 
terras  mais,  porque  se  acustuma  a  comer  ahi;  de  modo  que 
o  acustumado  em  cada  terra  a  comer  vai  mais  nella;  e  este 
que  diguo  de  Cambaia  vem  a  mais  cantidade  delle  de  huma 
terra,  que  chamam  Mal  vi. 


•  Já  os  antigos  hindus  chamavam  aos  gregos  Yavana.  de  Iónicos,  ou 

♦•  Não  porque  as  letras  sejam  irmãs  ou  similhantes,  mas  porque  ca- 
recem dop.  Veja-se  a  nota,  vol.  i,  pag.  164. 


iy4  Colóquio  quadragésimo  primeiro 

RUANO 

Como  se  faz  ou  o  que  leva,  porque  cheira  a  troinsco. 

ORTA 

Nam  he  mais  que  a  guoma  das  durmideiras,  o  qual  eu 
soube  em  Cambaiete,  vendo  na  praça  vender  cascas  de  dur- 
mideiras, tam  grandes  que  cada  huma  levaria  huma  canada, 
e  também  vi  algumas  pequenas  como  as  nossas;  e  pregun- 
tandolhe  por  o  nome,  me  dixeram  que  era  caxcax  (e  he  ver- 
dade que  asi  se  chama  em  arábio)  e  dixeramme  que  destas 
durmideiras  se  fazia  o  amjiam,  dando  cutiladas  nas  durmi- 
deiras por  onde  corria  o  amjiam.  E  quanto  he  ao  troinsco 
nam  o  ha  em  toda  Cambaia,  nem  ouvi  dizer  que  o  ouvesse 
em  toda  a  índia,  por  onde  podeis  bem  descansar  que  o  nam 
leva. 

RUANO 

Seram  durmideiras  pretas,  pois  diz  Avicena*  que  quando 
tevermos  necessidade  de  fazer  algum  estupor  ou  mortifi- 
camento  em  algum  membro,  nam  pasemos  de  dor7}iideiras 
brancas;  porque  ainda  que  façam  estupor,  sam  domesticas; 
e  também  Avicena  diz**  que  o  ópio  se  faz  de  durmideiras 
negras. 

ORTA 

Antes  nam  vi  durmideira  preta  em  Cambaia,  nem  ouvi 
dizer  que  a  avia,  por  onde  Avicena  foy  emganado  nisso,  ou 
nas  outras  terras  se  faz  das  durmideiras  pretas. 

RUANO 

Muyto  me  maravilho  disto,  sendo  tam  narcótico  e  estu- 
pefativo  quanto  he.  E  aguora  me  dizei  a  quantidade  que 
toma  huma  pessoa  cada  diar 


*  Avicena,  4,  i,  cap.  i,  (nota  do  auctor). 

**  Avie.  Libr.  2,  cap.  527  (nota  do  auctor) ;  isto  é  522  da  edição  de 
Rinio. 


Do  amjiam  176 

ORTA 

O  que  tive  por  emformação  he  de  20  até  5o  grãos  de  trigo 
de  peso;  mas  eu  conheci  hum  secretairo  do  Nizamoxa,  cora- 
çone  de  naçam,  que  comia  cada  dia  três  tollas,  que  he  peso 
de  10  cruzados  e  meio*;  mas  este  coraçone,  posto  que  era 
bom  letrado  e  grande  escrivam  e  notador,  sempre  toscane- 
java ou  durmitava;  e  porém,  metendoo  em  pratica,  falava 
como  homem  letrado  e  discreto;  e  por  aqui  podeis  ver  quanto 
faz  o  custume  (i). 


*  O  «tolla»  ou  tola,  peso  que  não  vem  mencionado  no  Lyvro  dos 
pesos,  mas  se  encontra  citado  nas  Lembranças,  equivalia  a  96  ratíis, 
e  é  computado  hoje  officialmente  na  índia  ingleza  em  180  grãos  (de 
troy).  Três  tolas  pesariam,  portanto,  540  grãos,  e  sendo  isto  equiva- 
lente ao  peso  de  10  —  cruzados,  teríamos  para  o  peso  do  cruzado  menos 
de  52  grãos.  Isto  está  a  baixo  da  verdade,  e  devemos  admittir  um  peso 
superior  para  o  tola  de  então,  o  que  de  resto  não  nos  surprehende, 
pois  todos  estes  pesos  variaram  muito  de  epocha  para  epocha  e  de  re- 
gião para  região.  É  bastante  singular  este  emprego  do  cruzado  como 
unidade  de  peso. 


Nota  (i) 


O  opto,  como  todos  sabem,  procede  da  espécie  Papaver*  so- 
iiiiiifex^aim,  Linn,  da  qual  em  diversas  regiões  se  cultivam  distin- 
ctas  variedades,  tidas  por  alguns  na  conta  de  espécies  particulares,  mas 
reunidas  modernamente  por  Boissier  e  outros  botânicos  na  espécie 
citada.  O  sueco  leitoso  das  capsulas  das  papoulas  d'esta  espécie  é  co- 
nhecido desde  tempos  muito  antigos,  e  recebeu  dos  gregos  o  nome  de 
u.r,ic(óv£'.ov  ou  de  c-o'í,  que  os  latinos,  como  Plinio,  escreveram  opion,  e  de 
que  os  árabes  fizeram  . ^ <wi1 ,  ^""j  não  que  ope  o/fossem  muito  simi- 
Ihantes  no  seu  alphabeto,  como  diz  o  nosso  Orta,  mas  por  que  careciam 
dop.  De  a/iun  os  portuguezes  da  índia  derivaram  afiam,  e  depois  por 
uma  alteração  phonetica  natural  amfiam.  Para  terminarmos  desde  já 
com  a  nomenclatura,  diremos  que  árabes  e  deckanis  chamam  á  papoula 
do  ópio  ,  iLsr\Lss.,  khaschkhasch,  o  «caxcax»  de  Orta. 

Tudo  quanto  diz  respeito  ao  ópio,  á  sua  composição  chimica  e  ás 
suas  applicaçóes  medicinaes,  á  cultura  da  planta  e  ao  processo  de  extrac- 


i-jb  Colóquio  quadragésimo  prijjieiro 

cão  do  seu  látex,  é  demasiado  conhecido  para  que  nos  deva  demorar 
n'estas  notas,  e  remettemos  o  leitor  para  os  livros  clássicos  de  Matéria 
medica,  particularmente  para  o  excellente  artigo  da  Pharmacographia 
de  Fliickiger  e  Hanbury,  e,  pelo  que  diz  respeito  á  cultura  na  índia, 
em  uma  região  expressamente  mencionada  por  Orta,  para  o  que  expõe 
largamente  o  dr,  Dimock,  na  Vegetable  mat.  med.  ofwestern  índia.  Unica- 
mente procuraremos  deduzir,  do  que  dizem  Orta  e  outros  escriptores 
portuguezes  do  seu  tempo,  quaes  eram  as  condições  do  commercio 
do  ópio  pelos  melados  do  xvi  século,  limitando-nos  naturalmente  a  al- 
gumas indicações  muito  breves,  pois  não  temos  espaço,  nem  elemen- 
tos para  mais. 

O  dr.  Dymock,  no  artigo  acima  citado,  diz-nos  que  os  antigos  escri- 
ptores hindus  não  mencionam  o  ópio,  e  que  o  seu  nome  sanskritico  em 
obras  relativamente  modernas  é  ahiphena,  tendo  alguma  similhança  com 
o  nome  arábico  e  podendo  talvez  derivar-se  d'elle.  Por  outro  lado,  os 
eruditos  auctores  da  Pharmacographia  são  de  opinião,  que  a  introduc- 
ção  na  índia  da  cultura  do  Papaver  se  deve  relacionar  com  a  entrada  ali 
dos  árabes  e  do  islamismo  i.  Parece,  pois,  que  esta  cultura  não  é  muito 
antiga  n'aquella  região;  e  o  que  dizem  os  nossos  escriptores  vem  re- 
forçar este  modo  de  ver,  mostrando-nos,  como  a  índia  não  era  no  xvi  se- 
cvdo  o  que  hoje  é,  uma  região  exportadora  de  ópio,  mas  pelo  contrario 
uma  região  largamente  importadora. 

No  dia  I  de  Dezembro  do  anno  de  i5i3,  Affonso  de  Albuquerque 
escrevia  a  D.  Manuel  unia  carta,  datada  de  Cananôr,  dizendo- lhe  o  se- 
guinte : 

«Se  me  vos  alteza  quyser  crer,  mamday  semear  dormydeyras  das 
ilhas  dos  açores  em  todollos  paúes  de  purtugall,  e  manday  fazer  afiam, 
que  he  a  melhor  mercadaria  que  cobre  pêra  estas  partes,  e  em  que  se 
ganha  dinheiro:  por  este  açoute  que  demos  adem,  nam  veo  afyam  á 
imdia,  e  onde  valia  a  doze  pardaos  a  faraçoUa,  nam  se  acha  agora  a 
oytemta:  o  afyam  nam  he  outra  cousa,  senhor,  senam  leite  de  dorme- 
deiras ;  do  cayro,  domde  soyam  a  vyr,  nam  vem,  mem  d  adem ;  portanto, 
senhor  manday  o  semear  e  laurar,  porque  hua  náo  carregada  se  gastará 
cada  ano  na  Imdia,  e  os  lauradores  ganharam  também  muyto,  e  a  jem- 
te  da  Imdia  perde-se  sem  elle,  se  o  nam  comem;  e  meta  vos  alteza  este 
feito  em  ordem,  porque  nam  vos  esprevo  pouquo.» 

Este  trecho  de  cartas  é  interessantíssimo,  como  são  em  geral  os 
documentos  emanados  de  Affonso  de  Albuquerque,  mostrando-nos  o 
seu  alto  e  activo  espirito,  occupado  de  todas  as  questões  que  por  qual- 
quer modo  podiam  interessar  Portugal.  Sob  o  nosso  ponto  de  vista 


'  E  necessário,  no  emlanto,  advertir,  que  A.  Pictet  menciona  um  nome  sanskrito  kas- 
khasa,  de  onde  deriva  o  nome  persa,  e  o  nome  árabe  já  citado  khaschkhasch,  parecendo  in- 
clinar-se  á  opinião  de  uma  cultura  antiga  na  índia  (Orig.  Indo-Eur.,  i,  2g5). 


Do  amjiam  177 

actual,  é  perfeitamente  conclusivo.  Albuquerque  não  diz  uma  palavra 
da  cultura  na  índia,  e  informa-nos  de  que,  cortado  o  caminho  de  Adem, 
a  droga  havia  subido  extraordinariamente  de  preço,  passando  de  doze 
a  oitenta  pardáos.  A  producção  estava,  portanto,  longe  de  satisfazer 
ao  consumo,  e  a  índia  era,  como  dissemos,  uma  região  largamente  im- 
portadora. 

Poucos  annos  depois,  no  livro  terminado  em  i5i6,  mas  dando  no- 
ticias relativas  a  annos  anteriores,  Duarte  Barbosa  é  o  primeiro  a  men- 
cionar o  ópio  fabricado  na  índia.  Na  sua  lista  final  de  drogas,  traz  o  se- 
guinte : 

«Opioi  que  vem  de  Adem  aonde  o  fazem, 
vai  em  Calicut  a  farazola,  fanões 280  a  820 

«Outro  ópio  que  se  faz  em  Cambaya 200  a  25o 

Paliando  de  Malaca,  diz  também,  que  os  juncos  levavam  para  o 

Oriente,  provavelmente  para  a  China «vermelham,  azougue,  an- 

fiam,  e  outras  muytas  mercadorias  e  dragoarias  de  Cambaya.»  Não  diz, 
porém,  que  este  amfiam  fosse  todo  colhido  em  Cambaya,  e  sem  du- 
vida devia  vir  na  maior  parte  do  occidente,  passando  em  transito  pelos 
portos  da  índia,  como  succedia  com  o  azougue  e  vermelhão.  Isto  é  con- 
firmado pelo  facto,  de  muitos  annos  depois  os  chins  não  terem  ainda 
o  ópio  como  um  producto  da  índia.  O  dr.  Bretschneider,  em  uma  carta 
dirigida  ao  sr.  A.  De  CandoUe,  nota  que  uma  Matéria  medica  chin 
(i  552-1 578)  menciona  o  ópio,  chamando-lhe  a-fou-yong  (evidentemente 
uma  transcripção  chineza  do  arábico  afiUn),  e  dizendo,  que  era  produ- 
zido no  paiz  de  Tienfang  (Arábia).  É  certo,  no  emtanto,  que  algum 
ópio  da  índia  já  então  devia  ir  para  a  China,  como  logo  veremos  me- 
lhor. Em  resumo,  Barbosa  é  o  primeiro  a  mencionar  a  producção  de 
ópio  na  índia,  e  o  primeiro  a  mencionar  a  sua  importação  no  extremo 
Oriente. 

Quasi  pelo  mesmo  tempo  (27  de  Janeiro  de  i5i6)  Thomé  Pires  es- 
crevia a  D.  Manuel  a  sua  conhecida  carta,  dando-lhe  as  seguintes  infor- 
mações sobre  a  procedência  do  ópio: 

«nacee  em  tebes  cidade  do  Reyno  do  cairo;  nacee  em  adem,  em 
canbaya,  no  Reino  de  coús,  que  he  na  terra  firme  de  Bengala.» 

Colloca  em  primeiro  logar  o  do  Egypto  e  de  Adem,  e  só  depois  o 
da  índia,  dando-nos  n'esta  parte  a  noticia  nova  e  interessante,  de  que 
já  se  colhia  em  Coús  (Kus  Behar)  no  valle  do  Ganges,  hoje  uma  das 
principaes,  ou  a  principal  região  productora  da  índia. 

Do  mesmo  modo  que  Thomé  Pires,  Garcia  da  Orta  menciona  pri- 
meiro o  ópio  do  Egypto,  dizendo  dever  ser  o  chamado  «tebaico»,  como 


'  Esta  parte  falta  no  manuscripto  portuguez,  e  foi  traduzida  da  versão  de  Ramusio  ;  pro- 
vavelmente Barbosa  escreveu  <anfiam»  e  não  ópio. 


12 


178  Colóquio  quadragésimo  primeiro 

Pires  havia  dito  que  vinha  de  «tebes»  ou  Thebas.  Já  séculos  antes, 
Simão  Januense  — varias  vezes  citado  nos  Colóquios —  havia  fallado 
do  opiíim  ihebaicum;  e  uns  vinte  annos  depois  da  publicação  do  livro 
de  Orta,  Prospero  Alpino  visitou  o  Egypto,  e  informa-nos  de  que  na 
provincia  chamada  Thebaida  cultivavam  a  papoula  e  colhiam  o  ópio. 
O  Egypto  era,  pois,  no  xvi  século,  como  ainda  hoje  é,  uma  região  ex- 
portadora; mas  era  n'aquelle  tempo  exportadora  para  a  índia. 

Orta  falia  depois  no  ópio  de  Adem  e  regiões  «vizinhas  ao  mar  Roxo». 
Apezar  de  Barbosa  usar  a  expressão  de  «Adem  aonde  o  fazem»,  eu 
creio  que  este  ópio  devia  vir  da  Ásia  menor,  onde  a  cultura  da  papoula 
é  antiquíssima,  e  passaria  por  Adem.  em  transito  para  a  índia,  o  caminho 
natural  n'aquelle  tempo.  O  próprio  Barbosa,  fallando  especialmente  do 
porto  de  Adem,  menciona  o  opeo  (sic)  entre  muitas  mercadorias,  que 
ali  vinham  ter  de  diversas  regiões  e  d"ali  seguiam  para  Cambaya.  Este 
ópio  de  Adem,  ou  mais  provavelmente  da  Ásia  menor,  era  bom,  e  o 
mais  altamente  cotado  no  mercado  de  Hormuz  (i554):  «vai  a  mão  do 
(amfiam)  d'Adem  a  6  azares^».  Logo  abaixo  estava  o  da  Pérsia:  «e  o 
que  vem  da  Pérsia  a  5  azares».  Como  se  vè,  o  ópio  de  Adem  ia  também 
para  a  índia,  quer  por  esta  expressão  se  deva  entender  o  colhido  nas 
proximidades,  quer,  como  parece  mais  racional,  se  deva  entender  o  da 
Ásia  menor  e  do  Egypto,  cujo  commercio  se  fazia  por  aquelle  porto. 

Por  ultimo,  Orta  falia  da  producção  de  ópio  em  Cambaya,  nas  terras 
de  Chitor,  Mandou  a  Malvi.  Já  notámos  (vol.  i,  pag.  268),  que  Chitor  era 
o  nome  dado  pelos  portuguczes  ao  principado  rajpút  de  Udipura,  e 
Mandou  o  que  davam  ao  reino  mussulmano  de  Mahvá,  de  modo,  que  o 
«Mandou»  e  «Malvi»  de  Orta  são  a  mesma  região.  Ainda  hoje  esta  re- 
gião, isto  é,  todo  o  planalto  que  se  estende  para  o  norte  da  cordilheira 
de  Vindhya  até  ás  serras  de  Aravalli,  é  um  dos  principaes  centros  in- 
dianos da  cultura  do  Papaver  e  colheita  do  ópio.  O  dr.  Impey,  que  re- 
sidiu ali  alguns  annos,  dá  uma  minuciosa  descripçao  — transcripta  pelo 
dr.  Dymock —  da  cultura  da  papoula  n"aquellas  terras,  dizendo  que  a 
planta  se  desenvolve  perfeitamente,  e  algumas  das  suas  capsulas  chegam 
a  medir  3  —  pollegadas  de  altura,  por  2  -^  de  diâmetro — ainda  assim  não 
sei  se  levariam  «uma  canada».  Este  ópio  de  Mahvá,  que  vinha  aos  por- 
tos de  Cambaya,  Surrate,  Baroche  e  outros,  valia  em  Hormuz  menos 
que  o  de  Adem,  apenas  4  —  azares  a  mão;  mas  era  o  mais  apreciado  no 
sul  e  no  oriente :  «e  o  de  cambaia  he  o  milhor  pêra  malaqua  e  mala- 
var».  Como  se  vê,  já  então  ia  algum  ópio  indiano  para  Malaca,  e  se- 
guramente d'ali  para  a  China. 


'  A  «ináo>  (hind.  man)  pela  qual  se  pesava  o  ópio  em  Hormuz  equivalia  a  pouco  mais  de 
um  kilo  (1,1212);  e  o  «azar>  valia  iSg  a  140  reaes,  proximamente  em  valor  intrínseco  700  réis 


da  nossa  moeda  actual 


Do  amjiam  179 

Resumindo,  poderemos,  me  parece,  chegar  ás  seguintes  conclusões, 
A  índia  era  na  primeira  metade  do  xvi  século  uma  região  largamente 
consumidora  de  ópio,  por  ser  muito  geral  o  uso  d'esta  droga  — «por 
ser  muyto  usado  em  comer  entre  muytos»,  como  explica  Garcia  da  Orta. 
Na  própria  índia  cultivava-se  a  papoula  e  preparava-se  o  ópio,  já  na 
região  de  Cambaya  e  Malwá,  segundo  o  testemunho  de  Orta,  já  no 
Bengala,  segundo  o  de  Pires.  Esta  producção  de  modo  algum  chegava 
para  o  consumo,  como  se  vê  pelo  facto,  mencionado  por  AíTonso  de  Al- 
buquerque, de  que,  cortada  a  importação,  a  droga  subia  extraordina- 
riamente de  preço.  Os  portos  donde  a  índia  se  abastecia,  eram  Hormuz, 
por  onde  vinha  o  ópio  da  Pérsia,  e  principalmente  Adem,  por  onde 
vinha  o  do  Egypto  e  provavelmente  também  o  da  Ásia  menor.  Final- 
mente passava  já  bastante  ópio  da  índia  para  Malaca,  e  d'ali  naturalmente 
para  a  China;  e  n'este  ópio,  que  em  grande  parte  devia  ser  de  proce- 
dência Occidental,  começava  a  ir  algum  colhido  em  Cambaya. 

E  curiosa  esta  marcha  de  oeste  para  leste  do  consumo,  e,  em  seguida 
ao  consumo,  da  producção:  primeiro  o  Levante,  Egypto  e  Ásia  menor, 
abastecendo  a  índia;  depois  a  índia  abastecendo  a  China;  e  dentro  em 
pouco,  a  China  produzindo  o  sufficiente  para  o  seu  consumo,  e  abas- 
tecendo talvez  de  morphina  a  civilisada  America  e  a  civilisada  Europa. 

(Cf.  Fliick.  e  Hanb.,  Pharmac,  38  a  60;  Dymock,  Mat.  med.,  Sg; 
Albuquerque,  Cartas,  174;  Duarte  Barbosa,  Livro,  262  e  3S3;Thomé 
Pires,  Carta,  Sg;  Lyvro  dos  Pesos,  i3.) 


COLÓQUIO  QUADRAGÉSIMO  SEGUNDO 

DO  PAO  DA  COBRA.  E  HE  DE  TRÊS  MANEIRAS 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 
RUANO 

Aqui  em  vossa  caza  vejo  dar  pêra  os  meninos  huma  raiz 
ou  pao,  e  chamamlhie  pao  da  cobra;  dizem  aproveitar  pêra 
as  lumbrigas.  Peçovos  por  mercê,  que  em  breves  palavras 
me  digaes  o  que  he,  de  que  terra  vem,  e  se  he  abusam  ou 
dito  falso  do  povo,  ou  se  aproveita  pêra  alguma  cousa. 

ORTA 

Nam  he  senão  mezinha  muyto  apropriada  á  peçonha  das 
serpentes  ou  cobras  \  e  disto  ser  esprementado  pêra  as  lum- 
brigas, e  pêra  as  bexiguas,  e  sarampam,  e  pêra  colérica  pasio 
(chamada  nestas  partes  mordexi) ,hQ.  fama  comum  da  gente 
da  terra,  onde  ha  este  pao.  Também  dizem  aproveitar  pêra 
as  febres  de  difícil  medicaçam,  segundo  me  dixe  hum  frade 
de  Sam  Francisquo,  digno  de  fé,  que  a  dera  a  hum  homem 
que  padecia  febres  antiguas;  e  que  lha  dera  duas  vezes, 
moida  e  deitada  em  agoa  em  cantidade  de  huma  onça,  e 
que  ficou  sam,  arrevesando  muyta  cólera;  e  por  aqui  se 
soube  que  aproveitava  ás  febres  antiguas. 

RUANO 

E  como  se  sabe  que  he  bom  pêra  a  mordedura  das  ser- 
pentes? 

ORTA 

Na  fermosa  ilha  de  Ceilam,  ainda  que  seja  chea  de  muitas 
frutas  e  boas,  e  caça  e  montaria,  todavia  ha  muytas  serpen- 
tes, a  que  chama  o  vulgo  cobras  de  capelo;  e  nós  em  latim 
as  podemos  chamar  regulus  serpens;  e  pêra  estas  deu  Deos 
nella  este  pao  da  cobra;  e  soubese  aproveitar  pêra  a  morde- 
dura delia,  porque  ha  nesta  ilha  huns  bichos,  como  forões, 


i82  Colóquio  quadragésimo  segundo 

a  que  chamam  quil  (e  outros  lhe  chamam  çz//rj[?e/eje  pelejam 
com  estas  serpentes  muitas  vezes;  e  se  sabe  que  ha  de  pe- 
lejar com  ella,  ou  se  teme  disso,  morde  hum  pedaço  desta 
raiz  que  está  descuberto,  e  lambese  com  a  mão,  ou  por  mi- 
Ihor  dizer  untase  com  a  mão,  que  tem  molhada  com  o  çu- 
mo,  e  faz  isto  na  cabeça  e  no  corpo,  e  nas  partes  onde  sabe 
que  a  cobra,  com  o  seu  salto,  lhe  ha  de  ir  morder;  e  peleja 
com  ella  até  que  a  mata,  mordendoa  e  arranhandoa;  e  se 
não  acaba  de  a  matar,  ou  ella  tem  mais  força  que  elle,  vaise 
o  bicho  chamado  quil  ou  quirpele,  e  esfregase  na  raiz,  e  torna 
a  pelejar  com  ella,  e  asi  acaba  de  matar  ou  vencer;  e  daqui 
tomaram  ocaziam  os  Chingallas,  e  com  esta  experiência 
viram  que  aproveitaria  esta  raiz  e  pao  para  as  mordeduras 
das  cobras;  e  os  Portuguezes  com  isto  creram  os  bens, 
que  a  gente  desta  terra  lhe  dizia  deste  pao,  e  per  tempo 
viram  algumas  espiriencias  fundadas  em  rezam,  por  onde 
souberam  aproveitar  pêra  a  peçonha;  e  também  souberam, 
e  viram  pollos  seus  olhos  muytos,  esta  pelleja  do  bicho  com 
a  cobra  ser  verdadeira.  E  pêra  dardes  mais  fé  a  isto,  se  vos 
não  enfadardes,  vos  contarei  huma  cousa  que  vio  este  frade 
de  Sam  Francisco,  dino  de  fé  e  virtuoso,  estando  em  Nega- 
patam,  que  he  huma  terra  firme,  perto  desta  ilha  de  Ceilam*. 

RUANO 

Antes  me  fareis  muita  mercê  em  ma  contar. 

ORTA 

Tem  muitos  homens  portuguezes  em  caza  estes  bichos 
domésticos  e  mansos,  pêra  lhe  matarem  os  ratos,  e  pêra 
os  fazer  pelejar  com  as  cobras  de  capello,  que  trazem  os 
jogues  com  que  pedem  á  gente  esmolas.  E  sam  estes  jogues 
huns  gentios,  que  andam  pidindo  per  todas  as  terras,  e 
andam  emfarinhados  com  cinza,  e  sam  venerados  de  todo 


•  Nagapattanam,  na  costa  de  Coromandel,  logo  ao  norte  do  cabo  de 
Calimere,  a  que  os  portuguezes  chamavam  cabo  de  Canhameira. 


Do  pao  da  cobra  i83 

o  povo  gentio,  e  de  alguns  mouros;  e  porque  andam  muytas 
terras,  sabem  muytas  mezinhas  e  esperiencias,  mentirosas 
e  verdadeiras:  e  alguns  exercitam  o  joguo  de  passa  passa, 
e  trazem  estas  cobras,  que  dixe,  e  embebedam  as,  e  mais 
lhe  tiram  os  dentes  e  presas,  porque  lhe  não  façam  mal; 
e  com  isto,  e  com  os  benefícios  que  lhe  fazem,  as  tratam 
com  as  mãos,  e  as  cingem  ao  pescoço,  e  nos  metem  em  ca- 
beça que  sam  encantadas;  mas  eu  o  tenho  por  mentira.  E 
o  cazo  foy,  que  chamou  hum  portuguez  em  Negapatam  a 
hum  jogue,  que  trazia  cobra,  e  dixelhe,  se  queria  pelejar  a 
cobra  com  o  seu  bicho,  e  o  jogue  porque  tinha  tirado  alguns 
dentes,  donde  tinha  a  força,  não  o  quis  fazer  até  que  lhe 
deu  hum  crusado ;  e  veo  o  bicho  pêra  a  batalha  apercebido, 
e  andou  primeiro  metendose  debaixo  dos  asentos,  buscando 
se  cheirava  algum  pao  ou  raiz,  que  fose  do  pao  da  cobra, 
e  não  a  achando,  com  a  sua  própria  saliva  se  molhou,  e 
saio  pêra  pelejar  com  a  cobra ;  a  qual  lhe  saltou  na  cabeça, 
e  o  firio  mal  duas  a  três  vezes,  e  elle  a  ella  outras  tantas, 
até  que  se  apartaram  ambos  mal  feridos,  porém  ella  pior 
que  o  bicho.  E  o  jogue,  achandose  com  o  ganho  da  batalha, 
e  com  a  cobra  viva  (porque  sarou  depois),  trouxe  outra  cobra 
que  não  tinha  os  dentes  tirados,  e  cometeo  ao  portuguez 
se  queria  que  tornasem  á  batalha  os  animaes,  e  porém 
que  lhe  avia  de  dar  mais,  porque  a  sua  cobra  estava  perto 
da  morte,  e  que  por  isso  trazia  outra;  e  o  portuguez  lhe 
deu  outro  tanto  como  antes  lhe  avia  dado,  e  o  jogue  foy 
contente;  porque  a  sua  cobra  vinha  milhor  armada,  e  o  por- 
tuguez com  seu  bicho  apercebido  pêra  a  luta  ou  guerra,  o 
qual  elle  afagou  primeiro,  e  lhe  trouxe  raizes,  e  elle  as  mordeo 
por  hum  pouco  espaço,  e  se  untou  com  a  mão  molhada  no 
que  avia  mordido;  isto  fez  pela  cabeça  e  lombos  e  pella 
barriga;  e  estando  elle  já  apercebido,  veo  o  jogue  com  a 
serpe,  a  qual  se  levantou  em  pé,  casi  do  meo  para  cima, 
e  deu  hum  salto,  e  o  bicho  lhe  furtou  o  corpo,  saltando 
para  outro  cabo,  e  asi  se  fizeram  alguns  cometimentos,  to- 
cando o  bicho  a  cobra  ás  vezes,  e  outras  vezes  sendo  mor- 
dido delia;  finalmente  o  bicho  lhe  saltou  na  cabeça,  e  hum 


184  Colóquio  quadragésimo  segundo 

pouquo  mais  atras  donde  a  mordeo,  e  a  apertou,  e  a  arra- 
nhou de  tal  maneira  que,  por  andar  cansada,  a  matou,  porque 
andava  muyto  emfraquecida  dos  morsos  primeiros;  porque 
he  veneno  o  baíFo  do  bicho  pêra  ella,  e  desta  maneira  foy 
a  cobra  do  jogue  morta,  e  elle  desesperado. 

RUANO 

Certamente  que  foy  isso  muyto,  e  deve  ser  verdade;  pois 
volo  dixe  esse  religioso,  dino  de  fé  e  credito:  e  peçolhe  que 
me  digua  se  ha  este  páo  em  outros  cabos  mais  que  em 
Ceilam,  e  me  descreva  e  pinte  a  feiçam  delle  (i). 

ORTA 

Ha  este  pao  de  três  maneiras  em  Ceilam,  e  chamase, 
este  de  raiz  mais  estimada  que  vos  contei,  em  Ceilam  (terra 
dos  Chingalas)  rannetul*,  e  he  hum  arbusto,  e  crece  até  dous 
palmos  ou  três;  deita  poucas  asteas,  scilicet,  até  4  ou  cinquo, 
e  sam  muyto  delgadas.  E  a  raiz  he  a  que  se  aproveita,  e 
he  delgada  como  a  mais  delgada  vide  nossa,  e  tem  nós  ou 
cabeças,  e  sempre  alguma  raiz  deste  pao  está  de  fora  da 
terra;  e  se  a  mordem  ou  arrancam  per  alguma  parte,  lança 
loguo  outras  raizes,  donde  lhe  tiraram  a  outra.  A  fruta  que 
dá  este  pao  he  como  a  do  sabuguo,  tirando  que  esta  he 
vermelha  e  mais  dura;  nace  em  cachos  redondos,  feitos 
como  madresilva,  e  sam  mais  pequenos  os  grãos  vermelhos, 
e  mais  apertados,  como  dixe;  e  a  frol  que  deita  he  muyto 
vermelha,  e  deita  hum  cacho  redondo,  e  apartado  da  folha, 
que  he  como  de  pexegueiro,  e  o  verde  delia  he  mais  escuro; 
e  a  cor  da  raiz  he  entre  branco  e  pardo,  e  he  muyto  macia 
ao  tocar,  por  não  ser  molle,  e  amargua  muyto.  Ha  este 
pao  em  muitas  partes,  asi  como  em  Goa,  nas  terras  firmes: 
este  se  dá  bebido  em  agoa,  e  moido  primeiro;  e  nós  o  da- 
mos em  vinho  ou  em  alguma  agoa  cordial,  e  faz  muyto  pres- 


*  Clusius  transcreveu  rametul,  e  assim  tem  sido  citado  o  nome  de- 
pois; mas  é  claramente  rannetiiL 


Do  pao  da  cobra  i85 

tes  sua  operaçam:  e  também  se  móe,  como  sândalo,  e  se 
põe  no  lugar  mordido;  este  chamam  boqueti  avale  em  chin- 
galá*,  e  asi  mo  dixe  o  embaixador  (2).  Ha  em  Ceilam  outro 
pao  ou  raiz  contra  a  peçonha  usado,  como  estoutro,  e  he  hum 
arvore  como  romeira,  e  não  maior,  e  as  folhas  sam  ama- 
relas muyto  fermosas;  tem  todo  o  pao  espinhos,  e  os  espi- 
nhos sam  rombos,  e  a  casca  he  branca  e  grossa,  e  gretada 
e  muyto  maciça  e  amarga,  mas  nam  tanto  como  a  do  pri- 
meiro pao.  O  pao  e  a  raiz  e  a  casca  he  o  que  se  dá  tudo 
mesturado,  mas  a  raiz  dizem  ser  a  milhor;  e  este  arvore, 
quando  está  só,  crece  tanto  como  huma  romeira,  e  se  está 
com  outros  arvores  ou  mato,  a  que  se  arrime,  lia  o  todo 
a  modo  de  abobreira,  e  asi  os  ramos  mais  altos  do  arvore 
os  cinge  todos.  Deste  arvore  mandei  ja  a  emfermos  que  fi- 
zesem  copos,  e  estes  emfermos  aviam  sido  tocados  de  peço- 
nha, que  lhe  foy  dada;  e  creo  que  lhes  aproveitara,  porque 
as  cousas  continuadas  aproveitam;  e  já  pode  ser  que  apro- 
veitem estes  vasos  pêra  fazer  a  comprisam  triacal**,  como 
alguns  doutores  nossos  a  emsinão  fazer,  que  he  pêra  lhe  não 
fazer  mal  a  peçonha.  Este  pao  dizem  também  alguns  que 
ha  na  ilha  de  Goa,  mas  eu  ainda  o  não  tenho  esprementado  (3). 
Quando  o  viso  rey  dom  Constantino  foy  a  Jafanapatam,  que 
he  huma  ilha,  que  parte  com  Ceilam  ***,  troxeramlhe  de  pre- 
sente huns  feixes  de  hum  pao  com  suas  raizes,  por  ser  cousa 
muito  estimada  contra  a  peçonha;  e  cheira  esta  raiz  bem, 
e  he  delguada  e  dura  e  preta;  e  destas  raizes  e  pao  dizem 
que  ha  muyta  nestas  terras  firmes  de  Goa.  A  folha  deste 
derradeiro  pao  que  diguo  he  como  lentisco,  he  asi  delguada 
e  comprida,  e  malhada  de  branco  e  pardo,  com  malhas 


#  Boqueti  avale  parece  ser  um  segundo  nome  do  rannetul;  mas 
pôde  também  designar  a  mordedura  ou  ferida. 

**  A  composição  da  triaga  ou  theriaca, 

*»*  Jafnapattam  é  habitualmente  chamada  uma  peninsula,  mas  po- 
dia sem  erro  considerar-se  uma  ilha,  mormente  no  tempo  de  Orta,  em 
que  os  esteiros  divisórios  seriam  mais  pronunciados. 


i86  Colóquio  quadragésimo  segundo 

brancas  e  pretas:  nam  he  verde.  E  os  ramos  sam  delgados, 
e  estendendose  muito  por  terra,  mais  de  quatro  ou  cinquo 
covados;  e  as  foliias  sam  muyto  poucas,  e  os  ramos  poucos 
e  delgados,  que  se  não  podem  sostentar  direitos.  Deste  derra- 
deiro pao  me  deu  conta  o  licenciado  Dimas  Bosque,  pessoa 
de  muito  boas  letras,  e  homem  de  muyta  verdade,  e  de 
muyto  gentil  juizo  nas  curas  que  faz ;  e  pois  mo  elle  gabou, 
e  lá  ouve  tantos  doentes,  elle  o  podia  bem  esprementar,  e 
ao  menos  seivos  dizer  que  me  avia  de  dizer  verdade  (4). 

RUANO 

Dizemme  que  em  as  partes  de  Malaqua  tiram  humas  frei- 
chas  empeçonhentadas,  e  que  ha  huma  raiz  contra  essa  peço- 
nha, muyto  esprementada;  folgaria  de  saber  que  cousa  he. 

ORTA 

Por  ser  o  mato  cheo  de  tigres,  e  a  gente  pouco  curiosa, 
nunqua  me  souberam  dizer  a  feiçam  da  arvore;  e  por  isso 
vos  não  fallo  aqui  nella;  somente  me  dixeram  algumas  pes- 
soas que  delia  vieram,  ser  o  pao  da  cobra  destas  terras,  e 
que  asi  lhe  parecia,  por  serem  as  raizes  de  huma  mesma 
feiçam;  e  tudo  pôde  ser,  mas  não  o  afirmo,  porque  o  nam 
sei  bem  sabido. 


Nota  (i) 

Vários  escriptores  portuguezes  dão  noticias  mais  ou  menos  desen- 
volvidas dos  conhecidos  ascetas,  nómadas  e  mendicantes,  chamados 
por  elles  «jogues»,  do  nome  hind.yo^F,  e  do  sanskr. j^o^m,  derivado  da 
yoga,  um  systema  de  meditação  e  austeridades,  que  se  dizia  conferir 
a  quem  o  praticava  poderes  sobrenaturaes.  Duarte  Barbosa,  attribuin- 
do-lhes  — sem  razão,  segundo  creio —  uma  significação  politica  de 
reacção  hindu  contra  a  usurpação  mahometana,  descreve-os  detida- 
mente, insistindo,  como  Orta,  no  seu  habito  de  andarem  «emfarinha- 
dos  com  cinza»: 

« andaom  nuus  e  descalsos,  nem  trazem  nenhúa  cousa  na  ca- 
beça   hos  corpos  e  rostos  trazem  untados  de  cinza estes  cha- 


Do  pao  da  cobra  187 

maom  Jones  (sic)  e  Coamerques  *  quer  dizer  tanto  como  servidores  de 
Deos». 

Gaspar  Corrêa  menciona  também  o  emprego  habitual  da  cinza,  á 
qual  dá  uma  origem  particular: 

«....andão  sempre  enfarinhados  com  cinza  d'outros  jogues,  que 
morrendo  os  queimão,  e  chegando  a  seus  devotos  lhe  põem  d'aquella 
cinza  na  testa,  e  nos  peitos,  e  nos  hombros.» 

Orta,  que  os  não  toma  muito  a  serio,  diz-nos  que  elles  reuniam  ao 
seu  caracter  religioso,  a  quahdade  de  prestidigitadores.  Encontramos 
esta  noticia  confirmada  pelo  viajante  Bernier,  um  medico  francez,  que 
percorreu  a  índia  pouco  depois  de  i65o,  e  exerceu  a  sua  profissão  nas 
cortes  de  Scháh  Jehan  e  de  Aureng  Zeb.  Segundo  Bernier,  os  jauguis, 
para  demonstrarem  a  sua  sciencia  e  poder,  ou  o  seu  jaiiguisme,  como 
elle  lhe  chama,  adivinhavam  os  pensamentos,  faziam  florir  e  fructificar 
um  ramo  secco  em  menos  de  uma  hora,  chocavam  ovos  no  seio  em 
menos  de  um  quarto  de  hora,  e  executavam  outras  habilidades  da  cu- 
riosa e  mal  explicada  prestidigitação  oriental,  a  que  o  nosso  escriptor 
chama  desdenhosamente  «jogos  de  passa  passa».  Exerciam  também  a 
profissão  de  domadores  ou  incantadores  de  cobras  venenosas,  particu- 
larmente da  cobra  capello  {Naja  tripiidians)^  uma  profissão  muito  vul- 
gar até  hoje,  e  sobre  a  qual  será  desnecessário  insistir.  Unicamente  no- 
tarei, que  estes  domadores  de  cobras  não  eram  desconhecidos  de  outros 
escriptores  portuguezes,  contemporâneos  de  Orta.  Como  diz  Barbosa: 
« muytos  tregeitadores  trazem  estas  (cobras)  vivas  em  pane- 
las, encantadas  que  nam  mordem,  e  cora  ellas  ganhaom  muyto  dinheiro, 
pondoas  ha  ho  pescoço,  mostrandoas.» 

Gaspar  Corrêa,  referindo-se  á  malevolencia  com  que  algumas  cobras 
de  capello  haviam  sido  introduzidas  na  fortaleza  de  Calicut,  conta  como 
o  capitão  as  mandou  buscar  por  homens  da  terra: 

« que  as  sabiam  tomar  sem  ellas  lhe  fazerem  mal,  por  que  le- 

vão  elles  atada  nas  mãos  huma  raiz  de  huma  herva,  que  tem  tal  vertude, 
que  a  cobra  em  a  cheirando  fiqua  douda  sem  picar  nem  bolir  comsigo.» 

Como  se  vê,  Gaspar  Corrêa  attribue  também  a  immunidade  d'estes 
incantadores  de  cobras  ao  emprego  de  certas  plantas,  questão  que  logo 
teremos  de  examinar  mais  detidamente. 

(Cf.  Yule  e  Burnell,  Gíoss.,  35 1;  e  a  citação  de  Bernier,  425;  Duarte 
Barbosa,  Livro,  3io  e  841;  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  i,  65i,  e  11,  776). 

A  menção  dos  jogues  e  das  suas  cobras  vem  no  Colóquio  subsidiaria- 
mente, a  propósito  do  combate  da  cobra  com  um  «bicho»,  e  sobretudo 


'  Ha  aqui  vários  erros  de  imprensa  ou  copia ;  o  nome  em  Ramusio  é  Coames,  e  parece 

que  no  manuscripto  se  deveria  ler :  «Coames,  que  quer  dizer » .  A  palavra  Coames,  ou 

Coames,  pôde  derivar-se  de  stiãmin,  que  em  sanskrito  significa  senhor,  e  por  extensão  um 
servidor  do  senhor  (Cf.  Ramusio,  i,  3o3  verso  ;  Yule  e  Burnell,  Gloss.,  671). 


i88  Colóquio  quadragésimo  segundo 

a  propósito  das  plantas  a  que  esse  bicho  recorria.  Os  «bichos  como 
foróes»  são  fáceis  de  identificar  com  o  bem  conhecido  Hei*pestes 
TMCung-o,  Blandford  {Herpestes  griseus  de  muitos  zoologos,  Viverra 
e  impropriamente  Ichneumon  de  alguns  livros).  Se  a  identificação  d'este 
pequeno  carnívoro  é  fácil  e  não  deixa  duvida  alguma,  a  dos  nomes  que 
Orta  lhe  dá  é  difficil,  e  não  encontrei  cousa  parecida  com  «quil»  ou 
«quirpele».  O  nome  sanskritico  d'este  animal  é  HsfiM,  nakula,  ao  qual 

se  devem  prender  uns  nomes  indianos  modernos,  newal  ou  nyaul,  cita- 
dos por  Yule  e  Burnell ;  por  outro  lado  o  seu  nome  telugu  é  mangísu, 
donde  vem  viongiis  (como  escreve  João  Ribeiro),  o  mwigoose  dos  in- 
glezes,  a  mangouste  dos  francezes  e  outras  formas.  Nada  d'isto  se  pa- 
rece com  «quil»,  e  repito  não  saber  qual  a  origem  dos  nomes  citados 
por  Orta,  sendo  no  emtamto  segura  a  identificação  do  animal,  pois  os 
seus  hábitos  são  perfeitamente  característicos. 

Todos  conhecem  as  menções  clássicas  do  Ichneumon  do  baixo  Egy- 
pto  — uma  espécie  do  mesmo  género  Herpestes —  e  dos  seus  combates 

com  os  áspides,  vivamente  descriptos  por  Plinio : mergit  se  limo 

scepius,  siccatque  sole.  Mox  ubi  pluribus  eodem  modo  se  coriis  loricavit, 
in  dimicationem  pergit.  In  ea  caudam  attolens,  ictus  irritos  aversus  ex- 
cipit,  donec  obliquo  capite  speculatus  invadat  in  fauces. 

Descripção  posta  em  verso  e  ampliada  por  Lucano  na  sua  Pharsalia: 

Aspidas  ut  Pilarias  cauda  solertior  hostis 
Ludit,  et  ir  atas  incerta  provocai  umbra: 
Ohliquus  que  caput 

Do  mesmo  modo  que  o  seu  congénere  do  Egypto,  o  He/pestes  da 
índia  ataca  denodadamente  as  cobras,  tanto  as  inoffensivas,  como  as 
venenosas  e  de  grandes  dimensões.  D'ahi  lhe  veiu  uma  reputação  muito 
antiga,  sendo  o  nakula  mencionado  já,  nada  menos  que  no  Atharva 
Veda  {Dic.  de  S.  Petersburgo,  s.  v.).  E  d'esta  mesma  circumstancia, 
assim  como  de  ser  um  activo  caçador  de  ratos,  resultou  o  facto  de  ter 
sido  domesticado  na  índia,  Ceilão  e  outras  partes  do  Oriente,  desde  tem- 
pos muito  remotos.  Em  uma  fabula  ou  conto  do  Panchatantra  (v,  2),  re- 
petida com  algumas  variantes  de  redacção  no  Hitopadecha  (iv,  i3),  nós 
vemos  um  Brahmane,  deixando  o  seu  filho  entregue  á  guarda  de  um  na- 
kula fiel,  creado  de  pequeno  na  casa.  Estes  hábitos  conservaram-se  até 
ao  tempo  de  Orta,  que  nos  falia  «dos  bichos  domésticos  e  mansos«;  e  até 
ao  de  João  Ribeiro,  que  na  sua  Fatalidade  histórica  nos  conta  o  caso  es- 
cabroso de  um  mongús,  imperfeitamente  domesticado,  embora  dormisse 
na  cama  com  o  dono.  Como  se  vê,  o  Herpestes  da  índia  tem  uma  litte- 
ratura  tão  respeitável  pelo  menos  como  o  do  Egypto,  e  se  o  ultimo  foi 
mencionado  por  Heródoto,  .Eliano  e  Plinio,  o  primeiro  vem  citado  nos 
Vedas,  e  em  mais  de  uma  fabula  do  Panchatantra  e  do  Hitopadecha. 


Do  pao  da  cobra  189 

Do  facto  do  mongiis  ou  nakida  atacar  as  cobras  as  mais  venenosas, 
saindo  muitas  vezes  vencedor  e  incólume  do  combate,  resultou  natu- 
ralmente a  idéa  de  que  elle  possuísse  uma  certa  immunidade,  ou  na 
sua  própria  natureza,  ou  proveniente  do  emprego  de  varias  plantas, 
nas  quaes  procura  uma  espécie  de  preservativo  ou  de  antídoto.  Esta 
idéa  é  muito  antiga,  e  no  Amarakocha  encontramos  citados  vários  sv- 
nonymos  da  planta  ou  das  plantas  que  o  nakula  procura  como  antídoto, 
sendo  alguns  d'esses  synonymos  derivados  do  próprio  nome  do  animal, 
como  TRTtTT  rtãhidl  e  H=ll(Tl'è'l  nakulechta.  É  extremamente  difficil 
saber  a  que  planta  ou  plantas  davam  estes  nomes.  Sir  W.  Jones,  em  um 
interessante  artigo  acerca  de  plantas  indianas,  e  a  propósito  de  uma 
espécie  de  Ophioxylum,  da  qual  teremos  de  fallar  na  seguinte  nota 
mais  largamente,  Sir  W.  Jones  cita  os  nomes  d'aquelle  celebre  voca- 
bulário de  Amarasinha,  mas  sem  se  pronunciar  abertamente  pela  iden- 
tificação. De  resto,  o  Ophioxylon,  como  em  geral  a  botânica  indiana, 
era  mal  conhecido  no  seu  tempo.  Posteriormente  têem-se  citado  varias 
espécies  vegetaes,  pretencentes  a  diversas  famílias,  como  podendo  ser 
aquellas  a  que  recorre  o  mongús;  tem-se  citado  a  Aristolochia  indica, 
a  Rauwolfia  serpentina  {Ophioxylon  serpentinumj,  a  Ophiorrhitja  Mun- 
gos  e  outras;  mas  não  ha  relativamente  a  nenhuma  d'ellas,  nem  a  prova 
de  que  sejam  realmente  activas,  nem  a  prova  de  que  o  animal  as  pro- 


cure. 


Sir  E.  Tennent  cita  o  testemunho  de  uma  pessoa,  que  presenceou 
vários  encontros  do  mongús  com  a  cobra  capello,  e  viu  o  animal  comer 
herva  nos  intervallos  do  combate;  mas  apparentemente  uma  gramínea, 
uma  herva  qualquer,  como  para  se  refrescar.  Blandford  também  não 
crê,  que  elle  procure  uma  ou  mais  plantas  especiaes  como  antídoto  ou 
prophylactico,  assim  como  não  crê,  que  da  sua  constituição  lhe  resulte 
immunidade  em  relação  ao  veneno  da  cobra  capèllo  e  outras.  Segundo 
este  observador,  os  triumphos  frequentes  do  mongús  resultam  da  sua 
pellagem  espessa  e  eriçada,  em  que  os  dentes  da  cobra  penetram  diffi- 
cilmente,  da  dureza  do  seu  couro,  e  sobretudo  da  astúcia  e  destreza 
com  que  evita  o  ataque  da  cobra,  e  aproveita  a  occasião  de  lhe  pegar 
no  toutiço,  inutilisando-lhe  as  presas  venenosas  — d'aquelles  artifícios, 
descriptos  já  por  Plinio  e  Lucano. 

Assim  como  se  tem  attribuido  ao  uso  de  varias  plantas  a  immunidade 
supposta  do  mongús^  assim  se  attribue  a  essas  plantas,  como  já  dizia 
Gaspar  Corrêa,  a  immunidade  também  supposta  dos  domadores  de 
cobras.  É  certo  que  elles  apparentam  usar  de  certas  raizes;  mas  parece 
haver  n'isto  uma  simples  illusão,  ou  um  acto  de  charlatanismo.  O  seu 
principal  meio  de  acção,  quando  lidam  com  cobras  ainda  munidas  das 
presas  venenosas,  como  succede  varias  vezes,  parece  consistir  na  re- 
solução enérgica  e  na  promptidão  dos  movimentos,  que  dominam  com- 
pletamente o  reptil.  Em  todo  o  caso  a  immunidade  não  existe,  e  citam- 


igo  Colóquio  quadragésimo  segundo 

se  vários  casos  de  domadores,  mordidos  pela  cobra  capello,  e  que  suc- 
cumbiram  promptamente  ao  effeito  do  veneno. 

Voltando  a  Orta,  vemos  que  elle  repetia  simplesmente  uma  crença 
commum  e  muito  antiga. 

(Cf.  Blandford,  The  fauna  of  British  índia,  i23,  London,  1888;  Pli- 
nius,  viii,  36,  ed.  Littré;  Lucanus,  Pharsalia,  iv,  v,  729;  Ribeiro,  Fatali- 
dade histórica,  na  CoU.  de  not.,  v,  58;  Amarakocha,  tr.  de  Loiseleur 
Deslongchamps,  i"  partie,  io3,  Paris,  1839;  Sir  W.  Jones,  Botanical 
Obs.y  in  Asiat.  Res.,  iv,  309;  Tennent,  Ceylon,  i,  145  e  197.). 


Nota  (2) 

Do  que  fica  dito  na  nota  anterior,  se  vê  como  naturalmente  se  in- 
dicaram muitas  e  diversas  plantas,  dizendo-se  serem  aquellas  a  que 
o  mongús  e  os  naturaes  da  terra  recorriam  como  prophylacticos  ou 
antidotos,  e  podiam,  portanto,  aproveitar  nos  casos  frequentes  de  mor- 
deduras de  cobras.  Multiplicaram-se,  pois,  os  chamados  jfáoí  da  cobra, 
e  é  muito  difficil  identificar  todos  aquelles  de  que  faliam  os  diversos 
escriptores,  podendo  mesmo  suscitar-se  alguma  duvida  acerca  dos  três, 
mencionados  e  descriptos  por  Orta. 

O  primeiro  e  —segundo  elle  diz —  o  mais  estimado  pode  identifi- 
car-se  com  a  K-aiXTVolíia  serpentina,  Benth.  (Ophioxylon 
serpentinum,  Linn;  Ligustrum  foliis  ad  singula  internodia  ternis,  Bur- 
mann.;  Cleviatis  indica,  Persictv foliis,  fructii  Periclyvieni,  Gaspar  Bau- 
hino?)  uma  pequena  planta,  pertencente  á  familia  das  Apocynacece,  que 
foi  figurada  já  nos  tempos  antigos  por  Rhede,  Rumphius  e  João  Bur- 
manno.  A  descripção  de  Orta,  salvas  uma  ou  duas  notas  menos  con- 
cordes, quadra  bastante  bem  áquella  planta.  Assim,  elle  diz  que  cresce 
até  dous  palmos  ou  três;  e  — segundo  as  diagnoses  de  Hooker —  a 
Ramvolfia  attinge  habitualmente  de  6  a  18  pollegadas,  chegando  exce- 
pcionalmente a  2  ou  3  pés:  diz  que  a  flor  é  «muyto  vermelha»;  e,  com- 
quanto  a  corolla  da  Ramvolfia  seja  superiormente  branca,  os  pedún- 
culos e  tubos  da  corolla  são  intensamente  vermelhos,  de  modo  que  o 
vermelho  é  a  côr  dominante  na  inflorescencia,  sobretudo  na  inflores- 
cencia  nova:  diz  que  deita  «um  cacho  redondo  e  apartado  da  folha»; 
e  a  inflorescencia  da  Ramvolfia  consiste  em  cymos  arredondados  e  lon- 
gamente pedunculados:  compara  a  folha  com  a  do  pecegueiro,  e  o  fru- 
cto  com  o  da  madresilva,  o  que  não  anda  muito  fora  de  propósito,  e 
lembra  a  phrase  de  Bauhino  no  Pinax:  diz,  na  verdade,  que  a  fructa  é 
vermelha,  quando  as  drupas  da  Rauwolfia  são  negras,  mas  n'isto  pode 
haver  um  engano,  ou  uma  má  apreciação  do  tom  roxo  denegrido.  Em 
resumo,  e  quanto  podemos  julgar  por  uma  diagnose,  feita  nos  meados 
do  XVI  século,  o  primeiro  jpao  da  cobra  deve  ser  a  Ramvolfia  serpentina. 


Do  pao  da  cobiça  ini 

Aos  motivos  de  identificação,  que  resultam  da  curta  descripçao  de 
Orta,  acrescem  outros  de  diversa  natureza.  Esta  planta  foi  uma  das 
mais  celebradas,  ou  a  mais  celebrada  na  índia,  como  antídoto  supposto 
ou  verdadeiro  nos  casos  de  mordeduras  de  cobras.  Parece  ser  a  planta, 
ou  uma  das  plantas  mencionadas  na  passagem  do  Amarakocha,  que 
citámos  na  nota  antecedente;  e  uma  circumstancia  —ainda  não  apon- 
tada que  eu  saiba—  vem  em  apoio  d'esta  identificação.  Um  dos  nove 
synonymos  do  Amarakocha,  ^^WT,  chatrãkt,  significa  umbella,  ou 
cousa  em  forma  de  umbella,  e  podia  muito  bem  applicar-se  ao  cymo 
denso  e  achatado  da  Rauwolfia.  Passando  aos  botânicos  posteriores  a 
Orta,  temos  Rhede,  que  falia  d'esta  planta,  sob  o  nome  malabar  tsjo- 
vanna  amelpodi,  diz  que  os  portuguezes  lhe  chamavam  talona,  e  affirma 
que  a  raiz  tinha  a  reputação  de  ser  um  remédio  soberano  contra  mor- 
deduras de  cobras  e  picadas  de  lacraus:  temos  Rumphius,  dando-lhe 
o  nome  latino  radix  mustela^,  e  o  nome  portuguez  raz^  de  mongo,  iden- 
tificando-a  assim  com  a  planta  do  mongús:  temos  também  Burmanno, 
identificando-a  explicitamente  com  o  Lignum  colubrimm  primurn  et 
laudatissimimi  Garpa^  ab  Horto.  Tudo  isto,  junto  naturalmente  á  con- 
cordância de  caracteres,  nos  leva  a  uma  identificação  bastante  segura. 

O  nome  vulgar  d'esta  planta  é,  segundo  Orta,  «rannetul«,  que  foi 
por  engano  transcripto  rametul  na  versão  latina  de  Clusius,  e  depois 
todos  citaram  na  ultima  forma.  Nem  na  primeira,  nem  na  ultima  forma 
se  encontra;  e  já  o  antigo  botânico  Hermanno,  nos  rótulos  do  seu  her- 
bario,  notava  que  a  planta  se  chamava  vulgarmente  em  Ceylão  acawe- 
rya  ou  akawerya,  e  elle^  não  sabia  por  que  motivo  Orta  havia  dito  que 
lhe  chamavam  rametul.  É  claro  que  esta  troca  de  nome  vulgar  de  modo 
algum  pôde  lançar  uma  duvida  sobre  a  identificação,  que  me  parece 
segura  (Cf  Hooker,  Flora  of  British  índia,  ui,  632;  Rhede,  Hort.  ína- 
labaricus,  vi,  t.  47;  Rumphius,  Herb.  Amb.wi^  Aucluavmm,  29;  J.  Bur- 
manni.  Thesaurus  Zeylanicus,  141,  t.  64,  Amsteleedami,  1787;  Ainslie, 
Mat.  Ind.,  11,  441;  Dymock.,  Mat.  med.,  5o5.). 


Nota  (3) 

A  identificação  d'este  segundo /'ao  da  cobra  é  um  pouco  mais  incerta- 
parece,  no  emtanto,  que  Orta  quiz  fallar  da  Sti-ychiios  coUi- 
l>i*iiia,,  Linn.,  uma  planta  lenhosa  da  família  das  Loganiacea;  que 
passou  sempre  por  ser  a  origem  da  maior  parte  do  pão  de  cobra  do 
commercio,  e  Rhede  figurou  e  descreveu  sob  o  nome  malabar  viodira 
caniram,  e  o  nome  portuguez  páo  da  cobra. 

O  que  Orta  nos  diz  do  porte  da  sua  planta,  comprehende-se  bem, 
poisque  a  S.  colubrina,  sendo  uma  espécie  lenhosa  e  sarmentosa,  pode 
formar  uma  arvore  pequena  quando  esteja  isolada  de  qualquer  supporte. 


ig2  Colóquio  quadragésimo  segundo' 

e  desenvolver-se  mais  largamente,  como  todas  as  plantas  trepadeiras, 
quando  se  enleia  em  outras  arvores.  Também  os  caracteres  da  casca 
não  desdizem  da  S.  colubrina,  cuja  casca  é  esbranquiçada  (ash  colour- 
ed,  diz  Roxburgh)  e  bastante  espessa  e  gretada,  havendo  no  género 
Strychnos  um  desenvolvimento  considerável  da  camada  suberosa.  É 
também  muito  amarga  esta  casca,  como  é  a  da  Strychnos  Nux-vomica 
e  de  outras  Lxtganiacece.  Comprehende-se  menos  o  que  Orta  quer  dizer, 
quando  falia  de  «folhas  amarellas  muyto  fermosas»;  e  suscita  sobretudo 
difficuldades  a  sua  referencia  aos  espinhos,  pois  a  S.  colubrina  é  iner- 
me. Elle  usa,  porém,  de  uma  expressão  um  tanto  enygmatica,  dizendo 
que  os  espinhos  são  «rombos*».  Talvez  por  esta  expressão  elle  quizesse 
designar  os  cirrhos  simples  e  incurvados  da  S.  colubrina,  que  nos  cau- 
les mais  antigos  engrossam  e  se  tornam  lenhosos. 

Ha  outra  espécie  do  mesmo  género,  espontânea  no  Malabar  e  Ceylão, 
Strychnos  ininor,  Blume,  a  que  Orta  se  podia  também  referir;  mas 
a  difficuldade  resultante  da  menção  dos  espinhos  subsistiria,  porque 
a  S.  minor  é  também  inerme.  Em  resumo,  parece  claro  que  Orta  falia 
de  uma  espécie  de  Strychnos,  e  muito  provavelmente  da  5.  colubrina, 
que  foi  geralmente  chamada  páo  da  cobra,  e  teve  uma  grande  reputa- 
ção nas  applicações  a  mordeduras  de  cobras  venenosas,  e  outros  «to- 
ques de  peçonha» — como  diz  o  nosso  escriptor. 

(Cf.  De  CandoUe,  Prodromus,  ix,  14;  Roxburgh,  Fl.  Indica,  i,  577; 
Herail  e  Bonnet,  Manip.  de  Botanique  médicale,  1. 14,  Paris,  1891;  Rhede, 
Hort.  malabaricus,  viu,  t.  24  para  a  Strichnos  colubrina,  e  vn,  t.  5,  para 
a  S.  minor;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  11,  202 ;  Dymock,  Mat.  med.,  533,  adver- 
tindo que  a  citação  de  Rhede  vem  errada,  tanto  em  Ainslie  como  em 
Dymock.) 

Nota  (4) 

O  terceiro  páo  da  cobra  de  Orta  deve  ser  o  Heiiiid.esiiiiis 

inclicTis,  R.  Brown  [Periploca  íni/Cír,  Willd.,  Asclepias pseudosarsa, 
Roxb.),  uma  pequena  planta  trepadeira,  da  familia  das  Asclepiadece, 
que  habita  na  índia  e  em  Ceylão. 

O  professor  Fliickiger  e  o  fallecido  Daniel  Hanbury  chamaram,  em 
uma  nota  da  Pharmacographia,  a  attenção  para  a  similhança  das  raizes 
de  Hemidesmus  com  uma  droga,  figurada  e  descripta  por  Acosta  sob 
o  nome  de  Paio  de  Culebra;  e  eu  julgo  que  o  terceiro  fáo  da  cobra  de 
Orta  é  idêntico  a  este  paio  de  culebra  de  Acosta  e  ao  Hemidesmus  in- 
dicus,  identificação  que  assenta  sobre  os  caracteres  apontados  por  Orta. 


'  A  versão  de  Clusius  não  é  exacta;  spinis  brevibus  et  Jirmis  não  traduz  os  problemá- 
ticos tespinhos  rombos>. 


Do  pao  da  cob?^a  193 

Diz  o  nosso  escriptor,  que  a  raiz  d'este  seu  páo  de  cobra  é  delgada, 
dura,  preta  e  cheira  bem :  segundo  a  Pharmacographia,  as  raizes  do 
H.  indicas  são  delgadas,  de  —  a  -^  de  poUegada  de  espessura,  tem  a 
côr  escura  fdark  bronm)  e  um  cheiro  agradável,  similhante  ao  arfava  de 
Tonka  ou  do  meliloto.  Diz  ainda  Orta,  que  as  hastes  da  planta  são  del- 
gadas, débeis  «que  se  não  podem  sustentar  direitas»;  e  as  folhas,  com- 
pridas e  delgadas,  como  as  do  lentisco,  e  malhadas  de  branco  e  pardo; 
segundo  Roxburgh,  os  caules  da  Asclepias  pseudosarsa  (H.  indicus)  são 
delgados  (slender),  diffusos  ou  trepadores;  e  as  folhas  dos  rebentos  no- 
vos são  lineares,  agudas,  estriadas  de  branco  ao  longo  da  parte  media. 
Se  abstrahirmos  de  algumas  incertezas  de  expressão,  naluraes  em  uma 
descripção  do  tempo  de  Orta,  vemos  que  a  concordância  de  caracteres 
é  absolutamente  satisfactoria. 

As  raizes  de  Hemidesmus  são  muito  usadas  na  medicina  hindu,  ad- 
mittidas  otiicialmente  na  Pharmacopéa  da  índia,  e  tidas  na  conta  de 
tónicas,  alterantes,  diuréticas  e  diaphoreticas.  Não  admira,  pois,  que 
fossem  consideradas  especialmente  úteis  em  toda  a  mordedura  de  cule- 
bras,  assim  como  em  tercianas,  desinayos, /laqueias  de  estômago, y  tem- 
blores  de  coraçon.  Segundo  Acosta,  bastava  trazer  uma  d'estas  raizes  na 
mão  para  estar  seguro  contra  toda  a  culebra  ou  bivora,  que  fugia  para 
outra  parte. 

Em  Goa  — segundo  refere  Dymock —  encontram-se  hoje  á  venda 
nas  lojas  dos  hervanarios  as  raizes  de  Hemidesmus,  sob  o  nome  de  uper. 
ção,  que  é  uma  simples  alteração  do  nome  mahrata  uparsára. 

(Cf.  Fliick.  e  Hanb.,  Pharmac,  379;  C.  Acosta,  Tractado  de  las  dro- 
gas, 341;  Roxburgh,  Fl.  Indica,  11,  3g;  Dymock,  Mat.  med.,  509). 


i3 


COLÓQUIO  QUADRAGÉSIMO  TERCEIRO 

DA  PEDRA  DIAMÃO 
E  DA  PEDRA  ARMÉNIA  E  DA  PEDRA  DE  CEVAR 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA,  SERVA 

RUANO 

Dizei  da  pedra  diamão,  que  em  latim  e  em  grego  he  cha- 
mada adamans,  e  nós  os  Castelhanos  lhe  chamamos  dia- 
mante, e  vós  os  Portuguezes  diamam;  e  será  bem,  porque 
he  rey  das  pedras,  que  falemos  nella,  pois  tem  eminência 
sobre  todas,  e  loguo  as  pey^olas,  e  logúo  as  esmeraldas,  e 
loguo  os  robins,  se  cremos  a  Plinio*. 

ORTA 

Qua  nesta  terra  e  em  toda  a  do  mundo,  ácerqua  dos  la- 
pidairos,  se  faz  mais  caso  (e  'he  de  mais  preço  se  for  em 
toda  perfeiçam,  e  tamanho  por  tamanho)  da  esmeralda,  e 
depois  do  robi,  e  loguo  do  diamão;  mas  porque  se  não  acham 
pedras  em  toda  a  perfeiçam,  com  boas  agoas,  tam  grandes 
como  diamam,  acontece  daremse  por  mais  dinheiro  muytas 
vezes.  E  a  valia  das  pedras  nam  he  por  mais  que  por  a  von- 
tade da  gente  e  carência  delias;  porque  maiores  virtudes 
e  mais  esprementadas  tem  a  pedra  de  cevar,  e  a  que  estanca 
o  sangue,'*  e  vendemse  por  mãos***  (que  sam  em  Cam- 


*  Esta  successão,  pelo  menos  a  dos  diamantes,  pérolas  e  esmeraldas 
vem  muito  claramente  exposta  em  Plinio  (Lib.  xxxvu). 

*»  A  laqueca  ou  cornelina;  veja-se  a  nota  ao  Colóquio  seguinte. 

»•»  «Mão«,  do  hind.  e  marathi  man,  que  dizem  ligar-se  ao  accadico 
mana;  variava  muito,  mas  em  «Cambaia»,  pelo  menos  em  Baçaim  e 
Diu,  andava  por  iS  arráteis  e  9  onças,  ou  proximamente  os  26  arráteis 
de  Orta.  O  maund  (forma  inglezaj  de  Bombaym  equivale  a  28  libras 
avoirdupois. 


196  Colóquio  quadragésimo  terceiro 

baia,  donde  as  ha,  26  arrates),  e  as  esmeraldas  se  vendem 
por  ratis,  que  sam  peso  de  três  grãos  de  triguo*^  e  as  outras 
pedras  se  vendem  por  quilates  em  Europa,  que  sam  quatro 
grãos,  e  na  índia  por  mangelis,  que  sam  5  grãos**;  e  portanto 
Plinio  nam  falou  como  mercador  de  pedras  ou  lapidairo, 
no  valor  delias. 

RUANO 

Dizei  os  nomes,  e  se  he  usada  na  física. 

ORTA 

Em  arábio,  ao  qual  emitam  os  Mouros  todos  onde  quer 
que  estam,  se  chama  alma:[,  posto  que  Serapio  o  chama 
por  outro  nome,  capitulo  391,  e  o  gentio  todo,  onde  se  acha 
a  nacença  destas  pedras,  as  chama  iraa,  e  no  Malaio,  onde 
também  as  ha,  se  chama  itam.  E  quanto  he  á  física,  nam 
se  custuma  usar  destes  diajiiães,  posto  que  eu  achei  físicos 
gentios,  que  os  davam  pêra  quebrar  a  pedra,  administrados 
per  seringa-,  e  per  cima  nam  os  dando,  porque  caio  hum  erro 
no  povo  que  era  peçonha,  isto  por  sua  grande  penetraçam, 
e  que  furava  as  tripas. 

RUANO 

E  não  he  isso  asi?  Pois  Laguna  com  outros  muytos  os  conta 
por  peçonha,  e  o  uso  comum  asi  o  tem? 

ORTA 

Falando  a  verdade  comvosquo  não  ha  tal  cousa,  porque 
já  ouve  nestas  terras  negros  de  lapidairos,  que  enguliram 


*  O  rata  era  o  peso  médio  da  semente  de  Abrus  precatorius;  Taver- 
nier  dá  o  rati  como  equivalendo  a  -^-  do  quilate,  o  que  differe  um  pouco 
do  que  Orta  diz.  Nos  livros  inglezes  encontramos  o  ratti,  como  igual 
a  1,75  grãos  troy. 

*  *  O  mangelim,  teling.  manjall,  também  variava  bastante.  O  de  Cey- 
lão  equivalia  a  8  gráos  de  arroz,  e  vem  calculado  nos  Subsídios  em 
o>""-,2i9.  O  viangiar  (mangelimj  do  Malabar,  segundo  Barbosa,  pesava 
duas  taras  e  dois  terços,  e  as  duas  taras  equivaliam  a  um  quilate  de 
bom  peso.  Segundo  Tavernier,  em  algumas  localidades  correspondia  a 
7  grãos,  e  em  Goa  a  5,  exactamente  o  que  diz  Orta. 


Da  pedra  diamão  197 

diamães,  e  confesaráo  a  seu  senhor  (achandoos  menos)  que 
os  emguliram,  e  esperou,  e  deitou  os  diamães  por  baixo 
sem  nenhum  dano,  e  disto  sam  eu  testemunha. 

RUANO 

A  mim  dizemme,  que  feito  em  pó  he  veneno,  e  traz  re- 
zam, porque  se  achegará  ás  partes  do  estamago  e  das  tripas, 
e  furálashá. 

ORTA 

Não  será  em  pó  veneno,  porque  a  vertude  atrativa  das 
partes  do  estamago  não  o  trará  pêra  si,  e  elle  correrá  abaixo, 
como  cousa  grave  (pois  he  pedra);  e  mais  eu  conheci  huma 
molher,  que,  tendo  o  marido  enfermo  de  humas  camarás 
antiguas,  e  avorecendolhe  mm^to  a  doença  comprida,  lhe 
mandou  comprar  diamães  moidos,  e  lhos  deu  tantos  dias 
(sem  morrer)  que  se  emfadou;  e  depois  lhos  deixou  de  dar, 
porque  lhe  certificaram,  que  não  podia  escapar  da  emfer- 
midade,  e  asi,  sem  os  tomar  mais  dias,  morreo  muvto  tempo 
depois:  isto  soube  eu  da  pessoa  que  hia  a  comprar  os  dia- 
mães. Asi  que  dizem  que  os  diariíães  sam  venenosos  he  abu- 
sam, e  cousa  não  scrita  per  doutores  autênticos. 

RUANO 

Pois  aguora  vos  quero  perguntar  alguns  erros,  e  isto  será 
dizendovos  o  que  os  antiguos  dixeram,  em  que  tenho  alguma 
duvida:  dizem  nacer  nas  mineiras  do  cristal,  e  posto  que 
naça  perto  da  mineira  do  ferro,  por  ser  cheguado  ao  cristal 
nam  o  deixa  ter  cor  do  ferro,  antes  he  mais  craro  que  o 
cristal:  e  dizem  mais  que  adamajis  quer  dizer  força  não 
domavel:  e  asi  dizem  que  posto  em  huma  bigorna,  nem 
pode  ser  quebrado  com  força  de  martelos,  antes  os  despreza, 
e  bota  a  escama  do  ferro  fora:  e  porém  que,  se  for  deitado 
o  diamam  primeiro  em  sangue  de  bode,  amolece,  principal- 
mente, como  alguns  dizem,  se  o  bode  primeiro  comer  aipo 
e  outras  cousas  abridoras,  e  se  beber  vinho:  dizem  mais 
que,  desta  maneira  se  lavra,  c  doutra  maneira  não:  e  asi 
dizem  que  nunqua  se  achou  maior  que  huma  avelan.  E  por- 


igS  Colóquio  quadragésimo  terceiro 

que  nam  diguais  que  vos  aleguo  falso,  diz  Plinio,  quando 
falia  no  sangue  de  bode,  que  he  emvençam  do  homem;  c 
alguns  dizem  que  Plinio  está  corruto,  e  que  ade  dizer  que 
he  emvençam  não  de  homem,  como  se  dixese,  que  isto  do 
sangue  do  bode  aconteceo  por  revelaçam,  porque  doutra 
maneira  nam  se  podia  saber*. 

ORTA 

Não  paseis  mais  avante;  porque  nam  tenho  memoria  pêra 
responder  a  tantas  objeições,  polias  não  chamar  fabulas. 
E  por  tanto  aveis  de  saber  que  em  três  ou  quatro  cabos 
achamos  qua  diamães,  scilicet,  em  Bisnaguer,  em  duas  ou 
três  rocas  que  rendem  muyto  a  elre}^  de  Bisnaguer;  e  asi 
corrio  em  Espanha,  dos  atuns  que  se  pesquam  tem  elrey 
grandes  direitos,  e  se  vem  algum  solho  he  tomado  pêra  elrey, 
assi  nestas  mineiras  tetn  elrey  muito  grande  renda,  e  a  pe- 
dra, que  he  de  3o  mangelis  pêra  riba,  he  de  elrey;  e  sobre 
isso  se  põem  grandes  guardas  em  os  cavadores;  e  se  acham 
em  algum  tempo  que  a  tem  alguma  pessoa,  he  tomada  com 
toda  a  sua  fazenda  a  quem  a  tem.  Ha  outra  roca  no  Decam, 
perto  da  terra  do  Imadixa  (a  quem  nós  chamamos  Madre- 
maluco),  huma  terra  de  hum  senhor  gentio,  outra  roca,  e  de 
milhores  diamães,  e  não  tam  grandes;  estes  sam  chamados 
de  roca  velha,  e  vamse  a  vender  a  huma  feira,  muyto  no- 
meada, de  huma  cidade  do  Decam  chamada  Lispor,  das 
terras  do  Madremaluco;  e  ali  os  compram  os  Guzarates,  que 
noUos  vem  a  vender  aqui  a  Goa,  e  os  levam  a  vender  a  Bis- 
naguer, onde  tem  muyto  preço  estes  diamães  de  roca  i'e- 
Iha,  em  especial  os  que  chamam  naifes**^  que  sam  aquelles 


*  Não  se  percebe  bem  o  que  Orta  discute;  Plinio  diz  exactamente  no 
fim  o  que  elle  repete :  numimim  projecto  miineris  talis  inventio  omnis 
est;  veja-se  a  nota  (i). 

»*  A  palavra  não  se  encontra  em  Bluteau,  e  vem  nos  diccionarios 
hespanhoes  e  alguns  portuguezes,  com  a  significação  geral  de  diamante 
bruto.  Isto  é  um  erro ;  diamante  naife  era  unicamente  o  diamante  bruto, 
manifestando  claramente  a  sua  forma  crystallina.  E  o  que  se  deprehcndc 


Da  pedra  diamão  199 

que  a  naturaleza  lavrou,  e  fez  perfeitos  sem  hirem  á  mó, 
posto  que  acerca  dos  Portuguezes  valham  mais  os  lavrados^ 
mas  dizem  os  Canaras  que,  asi  como  a  molher  virgem  vai 
mais  que  a  corruta,  asi  vai  mais  o  diamarn  naife  que  o  la- 
vrado. Ha  outra  roca,  no  estreito  de  Tanjampur,  nas  ban- 
das de  Malaqua,  também  de  roca  velha;  sam  pequenos  e 
muyto  bons,  senam  que  tem  huma  tacha,  que  pesam  muyto; 
cousa  que  não  he  boa  pêra  quem  comprar,  e  he  bom  pêra 
quem  vender.  E  em  nenhuma  destas  partes  ha  cristal,  nem 
em  toda  a  índia;  porque  o  cristal  quer  terras  muyto  frias, 
asi  como  Alemanha-,  e  porém  qua  na  índia  ha  berilo,  que 
he  asi  como  cristal,  e  o  ha  em  grandes  pedaços,  de  que 
fazem  jarros  e  escudellas;  e  eu  dava  por  hum  200  crusados, 
e  não  mo  quiseram  dar:  porém  este  berilo  não  no  ha  em 
Bisnaguer,  senão  em  poucas  partes  e  longe  das  roquas;  mas 
ha  muyto  deste  berilo  em  Cambaia  e  em  Martavam  e  cm 
Pegu;  per  onde  he  mercadoria  muito  boa  os  diamães,  poUos 
lá  nam  aver;  e  asi  ha  berilo  em  Ceilam  (onde  não  ha  dia- 
mães). E  ao  que  dizeis,  que  he  tam  forte  que  despreza  a 
bigorna  de  ferro,  e  os  martellos"  que  os  quebra,  a  isto  vos 
diguo  que,  se  tiverdes  algum  diamam  de  preço,  não  façais 
nelle  tal  experiência,  porque  quantos  tiverdes  tantos  fareis 
em  pedaços  com  hum  martello;  e  muyto  facilmente  se  que- 
bram com  huma  mão  de  almofariz,  e  asi  os  fazem  em  pó 
pêra  lavrar  os  outros,  e  eu  vi  isto  em  diamães  pequenos; 
e  em  hum  grande  o  fizeram  aqui  lapidairos,  do  qual,  per 
sua  má  feiçam,  quiseram  fazer  dous  ou  três,  e  asi  o  que- 
braram. Verdade  he  que  os  diamães  não  podem  ser  lavrados 
senão  com  outros  diamães  postos  na  roda;  e  não  se  podem 
furar,  posto  que  hum  doutor  moderno  diga  que  si.  A  maneira 
de  conhecer  os  diamães,  se  he  diamam  ou  nam,  he  toqualo 
com  outra  ponta  de  diamam,  ou  com  huma  lasqua,  e  se 
nam  for  diamam,  fazlhe  risquo;  posto  que  ha  outros  diamães 


do  que  Orta  diz,  e  é  n'este  sentido  que  os  lapidados  francezes  applicam 
a  designação  de  pointc  naive.  Tanto  nai/c  como  naive  vem  evidente- 
mente de  nativas. 


200  Colóquio  quadragésimo  terceiro 

tam  fortes,  que  ferem  o  outro  diamam,  mas  isto  he  resva- 
lando, e  nam  firmando  nelle;  porque  diariiam  nam  consente 
ser  verrumado,  nem  picado,  nem  o  foguo  lhe  faz  nojo.  E 
comtudo  vos  sei  dizer  que  o  diamam  he  muito  conhecido 
dos  lapidairos,  porque  dizem  que  tem  agua  viva;  e  o  topázio 
e  a  safira  de  agua  e  o  cristal  tem  as  aguas  mortas.  E  de 
amolecerse  com  sangue  de  bode  fo}''  huma  fabula  tomada 
em  verem  que  o  sangue  de  bode  quebra  a  pedra  da  bixi- 
gua  e  dos  rins;  mas  )á  o  esprementei,  e  he  tanto  como  se 
lhe  não  deitasse  cousa  alguma.  E  ao  que  dizeis  que  ne- 
nhum he  maior  que  huma  avelan,  nisto  não  tem  culpa  Pli- 
nio,  nem  os  outros  escritores;  porque  falaram  do  que  viram, 
que  mu3'to  maior  diamam  ha  cá  que  quatro  avelans ;  e  eu  o 
maior  que  vi  nesta  terra  foy  de  loo  e  corenta  maugclis*,  e 
outro  de  120;  e  ouvi  dizer  que  tinha  hum  homem  desta 
terra  hum  de  260  mangelis.  Se  o  tem,  façalhe  muyto  boa 
pró,  posto  que  elle  o  nega;  mas  mu3'tos  annos  ha  que  ouvi 
dizer  a  hum  homem,  dino  de  fé,  que  vira  em  Bisnaguer 
hum,  como  hum  ovo  pequeno  de  galinha;  e  tudo  pode  ser. 
E  do  que  mais  me  maravilho,  he  ver  que  cousa  tam  forte 
avia  de  estar  metida  muyto  dentro  na  mineira,  e  aviase  de 
criar  em  mu3tos  annos,  e  vejo  que  se  criam  em  dous  ou 
três  annos;  porque  cavam  a  mineira  este  anno  altura  de 
hum  covado  de  medir,  e  dahi  a  dous  annos  tornam  a  cavala, 
e  tiram  diamães,  como  primeiro:  isto  dizem  muytas  pessoas 
em  comum,  porém  outros  me  dixeram  que  os  diamães  gran- 
des não  se  criam  na  face  da  roca,  senam  muyto  dentro; 
porém  asaz  he  que  aja  nisto  duvida,  e  que  se  criem  em  tam 
pouquo  tempo  alguns,  ainda  que  sejam  pequenos.  E  ao  que 
rrje  dizeis  de  ser  vencido  do  chumbo  por  causa  do  azougue, 
não  traz  rezam,  porque  pois  o  diamam  vence  o  ferro,  e  a 
todolos  outros  metaes  e  pedras,  não  he  bem  dizer,  que  he 
vencido  do  chumbo,  por  causa  do  azougue;  porque  asi  o 


*  Sic,  isto  é  140,  proximamente  170  quilates;  e  25o  mangelis,  pro- 
ximamente 3 12  quilates. 


Da  pedra  diamão  201 

corta  o  diamam,  como  huma  faca  corta  hum  nabo,  e  quem 
o  escreveo  o  sonhou,  ou,  por  falar  mais  craro,  não  falou  o  que 
era.  Eu  vos  dixe  já  a  resposta  das  vossas  perguntas,  per- 
guntai mais  avante  as  duvidas  que  tiverdes;  e  se  vos  pare- 
cerem mal  as  minhas  respostas,  não  vos  maravilheis,  porque 
quem  falia  contra  o  comum  he  avorrecido, 

RUANO 

Escreve  hum  coronista,  chamado  Francisco  de  Tâmara, 
que  ha  diamães  no  Peru:  dizei  o  que  nisto  passa. 

ORTA 

Eu  nunqua  o  ouvi  dizer  a  pessoas  que  os  vissem  no  Peru, 
vós  o  podeis  milhor  saber,  pois  estaes  em  Espanha.  E  porém 
eu  vi  nesse  autor  que  alegaes,  muitas  fabulas  ácerqua  do 
tirar  dos  diamães  destas  nossas  terras,  porque  diz  que  vigiam 
as  serpentes  os  diamães,  porque  os  não  tirem;  e  a  gente 
que  ha  os  diamães  em  sua  mão  deitando  carne  confeiçoada 
em  certo  modo  pêra  que  a  comão  as  serpentes,  estando  ellas 
em  outro  cabo  tiram  as  pedras  á  sua  vontade.  Bem  fora 
que  pois  Francisco  de  Tâmara  queria  contar  fabulas,  que 
as  contara  das  suas  índias,  e  não  das  nossas*. 

RUANO 

Também  escreve  hum  frade  dominico,  chamado  frei  Do- 
mingos de  Baltanas,  que  ha  roca  de  diamães  em  Espanha**. 

ORTA 

Eu  conheci  esse  frade  em  Salamanca,  segundo  me  parece, 
e  tenhoo  por  bom  religioso;  diria  o  que  achou  escrito  por 
outros,  porém  eu  nunca  o  ouvi  dizer. 


*  Sobre  Francisco  de  Tâmara,  e  o  livro  que  traduziu,  veja-se  a  no- 
ta (i). 

*  *  Provavelmente  no  seu  Compendio  de  sentencias  tiiorales,  y  de 
algunas  cosas  notables  de  Espana. 


202  Colóquio  quadragésimo  terceiro 

RUANO 

Outro  gcnero  de  diamães  contam  que  ha  na  Arábia,  que 
nam  he  tam  forte;  porque  se  quebra  sem  sangue  de  bode; 
e  que  nam  tem  igual  resplandor  a  este  e,  asi  he  de  menor 
preço. 

ORTA 

Eu  nunqua  vi  nem  ouvi  dizer  destas  pedras  criadas  na 
Arábia,  mas  cá  ha  huns  a  que  chamamos  topa-{ios,  que  sam 
almecigados  em  cor,  e  humas  çafíras  de  agiioa  que  parecem 
craramente  diamães;  mas  nam  ouvi  dizer  que  estes  ouvessem 
na  Arábia;  e  mais  estes  nam  sam  diamães,  senam  chamam- 
Iho  polia  semelhança  que  com  elles  tem;  mas  o  que  nam 
tem  a  fortaleza  indomável  nam  he  diamam,  e  o  que  dizem 
que  seria  em  Chipre,  não  o  vi,  nem  ouvi  que  o  lá  ouvesse, 
nem  o  de  Macedónia;  e  pareceme  que  os  Turcos  nam  fa- 
riam tanto  por  elles,  se  em  sua  terra  os  ouvesse,  ou  perto 
delia:  isto  vos  diguo  porque  a  maior  parte  destes  diamães 
sam  levados  dos  Turcos. 

RUANO 

Dizem  mais  que  todos  trazem  o  ferro,  e  o  de  que  me 
mais  maravilho,  he  que  dizem  que  a  pedra  de  ceifar,  estando 
presente  o  diamam,  nam  traz  o  ferro. 

ORTA 

Isso  de  trazer  o  diamão  o  ferro,  loguo  vereis  o  contrario, 
quando  o  esprementar  quiserdes ;  mas  que  a  pedra  de  cevar 
nam  tragua  o  ferro,  presente  o  diamam,  he  grande  fingi- 
mento, porque  diante  de  muytos  esprementei  o  contrario, 
asi  em  diamães  de  roca  velha,  como  de  roca  nova,  e  diante 
de  vós  o  esprementarei  se  mandardes.  E  das  outras  vertudes 
que  delle  escrevem,  nam  he  fora  de  rezam  serem  verdadei- 
ras; porque  pedra  que  Deos  criou,  com  ser  tam  invencível, 
he  bem  que  lhe  dê  os  dotes  que  dizem;  posto  que  dizer 
que  se  se  puser  debaixo  da  cabeça  da  molher,  nam  o  sa- 
bendo, e  estando  dormindo,  que  acordando  ella  abraçará 
o  marido,  se  lhe  he  fiel,  e  se  he  o  contrario,  que  foge  delle; 
eu  não  o  posso  crer,  ainda  que  me  digam  que  o  dizem  es- 


Da  pedra  diamão  2o3 

critores  de  autoridade,  porque  asi  o  dizem  de  algumas  er- 
vas, e  sabemos  ser  abusam.  Mas  huma  cousa  vos  direi  que 
vi  em  diamães  muyto  finos  da  roca  velha,  e  eram  pontas 
que,  esfragandoos  hum  com  outro,  se  pegavam  e  estavam 
apegados  sem  se  despegar;  e  asi  vi  diamães  esquentados 
trazer  a  palha,  como  alambres:  e  porque  vi  estas  cousas, 
e  vós  as  podeis  ver  se  quiserdes,  dou  fé  delias.  E  posto  que 
algum  escritor  emsina  a  falsificar  pedras,  não  volo  quero  fa- 
lar, porque  não  he  obra  de  filosofo,  e  muyto  menos  será  de 
teologuo,  porque  ensina  este  escritor  a  fazer  da  çafira  da 
agua,  dianiam,  mas  não  fica  senão  çafira,  e  não  diamam, 
posto  que  o  pareça  (i). 

RUANO 

Porque  não  seja  tudo  falar  em  cousas  alheas  na  fisica, 
vos  pergunto,  se  vistes  nestas  terras  pedra  arménia,  porque 
carecemos  delia  em  Europa,  ainda  que  temos  lápis  la\uli 
em  muytos  cabos. 

ORTA 

Mandarvosei  aqui  trazer  pedra  arménia  loguo.  Moça,  dá 
cá  aquclla  chave. 

SERVA 

Eila  aqui. 

ORTA 

Tira  o  pano  atado  com  grandes  pedras. 

SERVA 

Eilo  aqui. 

ORTA 

Agora  \^àiQ,  pedra  arménia. 

RUANO 

Muitos  sinaes  tem  do  que  dizeis;  porque  com  ser  azul 
algum  tanto,  he  verde  craro:  como  sabeis  que  he  pedra 
arménia  ? 

ORTA 

Os  Mouros,  grandes  fisicos,  que  curam  o  Nizamoxa,  me 
deram  estas  pedras,  c  purgam  com  ellas  melancolia,  e  cha- 


204  Colóquio  quadragésimo  terceiro 

mamlhe  asi  em  arábio,  scilicet,  hager  armini,  que  he  o  mes- 
mo que  pedra  arménia.  Pergunteilhe  donde  avia  estas  pe- 
dras, dixeramme  que  em  Ultabado  (cidade  muyto  conhecida 
do  Balagate*);  e  pergunteilhe  se  o  avia  em  Turquia  ou  na 
Pérsia,  pois  eram  delia,  e  dixeramme  que  já  a  viram  lá, 
mas  que  era  em  pouca  cantidade;  e  que  nam  sabiam  se 
vinha  da  Arménia  ou  nam;  e  comtudo  seivos  dizer  que 
purga  muyto  pouquo  esta  mesinha,  segundo  esprementei; 
e  já  perguntei  a  muitos  Arménios,  cá  na  índia,  se  a  avia 
em  sua  terra,  e  disso  me  nam  souberam  dar  rezam  (2). 

RUANO 

A  pedra  de  cevar  he  cousa  mu3"to  comum,  e  com  tudo 
vos  quero  perguntar  o  que  sabeis  delia,  porque  Laguna  c 
outros  dizem  ser  veneno,  e  que  faz  o  homem  aluado. 

ORTA 

A  pedra  de  cevar  nam  faz  o  homem  aluado,  nem  he  ve- 
neno, porque  temse  cá  ácerqua  dos  Gentios,  que  comida  em 
pouca  cantidade  os  faz  não  emvelhecer,  e  os  conserva  em 
sua  mocidade;  e  por  tanto  elrey  de  Ceilam,  velho,  mandava 
fazer  panellas  desta  pedra,  pêra  lhe  fazerem  de  comer  nellas. 

RUANO 

Como  sabeis  isto? 

ORTA 

Alem  de  ser  isto  fama  comum,  mo  dixe  Isac  do  Cairo, 
que  lhas  mandava  fazer:  e  este  Isac  do  Cairo  he  hum  judeu, 
que  foy  a  Portugal  levar  as  novas  da  morte  do  Soldam  Ba- 
dur**. 

RUANO 

Diz  António  Musa,  que  os  Portuguezcs  que  navegam  pêra 
Calecut,  acham  lá  náos  com  pregos  de  pao,  e  que  o  fazem 


*  Talvez  erro  de  imprensa  por  Dultabado,  a  cidade  effectivamente 
muito  conhecida  de  Daulutábád. 

*  *  Veja-se  a  nota  a  pagina  89. 


Da  pedra  diamão  2o5 

por  causa  dos  montes  de  pedra  de  cevar,  que  nam  traguam 
o  ferro  dos  pregos  pêra  si. 

ORTA 

Isto  sam  fabulas;  porque  nunqua  Português  vio  tal  cousa, 
e  em  Calecut  e  em  toda  essa  costa  ha  mais  navios  de  pregos 
de  ferro  que  de  pao;  verdade  he  que,  nas  ilhas  das  Maldivas, 
ha  navios  com  pregos  de  pao,  como  vos  já  dixe,  mas  a  causa 
disto  nam  he  por  mais  senão  por  nam  gastar  o  dinheiro  em 
ferro. 

RUANO 

Dizem  também  que  a  mina  da  pedra  de  cevar  está  junta 
com  a  mina  do  ferro,  e  que  por  isso  traz  o  ferro  pêra  si? 

ORTA 

Nam  ha  tal  cousa,  porque  em  cabos  deferentes  se  criam, 
scilicet,  onde  nam  ha  ferro. 

RUANO 

Hum  filosofo  pariense  diz,  que  a  pedra  de  cevar  move 
o  ferro  pêra  si,  mediante  a  vertude  que  nelle  emprimio,  pêra 
que  se  mova  a  ella*;  e  que  por  esta  rezam  não  pesa  mais 
a  pedra  de  cevar  com  muyto  ferro,  que  com  pouquo. 

ORTA 

O  contrario  disto  espermentámos  já,  eu  e  algumas  pes- 
soas, por  isso  nam  vos  maravilheis,  porque  nam  acertam 
em  todas  as  cousas  os  homens  (3). 


*  Náo  sei  quem  seria  este  philosopho,  mas  a  sua  explicação  lembra 
a  do  Malade  imaginaire  sobre  a  acção  do  ópio : 

Quia  est  in  eo 
Virtus  dormitiva, 
Cujus  est  natura 
Sensus  assoupire. 


2o6  Colóquio  quadragésimo  terceiro 


Nota  (i) 

Garcia  da  Orta  é  muito  correcto  em  todo  este  Colóquio,  demolindo 
com  intransigência  verdadeiramente  scientifica  os  erros  e  falsas  opi- 
niões, relativos  ao  diamante,  e  que  chegaram  ao  seu  conhecimento.  E 
é  tanto  mais  para  louvar  n'esta  intransigência,  quanto  a  maior  parte 
dos  factos  contestados  por  elle  se  encontravam  mencionados  no  livro 
de  Plinio,  gosando  ainda  então  de  extraordinária  auctoridade.  De  Pli- 
nio,  estes  erros  haviam  passado  sem  correcção,  ou  mesmo  aggravados 
e  ampliados,  para  alguns  escriptos  dos  Santos  padres,  e  para  aquellas 
espécies  de  encyclopedias  da  edade-media,  a  de  Santo  Izidoro,  a  de  Al- 
berto Magno,  a  de  Glanvilla  e  outras;  e  seria  fácil  demonstrar,  que  ao 
livro  do  nosso  Orta  se  deve  a  destruição  de  algumas  d'estas  falsas  opi- 
niões, e  a  vulgarisação  de  noções  mais  exactas  sobre  as  propriedades 
do  diamante. 

De  Plinio  é  a  affirmação  sobre  a  resistência  do  diamante  ao  martello 

e  á  bigorna ita  respuentes  ictum,  ut/errum  utrimque  dissultet, 

incudesque  etiam  ipsa;  dissiliant;  e  esta  idéa  correu  muito  tempo.  Em 
um  curioso  livro  do  anno  de  iSô",  intitulado  Hieroglyphica,  encon- 
tramos ainda  a  mesma  asserção,  illustrada  pela  representação  de  um 
diamante  collocado  entre  a  bigorna  e  o  martello.  Mas  no  livro  de 
Boodt  do  anno  de  1609,  Gemmarum  et  lapidarum  historia,  vem  emen- 
dado este  erro  como  muitos  outros,  fandando-se  evidentemente  o  au- 
ctor  no  que  Orta  havia  dito  *. 

De  Plinio  é  também  aquella  estranha  noticia  sobre  a  acção  do  sangue 
de  bode hircino  rupitur  sanguine —  facto,  segundo  elle  diz,  conhe- 
cido por  uma  espécie  de  revelação :  Numinum  projecto  muneris  talis 
inventio  omnis  est.  A  noticia  ainda  mais  singular  — a  que  Orta  também 
allude —  relativa  á  alimentação  especial  do  bode,  é  uma  ampliação  da 
edade-media,  e  lê-se,  por  exemplo,  em  Alberto  M.2í.s,no :  precipue  siyrcus 
aliquandiu  ante  biberit  vinum  et  petroselinum  vel  siler  montanum  cotne- 
derit.  Estas  auctoridades  eram  de  muito  peso;  e  Orta  só  se  atreve  a 
contrarial-as  depois  de  ter  procedido  a  experiências:  f  já  o  exprementei, 
e  he  tanto  como  se  lhe  não  deitasse  cousa  alguma». 

E  ainda  Plinio,  quem  attribue  ao  diamante  a  dimensão  máxima  de 
uma  avelã;  e  affirma  que  a  sua  presença  tolhe  a  acção  do  magnete : 
adamas  dissidet  com  magnete  lapide  in  tantum,  ut  juxta  positus  ferro 
non  patiatur  abstrahi.  Esta  asserção,  repetida  ao  que  parece  por  Santo 
Agostinho,  ainda  vem  citada  sem  refutação  por  um  contemporâneo  il- 


'  Boecio  de  Boodt  copia  claramente  Garcia  da  Orta;  mas,  por  um  singular  equivoco,  cita 
Monardes.  Esta  confusão  nasceu  sem  duvida  de  elle  ter  consultado  as  publicações  de  Clusius, 
onde  vinham  reunidas  as  traducções  de  Garcia  da  Orta  e  de  Nicolau  Monardes. 


Da  pedra  diamão  207 

lustre  de  Orta,  Nicolau  Monardes,  que,  no  Dialogas  de  ferro,  diz:  adeo, 
ut  dicant  nonnuli,  in  ejus  prcesentia  ferrinn  non  attrahere.  Também 
n'este  caso,  Orta  se  certificou  experimentalmente  de  que  tal  asserção 
não  tinha  fundamento,  propondo-se  a  repetir  a  experiência  diante  de 
Ruano,  se  este  assim  o  desejasse. 

A  ídéa  de  que  o  diamante  era  «vencido  do  chumbo»  encontra-se 
com  frequência  mencionada  nos  livros  da  edade-media.  Glanvilla,  no 
seu  famoso  tratado  De  proprietatibus  reriim,  diz  o  seguinte  (cito  pela 
versão  hespanhola  de  ir.  Vicente  de  Burgos) :  No  hay  cosa  tan  dura,  que 

el  piorno  no  la  enblandet^ca aunque  sea  el  diamante.  E  no  Lapi- 

dario  de  AfFonso  X,  explica-se  detidamente  o  modo  por  que  o  diamante 
se  podia  quebrar,  depois  de  envolvido  em  um  metal  que  os  árabes  cha- 
mavam a^rob,  e  os  latinos  estanno.  A  esta  influencia  de  certos  metaes, 
allude  ainda  um  poeta  francez  dos  princípios  do  xvn  século,  Remy  Bel- 
leau*,  notando  quanto  era  singular  a  natureza  do  diamante: 

Ne  pouvant  estre  combattue 
Que  de  soy,  se  voir  abattué 
Aufray  d'une  lime  de  plotn. 

Que  esta  influencia  do  chumbo  se  attribuisse  á  presença  do  «azou- 
gue»,  explica-se  facilmente  pelas  idéas  que  então  vogavam  sobre  a  na- 
tureza do  chumbo,  e  se  podem  ver,  por  exemplo,  no  capitulo  de  Alberto 
Magno,  De  natura  plumbi.  Também-  n'este  caso  Orta  tinha  feito  a  ex- 
periência, e  diz  categórica  e  pittorescamente,  que  o  diamante  corta 
o  chumbo  «como  huma  faca  corta  hum  nabo». 

Era,  por  ultimo,  bem  conhecida  a  applicação  do  diamante  para  re- 
conhecer a  infidelidade  ou  fidelidade  da  mulher  casada,  historia  con- 
tada por  Glanvilla  e  por  outros,  e  repetida  por  Boecio  de  Boodt,  posto 
que  este  diga  já  ser  contra  a  experiência  e  a  rasão.  Em  todo  o  caso, 
Boodt  sempre  lhe  attribue  um  effeito  salutar  nas  relações  conjugaes, 
dizendo  que  lhe  chamavam  a  pedra  da  reconciliação,  reconciliationis 
gemma,  o  que,  sob  certos  pontos  de  vista,  ainda  hoje  se  pôde  consi- 
derar verdadeiro. 

Procurámos,  por  curiosidade,  a  origem  das  noticias  refutadas  por 
Orta,  algumas  datando  sem  duvida  de  uma  remota  antiguidade,  com- 
piladas por  Plinio,  e  conservando-se  depois  sem  alteração  durante  a 
edade-media,  outras  de  creação  mais  moderna,  ou,  embora  de  origem 
antiga,  complicadas  e  aggravadas  pelo  desejo  de  maravilhoso  d'aquelles 
tempos.  Que  o  Colóquio  de  Orta,  onde  elle  muito  singelamente  disse 


'  Devo  a  indicação  d'esta  passagem  de  Remy  Belleau,  assim  como  a  do  Lapidaria  de 
Aífonso  X,  ao  favor  do  distincto  mineralogista  o  sr.  A.  Bensaude. 


2o8  Colóquio  quadragésimo  terceiro 

o  que  viu,  e  desassombradamente  contestou  o  que  lhe  pareceu  falso, 
que  este  Colóquio  contribuiu  poderosamente  para  dissipar  os  erros  an- 
tigos, é  um  facto  que  me  parece  incontestável.  No  livro  do  hespanhol 
Gaspar  de  Morales,  publicado  no  anno  de  1604,  e  tendo  um  titulo  si- 
gnificativo, Libro  de  las  virtudes y  propriedades  maravillosas  de  laspie- 
dr  as  preciosas,  ainda  se  encontram  quasi  todas  as  velhas  historias.  Com- 
tudo,  Morales  cita  Orta  em  varias  paginas,  acceitando  já  parte  das  suas 
emendas,  e  refutando-o  uma  ou  outra  vez,  sempre  sem  rasão.  No  livro 
de  Boetius  de  Boodt  (1609),  que  durante  tempo  fez  auctoridade  no 
assumpto,  a  influencia  de  Orta  é  perfeitamente  sensível,  e  a  essa  in- 
fluencia são  devidas  emendas  importantes,  e  uma  comprehensão  mais 
clara  das  propriedades  do  diamante.  No  emtanto,  Boodt  ainda  está  longe 
de  ter  o  scepticismo  scientifico  do  nosso  Orta ;  e  diz,  entre  outras  cousas, 
que  o  diamante  tem  a  virtude  de  combater  o  veneno,  a  peste,  as  fas- 
cinações, os  encantamentos,  a  loucura,  os  pesadellos,  o  ataque  dos  in- 
cubos  e  succubos,  e  os  malefícios  dos  demónios.  O  modo  de  ver  mais 
sóbrio  de  Orta  não  foi  naturalmente  recebido  desde  logo ;  e  elle  próprio 
faz  uma  concessão  ás  antigas  idéas  sobre  as  virtudes  do  diamante, 
quando  diz:  «porque  pedra  que  Deus  criou,  com  ser  tão  invencível,  he 
bem  que  lhe  dê  os  dotes  que  dizem». 

(Cf.  Plinius,  Lib.  xxxvii,  i5,  ed.  Littré;  J.  Pierii,  Hieroglyphica,  3o6, 
Basileee,  1567;  A.  Boetii  de  Boodt,  Gemmarum  et  lapidaram  historia, 
Lib.  u,  57,  Hanoviae,  1609;  Alberto  Magno,  De  mineralibus,  Lib.  u,  cap. 
de  lapidibus  incipientibus  ab  a,  e  Lib.  m,  cap.  de  natura  plumbi,  Vene- 
tiae,  1495;  Monardes,  em  Qusius,  Exotic,  3o;  Barth.  Glanvilla,  De  pro- 
prietatibus  rerum,  cap.  do  diamante,  ed.  de  Tolosa,  1494;  G.  de  Morales, 
Libro  de  las  virt.  y  propr.  maravillosas  de  las  piedras  preciosas,  189, 
Madrid,  1604). 

Orta  havia  lido  no  livro  conhecido  de  Boemus,  traduzido  por  Fran- 
cisco de  Tâmara,  uma  historia  de  diamantes,  guardados  por  cobras  ve- 
nenosas; e,  attribuindo  toda  a  responsabilidade  do  dito  ao  traductor 
hespanhol,  diz-lhe  com  uma  certa  graça,  que,  se  tem  de  contar  mentiras, 
melhor  será  contal-as  das  suas  índias  occidentaes,  que  das  nossas  ín- 
dias portuguezas.  E,  no  emtanto,  estas  historias  de  serpentes  e  pedras 
preciosas,  haviam  sido  contadas  n'aquella  ou  n'outras  formas  por  muita 
gente,  e  por  gente  muito  seria.  Santo  Epiphanio,  bispo  de  Salamis  no 
IV  século,  em  um  tratado  sobre  as  doze  pedras  preciosas,  engastadas 
no  peitoral  ou  racional,  preso  ao  ephod  do  summo  sacerdote  hebraico, 
affirma  que  os  jacinthos  se  encontravam  na  Scythia,  no  fundo  de  valles 
profundos,  escuros  e  inaccessiveis.  Para  os  obter,  serviam-se  do  seguinte 
artificio :  lançavam  no  fundo  do  valle  cordeiros  esfollados,  que  as  águias 
iam  buscar,  trazendo  para  os  seus  ninhos  a  carne,  e  as  pedras  precio- 
sas, que  vinham  pegadas  com  ella,  e  depois  se  iam  procurar  nos  ni- 
nhos. Esta  mesma  historia,  applicada  ao  diamante,  e  complicada  com 


Da  pedra  diamão  209 

a  presença  de  serpentes  venenosas  no  fundo  dos  valles,  encontra-se 
depois  nos  escriptores  arábicos,  e  nomeadamente  nas  Mil  e  uma  noites, 
onde  forma  a  base  de  uma  das  numerosas  e  maravilhosas  aventuras 
de  Sindbad.  E  é  certo,  que  devia  correr  com  insistência  nas  terras  orien- 
taes.  Marco  Polo,  sendo  um  viajante  veridico,  e  tendo  visitado  portos 
da  índia  não  muito  afastados  das  minas  de  diamantes,  acceita  uma  ver- 
são muito  similhante  á  das  Mil  e  uma  noites:  segundo  elle  diz,  os  dia- 
ynantes  encontravam-se  em  valles  profundos,  onde  era  impossível  descer 
por  causa  das  numerosas  cobras  peçonhentas;  ali  lançavam  do  alto 
fatias  de  carne,  que  as  águias  brancas  iam  buscar  e  traziam  para  cima; 
então,  os  mesmos  homens,  que  haviam  lançado  a  carne  no  fundo  do 
valle,  assustavam  as  águias  com  grandes  gritos,  e  iam  procurar  os  dia- 
mantes, pegados  em  grande  numero  á  carne  fresca.  Depois  de  Marco 
Polo,  Nicolo  di  Conti,  que  andou  vinte  e  tantos  annos  pelo  Oriente^ 
e  esteve  em  Bijayanagara,  o  centro  de  uma  das  regiões  das  minas  de 
diamantes,  ainda  conta  a  historia  quasi  do  mesmo  modo.  Já  se  vê,  que 
o  nosso  Orta  não  tinha  rasão  para  ser  tão  severo  com  o  pobre  Tâ- 
mara, o  qual  apenas  repetia  uma  versão  já  enfraquecida  e  diluida  de 
uma  velha  lenda,  e  de  mais  era  um  simples  traductor,  sem  responsabili- 
dade. (Cf.  Lane,  Arabian  nights,  iii,  88,  ed.  de  1S59;  Yule,  Marco  Polo,  11, 
347,  349;  Major,  índia,  xl,  e  29). 

Entre  outras  cousas,  Orta  havia  lido  no  livro  de  Plinio,  que  o  dia- 
mante da  índia  nascia  ou  procedia  de  uma  substancia  similhante  ao 
crystal  ....  quadam  crystalli  cognatioue.  Não  admitte  o  facto;  mas, 
ignorando  as  profundas  differenças  de  composição  chimica  e  outras, 
que  separam  o  diamante  do  crystal,  tem  de  procurar  diversos  rodeios 
para  refutar  Plinio.  Diz  que  na  índia  não  ha  crystal,  o  que  é  um  en- 
gano; e  que  embora  haja  ali  pedras  muito  claras,  com.o  o  «berilo»,  e 
a  «çaíira  de  aguoa»,  estas  se  não  encontram  nas  regiões  e  junto  das 
«rocas»  de  diamantes.  Não  creio  que  elle  se  refira  ao  verdadeiro  be- 
rylo^  — um  silicato  de  alumina  e  glucina — ,  e  deve  por  aquelle  nome 
designar  alguma  variedade  do  crystal  de  rocha,  assim  como  pelo  de 
sapphiras  de  agua  designa  talvez  uma  variedade  azulada  do  mesmo 
crystal,  ou  quartzo  hyalino.  A  parte  interessante  d'esta  discussão,  é  o 
que  elle  nos  diz  sobre  a  situação  das  rocas  ou  minas  de  diamantes — 
parte  que  será  necessário  examinar  um  pouco  mais  detidamente. 

Não  é  possível  procurar  uma  a  uma,  quaes  seriam  aquellas  minas; 
já  porque  as  indicações  de  Orta  são  um  tanto  vagas,  já  porque  as  ex- 
plorações mudavam  com  frequência  de  logar.  Tavernier  é  bem  mais 
explicito  do  que  Orta,  pelo  que  diz  respeito  á  localisação  das  minas 


'  Porque  raros  seráo  os  crystacs  de  berylo  em  que  se  possam  talhar  «jarros  e  escudellas» 
e  porque  o  nome  de  berylo  se  deu  muitas  vezes  ao  quartzo  esverdeado. 


2 IO  Colóquio  quadragésimo  terceiro 

onde  esteve,  e  não  obstante  as  cuidadosas  pesquizas  de  um  dos  seus 
eruditos  traductores,  o  professor  V.  Bali,  ainda  hoje  se  podem  levantar 
duvidas  sobre  a  verdadeira  situação  das  suas  minas  de  Raolconda,  de 
Gani  e  outras.  Com  mais  rasão  teremos  de  nos  limitar  no  nosso  caso 
a  identificações  muito  vagas  e  muito  latas. 

Em  primeiro  logar,  Orta  falia  das  «rocas»  ou  minas  de  «Bisnaguer». 
Isto  é  exactíssimo;  e  elle  refere-se  ás  explorações  muito  conhecidas  do 
sul  da  índia,  nas  margens  do  alto  Pennar,  nas  terras  de  Bellari,  nas 
margens  do  Tumbadra,  aífluente  do  Kishna,  localidades  todas  situadas 
em  volta  de  Vijayanagara,  e  todas  exploradas  em  variados  pontos  desde 
tempos  remotos.  Os  estados  do  râjã  de  Vijayanagara  eram  então  muito 
extensos*,  e  Orta  podia  sob  aquella  designação  referir-se  também  ás 
explorações,  ainda  mais  conhecidas  e  situadas  a  nordeste,  nas  alluvióes 
do  Kishna,  e  nas  do  Godavery,  uma  região  depois  muito  celebrada  sob 
o  nome  geral  de  Golconda.  Devemos  notar,  que  estas  minas  do  sul  são 
também  mencionadas  de  um  modo  geral  por  Duarte  Barbosa,  o  qual 
falia  dos  diamantes  do  Reino  de  Narsinga,  isto  é,  de  Bisnaguer,  pois  Nar- 
singa  e  Bisnaguer  eram  synonymos  para  os  nossos  escriptores  daquel- 
les  tempos. 

Orta  falia  em  seguida  de  uma  «roca»  no  Deckan,  perto  da  terra  do 
«Imadixa»  ou  «Madremaluco»,  isto  é,  perto  do  Berar,  governado  então 
pela  dynastia  de  soberanos  mussulmanos,  que  tomaram  o  titulo  de  Imad 
Scháh.  Estes  diamantes  vendiam-se  em  uma  feira  muito  nomeada,  ce- 
lebrada em  «Lispor«,  e  não  é  difficil  n'este  nome  reconhecer  Elichpura, 
a  capital  do  Berar.  Onde  estava  propriamente  situada  esta  roca  é  o  que 
me  parece  ditiicil  averiguar.  Em  vários  pontos,  das  hoje  chamadas  Pro- 
víncias Gentraes,  se  tem  encontrado  diamantes,  nomeadamente  em 
Sumbulpur,  e  d'ali  os  podiam  facilmente  trazer  a  Elichpura.  Por  outro 
lado,  em  uma  noticia  acerca  das  pedras  preciosas  da  índia,  escripta 
pelo  rãjã  Sourindro  MohunTagore  — citado  por  Streeter —  vem  men- 
cionada a  antiga  Kosala,  identificada  com  o  Berar,  como  uma  das  re- 
giões em  que  se  encontravam  diamantes.  Ou  no  Berar,  ou  nas  proxi- 
midades, em  todo  o  caso  no  chamado  Deckan,  existiram  varias  minas, 
a  que  Orta  — de  accordo  com  Duarte  Barbosa — chama  de  «roca  velha» 
distinguindo  as  pedras  dali  das  do  sul,  chamadas  de  «roca  nova»,  con- 
sideradas por  elles  de  qualidade  e  valor  inferiores.  É  possível  que  elles 
temporariamente  tivessem  rasão,  isto  é,  que  justamente  por  aquelle 
tempo  se  explorasse  no  sul  algum  jazigo,  em  que  os  diamantes  tivessem 
um  ou  outro  dos  numerosos  defeitos  que  os  depreciam;  mas  de  um 
modo  geral  esta  apreciação  dos  nossos  dois  escriptores  não  se  pôde 


'  Orta  escreve  em  i563,  e  pouco  depois  aquelle  estado  desmembrou-se  e  quasi  desappa- 
receu. 


Da  pedra  diamão  211 

acceitar — os  diamantes  do  sul  e  da  região  de  Golconda  erão  tão  bons 
como  os  melhores.  É  também  a  propósito  das  rocas  do  Deckan,  que 
Orta  falia  dos  diamantes  naifes,  tomando  a  palavra  — como  já  notá- 
mos—  no  mesmo  sentido  em  que  os  joalheiros  francezes  empregaram 
a  expressão  pointe  naive. 

Por  ultimo,  Orta  falia  de  rocas  de  diamantes  no  estreito  de  Tanjam- 
pur,  para  «as  bandas  de  Malaqua».  Esta  indicação  geographica  é  muito 
vaga;  mas  felizmente  João  de  Barros  encarrega-se  de  a  explicar.  Pal- 
iando da  ilha  de  Borneo,  diz  assim:  «nascem  n'ella  pelas  praias  do  mar, 
junto  da  cidade  de  Tanjanpura,  diamantes  mais  finos  e  de  maior  valia 
que  os  da  índia».  Portanto  os  diamantes  de  que  Orta  falia  são  os  de 
Borneo. 

É  forçoso  confessar,  que  o  nosso  escriptor  é  exacto  e  completo  n'esta 
parte :  as  aUuvióes  dos  rios  do  sul  desde  o  Pennar  até  o  Godavery,  o  pla- 
nalto do  Deckan,  a  ilha  de  Borneo,  são  no  Oriente  as  três  regiões  prin- 
cipaes  dos  terrenos  diamantiferos ;  e  todas  três  são  mencionadas  por  Orta 
nos  meiados  do  xvi  século.  Quanto  á  lavra  e  regimen  das  minas  vê-se 
que  elle  tinha  sobre  isso  idéas  geraes,  mas  bastante  exactas,  e  unica- 
mente cáe  em  um  erro  grave  quando  julga  que  o  diamante  se  formava 
e  crescia  em  pouco  tempo,  citando  em  apoio  d'esta  opinião  o  facto  de 
se  poder  explorar  fructuosamente  uma  «mineira»  já  explorada  dois 
ou  três  annos  antes.  O  facto  era  verdadeiro;  mas  a  sua  explicação  era 
muito  diversa.  Em  alguns  pontos,  comp  conta  detidamente  Tavernier, 
exploravam  nas  epochas  de  estiagem  as  areias  e  cascalhos  das  ribeiras, 
e,  passados  annos,  voltavam  a  explorar  os  mesmos  sitios,  para  onde  alguns 
diamantes  haviam  sido  arrastados  de  novo  das  montanhas  vizinhas.  Isto, 
porém,  em  nada  se  parece  com  a  formação  in  situ  do  diamante,  na  qual 
Orta  acreditava.  A  parte  esta  apreciação  errada  de  um  facto  verdadeiro, 
todas  as  outras  indicações  de  Orta  sobre  localisação  e  exploração  do  que 
elle  chama  «rocas»  ou  «mineiras»  são  muito  chegadas  á  verdade  (Cf.  Ta- 
vernier, Voyages,  11,  826  a  355;  Edwin  W.  Streeter,  Precious  stones  and 
gems,  104  a  i23,  fifth  edition,  1892,  London;  Barros,  Ásia,  iv,  vi,  19; 
Duarte  Barbosa,  Livro,  278). 

Passaremos  muito  de  leve  sobre  outros  pontos  para  não  alongar  em 
demasia  esta  nota.  Acerca  de  propriedades  do  diamante,  Orta  acertou 
algumas  vezes  e  errou  naturalmente  outras.  Alem  das  observações  já  ci- 
tadas, em  que  emendou  algumas  idéas  falsas  dos  antigos,  reconheceu 
a  dure^^a  do  diamante,  sabendo  que  só  podia  ser  lavrado  por  outro  dia- 
mante ou  pó  de  diamante,  «posto  na  roda».  Vê-se  por  esta  phrase,  que 
elle  conhecia  o  modo  de  trabalhar  dos  lapidairos  indianos,  minuciosa- 
mente descripto  annos  depois  por  Tavernier.  Diz  também  que  o  dia- 
mante  não  consentia  ser  «verrumado»;  e,  comquanto  a  partir  justamente 
do  seu  século  se  começassem  a  perfurar  alguns  na  Europa,  é  bem 
possível  que  esta  delicada  operação  se  não  fizesse  na  índia.  Reconhe- 


212  Colóquio  quadragésimo  terceiro 

ceu  experimentalmente  que  os  diamantes  se  eleclrisam  pela  fricção,  e 
viu-os  depois  de  «'esquentados  trazer  a  palha,  como  alambres»;  mas 
exagera  talvez  um  pouco  quando  affirma,  que  dous  diamantes  esfrega- 
dos ficavam  adherentes.  Por  outro  lado,  engana-se  quando  diz  serem 
os  diamantes  de  Tanjanpura  mais  pesados  que  os  da  índia,  pois  a  sua 
densidade  é  sempre  a  mesma.  Engana-se  também  quando  nota  que 
«nem  o  foguo  lhe  faz  nojo»;  mas  é  claro  que  elle  não  dispunha  de  tem- 
peraturas sufficientemente  elevadas,  e  não  podia  saber  que  o  diamante 
era  simplesmente  carvão,  antecipando-se  assim  ás  experiências  da  .Aca- 
demia  dei  Cimento,  e  de  Lavoisier. 

Acerca  de  propriedades  toxicas,  é  perfeitamente  acceitavel  — e  é 
conhecida  na  índia  e  no  Brazil —  a  historia  dos  trabalhadores  que 
enguHam  os  diamantes  inteiros  sem  inconveniente;  mas  é  mais  sujeita 
a  caução,  a  do  pobre  doente  a  quem  a  mulher  administrava  diamante 
moido,  sem  com  isso  lhe  determinar  a  morte. 

Garcia  da  Orta  residiu  trinta  e  tantos  annos  em  Goa,  um  dos  mais 
importantes  centros  do  commercio  de  pedras  preciosas,  e,  curioso  como 
era,  deve  ter  visto  muitos  e  muito  bons  diamantes.  Não  é  nada  exage- 
rado no  que  diz  a  este  respeito;  diamantes  brutos  do  peso  de  140  man- 
gelis^  ou  proximamente  170  quilates,  como  um  que  viu,  ou  do  peso 
de  proximamente  3i2  quilates,  como  um  de  que  ouviu  fallar,  sendo 
seguramente  muito  bellos,  estão  dentro  das  dimensões  conhecidas. 
Mesmo  o  que  tinha  o  tamanho  de  um  «ovo  pequeno  de  gallinha»  não 
está  fora  dos  limites.  O  diamante  do  Grão  Mogol,  visto  porTavernier, 
e  do  qual  elle  dá  uma  representação  no  seu  livro,  pesava  em  bruto 
793  quilates,  e  depois  de  talhado  e  mal  talhado  pelo  veneziano  Hor- 
tensio  Borgis  ficou  pesando  280  quilates;  na  primeira  forma  devia  se- 
guramente ter  as  dimensões  de  um  ovo,  e  não  muito  pequeno'. 


Nota  (2) 

É  necessário  não  confundir  esta  pedra  arménia  com  a  terra  arménia 
ou  bolo  arménio,  uma  argilla  ferruginosa,  que,  como  a  terra  de  Lemnos 
ou  terra  sigillata,  figurou  largamente  na  matéria  medica  do  tempo  de 
Orta,  e  ainda  muito  posteriormente.  A  pedra  arménia  do  nosso  Orta, 
«hager  armini"  dos  árabes,  (    .-^ ^    y^  hadjer  el-armeni)  era  «verde 

craro»  e  «azul  algum  tanto»,  o  que  de  modo  algum  concorda  com  a 
côr  avermelhada  da  terra  arménia.  Era  um  quartzo  tinto  de  azul  pelo 
íTfií/  de  cobre,  com  uma  mistura  de  côr  verde,  ou  uma  pedra  calcarea 


'  Estava  escripta  e  impressa  esta  nota,  quando  me  s'eio  parar  á  mão  o  artigo  sobre 
O  Diamante,  publicado  pelo  sr.  A.  Bensaude  na  Rev,  de  Scienc,  nat,  e  sociaes,  11,  8 ;  e  que 
por  isso  não  pude  já  citar  n*este  meu  trabalho. 


Da  pedida  diamão  2 1 3 

corada  pela  mesma  substancia;  ambos  foram  chamados jceir^i  arménia 
pelos  naturalistas  até  a  uma  epocha  relativamente  recente.  Ás  vezes 
confundiam-se  estes  mineraes  com  o  lápis  la:^uli,  como  faz,  por  exem- 
plo, Pedro  Teixeira :  Tienne  mas  la  Pérsia  Ager  Armeny,  que  es  el  lá- 
pis Armenus  de  nuestros  médicos,  que  por  otro  nombre  dijen  lápis  la^uli. 
(Cf.  Haiiy,  Traité  de  miner.,  iii,  570;  Teixeira,  Relaciones,  166). 


Nota  (3) 

A  pedra  de  cevar  ou  pedra  iman,  o  oxydo  de  ferro  magnético  ou 
magnetite  polar,  não  era  veneno,  nem  fazia  os  homens  aluados  ou 
doudos.  Também  os  não  impediria  de  envelhecer,  como  diz  Orta  na 
sua  curiosa  historia  das  panellas  do  rei  de  Ceylão,  que  foi  depois  co- 
piada pelo  nosso  clássico  escriptor,  Amador  Arrais. 

Quanto  aos  barcos  das  Maldivas,  veja-se  a  nossa  nota  (vol.  i,  p.  245) ; 
e  seguramente  eram  feitos  assim  pela  rasão  que  Orta  dá,  e  não  pela 
que  traz  António  Musa. 


COLÓQUIO  QUADRAGÉSIMO  QUARTO 

DAS  PEDRAS  PRECIOSAS,  QUE  SAM,  SCILICET,  ÇAFIRA, 
JACINTO,  GRANADA,  RUBIM,  MEDECINAES 


INTERLOCUTORES      ^ 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

Aguora  hc  bem  que  falemos,  pois  he  mais  nesseçario  á 
física,  das  pedras  preciosas  que  emtram  nas  composições 
e  letuairos  cordiaes. 

ORTA 

Não  vos  ei  de  dizer  senam  das  pedras  medicinaes  c  das 
que  ha  na  índia,  porque  se  dixesse  de  todas,  seria  numca 
acabar-,  e  das  medicinaes  somente  vos  direi  das  que  emtram 
no  letuairo  de  gemis,  que  comnjumente  sam  chamadas  fra- 
gmenta preciosa  (i). 

RUANO 

Dizei  dessas,  porque  depois  volo  rogarei,  e  me  direis  de 
algumas  outras. 

ORTA 

Direi  em  breves  palavras.  E  porém  destoutras  he  mais 
nesseçario,  por  vos  aconselhar  que  leveis  lo  crusados  delias, 
pêra  que  deis  aos  buticairos  de  Castella,  que  daqui  avante 
comprem  as  verdadeiras  pedras,  pois  não  sam  tam  caras. 
A  primeira  he  çajira,  que  he  huma  pedra  que  merece  valer 
muyto,  e  comprase  por  pouquo  dinheiro,  o  azul  da  qual  he 
muyto  aprazível  avista:  ha  as  de  duas  maneiras,  scilicet, 
humas  muyto  escuras,  e  outras  muyto  craras,  que  chama- 
mos çajira  de  agiioa,  e  estas  não  sam  de  tanto  preço,  e 
algumas  vezes  se  emgastam  com  alguma  tinta,  que  lhe  dam, 
e  parecem  diamães,  com  que  alguns  foram  emganados.  E 
asi  humas  como  outras  ha  em  Calecut,  e  Cananor,  e  em 


2i6  Colóquio  quadragésimo  quarto 

muytas  partes  dos  reinos  de  Bisnagua*;  e  porém  as  milhores 
de  todas  sam  as  de  Ceilam,  e  muyto  milhores  as  de  Pegú. 
E  com  serem  pedras  tanto  apraziveis  aos  olhos,  nunqua  se 
achou  alguma  por  grande  e  limpa,  e  de  boas  agoas  que 
fosse,  que  escasamente  chegasse  a  looo  pardaos  ou  looo 
cruzados**:  isto  diguo,  segundo  o  que  ouvi  nestas  terras., 
Quando  embora  fordes  pêra  Cochim,  podeis  comprar  em' 
Calecut  e  em  Cananor,  dos  pedaços  que  ficam  quando  as 
lavram,  alguma  cantidade,  e  também  comprai  delias,  asi 
inteiras,  porque  vallem  pouquo  dinheiro  (2) . 

RUANO 

Dizei  dos  Jacintos  e  granadas. 

ORTA 

Destas  ha  tanta  cantidade,  que  não  he  nesseçario,  senão 
com  pouquo  dinheiro  levardes  hum  saquo  delias :  muitas  acha- 
reis em  Calecut  e  Cananor,  e  as  lavradas  dam  huma  corja 
(que  sam  20)  por  hum  vintém;  e  as  por  lavrar  muito  mais  ba- 
ratas; e  as  gi^anadas  nam  tam  somente  ha  nas  partes  que 
dixe,  mas  em  todas  as  terras  firmes  de  Cambaia,  e  do  Ba- 
lagate  se  estam  vemdemdo  na  praça  por  muito  pouquo 
preço  (3). 

RUANO 

Seguese  da  sardonix. 

ORTA 

Esta  pedra  nam  ha  nesta  terra,  e  se  alguma  ha,  vem  de 
fora  delia;  e  alem  disso  ha  muita  deferença  em  saber  que 
pedra  he  (4) ;  por  tanto  de  meu  conselho  deveis  de  deitar  em 
seu  logar,  quando  a  nam  achares,  jacintos  ou  granadas; 
os  quais  /ac/";z/os  ha  também  perto  de  Lisboa  em  hum  lugar 
que  se  chama  Belas,  e  asi  os  pode  aver  em  muitos  cabos 


*  Habitualmente  Orta  escreve  Bisnaguer. 

**  De  1 :542;;ff)ooo  réis,  a  2:160^000  réis  em  valor  intrínseco,  ou,  sup- 
pondo  o  valor  effectivo  da  moeda  quatro  vezes  superior  ao  actual,  de 
6:000^5^000  réis  a  Sroooííooo  réis  proximamente. 


Das  pedras  preciosas  2 1 7 

de  Espanha,  se  os  buscassem;  e  estas  duas  pedras  jacintos 
e  granadas,  querem  alguns  dizer  que  sam  especias  de  rii- 
bins. 

RUANO 

E  do  rubim  e  do  carbúnculo  que  me  dizeis? 

ORTA 

Digo  que,  debaixo  deste  nome  de  rubim,  se  contem  muitas 
especias,  e  a  mais  principal  se  chama  em  grego  antrax, 
e  em  latim  carbuncidus,  que  tanto  quer  dizer  como  brasa 
acesa. 

RUANO 

Essa  queria  eu  ter  para  mim,  e  nam  pêra  gastar  na  bu- 
tica,  porque  ouvi  dizer  desta  que  alumiava  de  noite. 

ORTA 

Não  creais  isto,  que  sam  ditos  de  velhas. 

RUANO 

E  não  vistes  vós,  ou  ouvistes  dizer  que  a  avia? 

ORTA 

Nunqua  a  vi.  Verdade  he,  que  hum  lapidairo  me  dixe  que 
contara  em  huma  mesa  huns  poucos  de  rubins  muyto  finos, 
que  vieram  de  Ceilam,  muyto  meudos,  a  que  chamamos 
rubins  de  corja,  que  he  tanto  dizer  como  comprados  20  a 
vinte,  e  diz  que  ficou  hum  metido  entre  as  dobras  da  meza, 
e  que  de  noite,  ás  escuras,  parecia  a  meza  que  tinha  huma 
faisca  de  fogo,  e  foy  á  meza  com  huma  candêa,  e  achouse 
hum  rubim  muyto  pequeno,  e  que  des  que  o  tirou  nunqua 
mais  pareceo  a  faisca  na  meza:  se  isto  he  verdade  ou  men- 
tira, não  o  sei.  E  sei  que  mo  contou  este  lapidairo,  o  qual 
oficio  faz  dizer  ás  vezes  mentiras,  posto  que  as  dizem  por 
seu  proveito,  porém  ficam  tam  mal  acustumados  disto,  que 
ás  vezes  as  dizem  por  falar  á  sua  vontade  maravilhas. 


2i8  Colóquio  quadragésimo  quarto 

RUANO 

Loguo,  quando  o  riibim  for  muyto  fino,  em  cor  e  aguoas, 
quero  dizer  que  seja  de  vinte  quatro  quilates  em  cor*,  cha- 
marlheemos  carbúnculo? 

ORTA 

Pareceme  que  si;  e  eu  vi  já  alguns  destes  a  que  chamam 
toques,  e  tem  o  preço  segundo  a  grandura,  e  feiçam  e  aguoas, 
e  o  mais  caro  que  eu  vi  foy  hum  que  diziam  valer  20  mil 
cruzados**;  este  tinha  hum  grande  senhor  no  Decam,  que 
mo  mostrou  por  ser  eu  muito  privado  seu,  e  me  tomou  mi- 
nha palavra  que  o  nam  dixese  á  gente  daquella  terra,  nem 
ao  rey  delia;  dixeme  que  lhe  custara  seis  mãos  de  ouro,  que 
sam  perto  de  cinquo  arrobas  portuguezas. 

RUANO 

Esse  era  bom  pêra  gastar  na  botica,  segundo  os  buticai- 
ros  sam  liberaes. 

ORTA 

Não,  que  para  a  botica  achareis  muytos  tam  baratos 
como  os  jacintos;  por  tanto  também  levai  alguma  cantidade 
a  Castella.  Ha  outra  especia,  que  chamam  balax,  que  he 
algum  tanto  roxa,  este  he  de  menos  preço;  ha  outra  a  que 
chamam  espinhela,  este  he  de  cor  mais  cheguada  á  braza, 
e  também  este  he  de  menos  preço,  porque  não  tem  as  agoas 
de  verdadeiro  rubim.  Ha  outros  rubins  brancos  em  muyta 
maneira.  Ha  outros  que  tiram  hum  pouquo  a  encarnado,  ou 
mais  propriamente  a  cereija  branca,  que  se  quer  fazer  ma- 
dura. Ha  outros  rubins  que  sam  ametade  brancos  e  ame- 
tade  vermelhos,  e  outros  que  sam  ametade  çajiras  e  ame- 
tade rubins.  E  de  todas  estas  feições  vi,  e  se  vos  relevar, 
volas  mostrarei,  antes  que  vos  vades.  E  posto  que  ha  outras 
muytas  especias  destes  rubins,  delles  vos  nam  quero  falar. 


*  Isto  é,  absolutamente  perfeito  na  côr. 

**  Um  pouco  mais  de  43:ooO''*ooo  réis  em  valor  intrínseco;  ou  o 
equivalente  a  172:000^000  réis  de  hoje. 


Das  pedras  preciosas  2 1 9 

nem  de  seus  preços,  porque  não  sei  isto  muito  bem  sabido, 
scilicet,  o  dos  preços. 

RUANO 

Não  podeis  escusar  de  me  dizer  a  conta  da  variaçam  das 
cores  desses  inibins. 

ORTA 

O  que  ouvi  dizer  mais  conforme  á  rezam  he,  que  o  riibim 
na  roca,  quando  he  perto  do  seu  nacimento,  he  branco,  c 
em  amadurecendo  adquire  aquella  perfeiçam  que  he  ser 
vermelho;  e,  porque  esta  perfeiçam  não  se  pode  adquirir 
subitamente,  ás  vezes  o  acham  encarnado  como  dixe,  e 
outras  vezes  de  huma  das  bandas  vermelho,  e  de  outra 
branco.  E  porque  a  çajira  e  riihim  dizem  ser  de  huma  roca, 
portanto  se  acha  em  huma  pedra  hum  riibim  meo  çajira  e 
meo  riibitn;  e  ha  outras  pedras,  que  tem  tam  mesturado  o 
azul  com  o  vermelho,  que  parece  huma  verdadeira  compo- 
siçam  de  azul  escuro  e  vermelho,  e  casi  como  roxo;  e  a 
estas  pedras  chamam  em  algumas  lingoas  desta  terra  nilá- 
candi;j\uç.  quer  tanto  dizer,  como  rubim  e  çajira. 

RUANO 

Os  nomes  destas  pedras  me  dizei  em  arábio  e  na  lingoa 
da  terra. 

ORTA 

O  rubiw  chamam  os  Arábios  e  VtTÚos  jacut,  e  a  gente 
desta  terra  nianica,  e  os  jacintos  e  granadas  tem  uns  nomes 
particulares,  como  quem  diz  riibim  amarelo,  e  riibim  preto 
a  granada;  e  a  çajira  se  chama  nilá. 

RUANO 

A  milhor  pedra  e  a  mais  nesseçaria  me  não  dixcstes,  que 
he  a  esmeralda,  que  entra  no  letuairo  de  gemis,  chamandoa 
ferrmegi? 

-^  ^  ^  ORTA 

Não  valem  as  esmet^aldas  tam  baratas,  que  por  esme- 
ralda  se  aja  de  entender  Jerriqegi:  porque  as  esmeraldas 
ha  muito  poucas,  e  de  muito  grande  preço;  e  não  se  sabe 
a  própria  roca  delias;  de  maneira  que  as  que  ficam  donde 


220  Colóquio  qiiadragesijno  quarto 

as  soem  lavrar,  não  se  pode  achar  tanta  cantidade  que 
abaste;  e  quem  diz  quQ  ferni:[eg{  quer  dizer  esmeralda  não 
sabe  arábio;  nem  a  emtençam  de  Mesue  foy  entrar  esme- 
ralda nesta  composiçam,  posto  que  o  contrairo  sentio  Cris- 
toforo  de  Honestis*,  comentador  de  Mesue.  E  a  causa  disto 
he,  porque  esmeralda  em  pérsio  e  em  lingua  desta  terra, 
se  chama  pachec,  e  em  arábio  '{amarriit;  e  Serapio  no  ca- 
pitulo da  esmeralda**,  onde  diz  :[aharget,  ha  de  estar  :{a- 
marriit;  nem  ha  de  estar  tabarget,  como  sente  o  Pande- 
tario***. 

RUANO 

Pois  ferruiegi  que  quer  dizer? 

ORTA 

Aveis  de  saber  que  p  e  f  no  arábio  sam  letras  muyto 
irmans  (como  já  outras  vezes  vos  dixe);  por  onde,  no  Mesue 
em  arábio,  este  ferruiegi  quer  dixer  tiirque:{a  ou  da  tur- 
queza:  porque /^z/n/^^a  em  arábio****  quer  dixer  turquesa, 
das  quaes  ha  muita  cantidade  em  toda  a  Pérsia. 

RUANO 

Verdadeiramente  que  por  este  só  ponto  ouvera  de  vir  á 
índia,  e  se  vos  nam  achara,  por  ventura  mo  nam  dixeram 
cá;  daqui  em  diante  onde  achar  fei~ru\egi  em  Avicena  ou 
em  qualquer  livro  dos  Arábios,  entenderei  turquesa,  e  nam 
consintirei  a  buticairo,  que  deite  no  letuario  de  gemis  es- 
malte verde,  nem  outras  pedras  verdes;  porque  me  lembra 
que  o  outro  dia,  vindovos  aqui  a  vender  huma  joia^  com 
muitas  esmeraldas  meudas,  me  'dixestes  que  todas  aquellas 
eram  falsas,  e  que  no  Balagate  e  em  Bisnaguer  as  faziam 


*  Cristoforo  de  Honestis, (nota  do  auctor). 

*  •  Serapio,  cap.  384  (nota  do  auctor). 
***  Matheus  Silvaticus  (nota  do  auctor). 

*  »  »  *  Parece  que  Orta  se  enganou,  e  quereria  dizer  em  persiano,  ou 
parsio;  veja-se  a  nota  (6). 


Das  pedras  preciosas  221 

de  vidro  dos  frasquos,  scilicet,  do  mais  grosso  delles,  e  que 
era  cousa  tam  comum  entre  elles,  que  se  nam  corriam  disso; 
e  por  isso  onde  eu  vir  esmeralda,  direi  antes  que  a  não  bote 
no  letuairo  sem  saber  muito  certo  o  que  he,  a  viride  vitro 
libera  nos  domine.  E  mais  as  nossas  esmeraldas  do  Peru, 
diz  hum  doutor  moderno,  que  sam  muyto  más  pêra  o  uso 
da  medecina 

ORTA 

Diguo  que  estas  pedras  do  Peru  chamadas  esmeraldas 
vieram  cá  a  esta  terra;  no  principio  valiam  muyto,  e  de- 
pois que  cairam  nellas,  acharam  ser  falsas,  e  não  dam  di- 
nheiro por  ellas;  portanto  também  dessas  me  parece  que 
vos  aveis  de  guardar  (5). 

RUANO 

Dizeime  das  turquesas,  se  sam  usadas  em  física  ou  não. 

ORTA 

Alguns  me  dixeram  que  si,  e  outros  que  não,  entre  os 
Gentios,  porque  entre  os  Mouros,  todos  os  mais  dizem 
que  sam  usadas  na  física  (6). 

RUANO 

Dizeime  da  crisolita  e  da  amatista,  e  do  birilo  (pois  dizeis 
que  cristal  não  ha  nesta  terra)  e  da  alaqueca,  e  áo  jaspe. 

ORTA 

Do  jaspe  vos  nam  direi,  pois  o  ha  mais  nas  vossas  terras, 
e  sabeis  mais  delle  que  eu;  com  tudo  vos  sei  dizer  que  ha 
cá  porcelanas  pequenas  áo.  jaspes,  ou  de  pedras  verdes,  que 
parecem  de  esmeraldas,  e  já  pode  ser  que  a  pedra  que  está 
em  Genoa,  que  dizem  ser  de  esmeralda,  seja  desta  pedra, 
e  amostralaam  poucas  vezes  por  alcançar  mais  autoridade, 
e  falarem  á  sua  vontade  os  Genoeses;  porque  a  mim  me 
davam  no  Balagate  huma  porcelana  por  200  pardaos*;  e  se 
fora  esmeralda,  a  milessima  parte  delia  ma  não  deram  por 


*  «Porcelana»  é  tomada  aqui  no  sentido  de  taça,  como  se  tomava 
habitualmente  por  aquelle  tempo;  veja-se  a  nota  (7). 


222  Colóquio  quadragésimo  quarto 

elles,  segundo  a  estima  que  ácerqua  delles  está  a  esme- 
ralda (7).  Do  birilo  já  vos  dixe,  falando  no  diamam,  a  muita 
cantidade  que  ha  delle  nas  terras  de  Cambaia,  e  de  Bisnaguer 
e  Geilam,  e  em  outros  muytos  cabos.  A  crisolita  ha  em  Cei- 
lam,  e  as  ametistas  também ;  e  asi  ha  em  Balagate  do  Niza- 
moxa  estas  pedras  e  outras  muytas;  e  todo  aquelle  Balagate 
está  cercado  de  muytos  géneros  de  pedras  (8).  A  alaqueca 
chamada  de  nós  (que  he  em  Arábio  chamada  quequtj,  vai 
hum  arrátel  desta  pedra  lavrada  em  peças  meudas  hum  real 
castelhano ;  e  esta  pedra  tem  a  vertude  mais  crara  que  to- 
dallas  outras,  porque  estanca  o  sangue  mui  de  supito  (9). 

RUANO 

Os  olhos  de  gato  me  parecem  muyto  bem;  onde  os  ha? 

ORTA 

Os  milhores  ha  em  Ceilam,  e  valem  mais  cá  que  em  Por- 
tugal, porque  eu  vi  hum,  levado  pêra  Portugal,  que  valia  cá 
600  cruzados,  e  em  Portugal  não  davam  por  elle  mais  que 
90,  e  tornou  cá  e  foy  vendido  por  sua  valia :  e  por  isso  não 
leveis  de  cá  estas  pedras  pêra  Portugal  por  mercadoria  (10). 

RUANO 

Que  propriedade  tem? 

ORIA 

Diz  a  gente  desta  terra,  que  tem  a  propriedade  de  con- 
servar ao  homem  nas  riquezas  que  tem,  e  não  diminuir 
delias,  e  porém  que  se  pode  acresentar  mais  nellas. 

RUANO 

Onde  ha  estes  rubiiis,  que  mo  não  dixestes? 

ORTA 

Alguns  poucos  ha  em  Ceilam,  porém  sam  muito  bons, 
outros  vem  do  Pegú,  e  dizse  que  vem  ali  ter  das  terras  do 
Brama,  que  he  muyto  longe.  E  isto  sam  emformações  as 
mais  certas  que  tenho;  se  nisto  erro  alguma  cousa,  perdo- 
aime,  que  nam  sei  inteiramente  todas  as  cousas. 


Das  pedras  preciosas  223 


Nota  (i) 

A  formula  do  «letuario  de  gemis»,  extrahida  de  uma  pharmacopêa 
pouco  posterior  ao  tempo  de  Orta,  é  a  seguinte : 

ELECTARIUM  DE  GEMMIS  SINE  SPECIEBUS  DOMINI  MESUES 

R.    Margaritarum  albarum — drachmas  duas 
Goralli  rubri — scrupulos  duos 


Sapphirorum 

Hyacinthorum 

Granatorum 

Sardii 

Smaragdi 

Foliorum  auri 

Foliorum  argenti 


—ãn  drachman  unam 
et  semifsem 


Misce  et  fac  pulverem  artificiose'. 

Parece,  pois,  que  os  fragmenta  pretiosa  eram  a  sapphira,  jacintho, 
granada,  sardonix  e  esmeralda.  Sobre  a  applicação  d'estes  nomes  havia, 
porém,  duvidas,  não  se  sabendo  bem  ao  certo  o  que  fosse  o  jacintho 
e  a  sardonix.  Também  não  é  claro  que  a  esmeralda  devesse  entrar 
n'esta  composição.  Mesué  havia  indicado  um  dos  ingredientes  com  o 
nome  de  ferujegi,  que  os  commentadores  suppunham  em  geral  ser  a 
esmeralda: fem^egi  id  est  smaragdi;  mas  Orta,  como  melhor  ve- 
remos em  outra  nota,  tem  duvidas  e  bem  fundadas  de  que  o  feru^egi 
de  Mesué  seja  eftectivamente  a  esmeralda. 


Nota  (2) 

Reuniremos  n'esta  nota  o  que  diz  respeito  á  sapphira  e  ao  rubim, 
de  que  Orta  falia  no  seguimento  do  Colóquio.  As  duas  pedras  são  simples 
variedades  da  mesma  espécie  mineralógica,  o  eoryiiíloii.  [telesio  de 
Haiiy),  um  sesquioxydo  de  alumínio;  e  é  notável  que  Orta  suspeitasse 
já  este  facto,  comquanto  não  podesse  saber  que  a  composição  chimica 
das  duas  pedra  é  idêntica  ou  quasi  idêntica,  nem  que  ellas  crystallisam 
no  mesmo  systema.  E  muito  explicito  a  este  respeito:  «e  porque  a  ça- 
fira  e  rubim  dizem  ser  de  uma  roca,  portanto  se  acha  em  huma  pedra 
hum  rubim  meo  çafira  e  meo  rubim».  São  hoje  bem  conhecidas  estas 


224  Colóquio  quadragésimo  quarto 

pedras  de  duas  cores.  O  sr.  Streeter  affirma  ter  tido  em  seu  poder 
um  coryndon  de  20  quilates,  meio  azul  e  meio  vermelho;  e  cita  uma 
noticia  de  Crawfurd,  a  quem,  estando  em  Ava,  trouxeram  á  venda  duas 
pedras  d'esta  natureza,  uma  das  quaes  era  dividida  pelas  cores  azul  e 
vermelha  em  duas  partes  iguaes.  É  justo  dizer,  que  Duarte  Barbosa 
tinha  a  mesma  correcta  noção  sobre  a  identidade  fundamental  das  duas 
pedras.  Paliando  do  topapo  diz  o  seguinte:  «he  pedra  mui  dura  e  mui 
fria  e  do  peso  do  Rubi  e  Safira,  porque  todas  três  são  de  huma  mesma 
espécie».  Esta  phrase  é  extremamente  notável,  e  é  exactíssima,  admit- 
tindo  que  Barbosa  se  referia  ao  topasio  oriental,  uma  variedade  ama- 
rella  do  coryndon. 

A  respeito  dos  rubins  e  de  antigas  lendas,  Orta  falia  unicamente  da 
que  lhes  attribuia  luz  própria,  chamando-lhe  sem  hesitação  «ditos  de 
velhas».  A  idéa  era  antiga,  e  nasceu  naturalmente  do  brilho  e  côr  do  ru- 
bitn,  que  lhe  davam  a  apparencia  de  possuir  luz  e  calor  próprios,  e  de 
onde  lhe  vieram  os  nomes  de  xvâpa;  e  de  carbunculus.  Plinio  diz,  que 

os  sinetes  de  carbúnculos  derretiam  a  cera ceras  signantibus  his 

liquescere,  quamvis  in  opaco.  O  conhecido  peregrino  buddhista  do  vii  sé- 
culo, Huen  Thsang,  affirma  que  um  rubim,  collocado  sobre  o  templo 
de  Ceylão  onde  se  guardava  o  dente  de  Buddha,  se  via  brilhar  em  noites 
serenas  a  uma  distancia  de  10:000  //.  E,  muitos  séculos  depois,  o  fa- 
moso e  pouco  verídico  viajante,  Sir  John  Maundeville,  falia  de  um  ru- 
bim ou  carbúnculo  de  meio  pé  de  comprimento,  que  o  Grão  Cão  do 
Gathay  tinha  em  um  dos  seus  quartos  e  illuminava  de  noite  todo  o  apo- 
sento. 

Acerca  da  procedência  dos  rubins,  Orta  sabia  em  primeiro  logar  que 
estas  pedras  vinham  de  Ceylão,  o  que  é  exacto.  Aquella  formosa  ilha 
deveu  uma  parte  da  reputação,  de  que  gosou  desde  tempos  muito  anti- 
gos, ás  suas  pedras  preciosas  e  nomeadamente  aos  seus  rubins.  Entre 
os  variados  nomes  da  ilha,  Taprobana,  Serendib  e  muitos  outros,  en- 
contram-se  alguns  derivados  d'aquella  circumstancia,  como  Ratnadvipa, 
a  ilha  das  pedras  preciosas,  ou  DJaprat  ai-  Yacut,  a  ilha  dos  rubins.  Orta 
conhecia  igualmente  a  sua  procedência  do  Pegu,  como  a  conheciam 
outros  escriptores  portuguezes  do  seu  tempo.  «Achão-se  principal- 
mente» —  diz  Duarte  Barbosa —  «em  um  rio  chamado  Pegu,  e  estes  são 

os  melhores  e  mais  finos».  Gaspar  Corrêa  dá  a  mesma  noticia  « 

e  mormente  por  amor  dos  rubys,  que  comprão  escondidos,  que  na  terra 
(Pegu)  ha  os  milhores  que  se  achão  na  índia».  Orta  sabia  mais,  que  estes 

rubins  vinham  do  interior «vem  ahi  ter  das  terras  do  Brama,  que 

he  muyto  longe».  O  mesmo  sabia  Duarte  Barbosa,  dizendo  que  para 
dentro  de  Daua  (de  Ava),  em  roda  de  «Capeiam»  se  «achaom  muitos 
rubis,  que  trazem  a  vender  á  feira  Daua».  A  situação  exacta  d'estas 
minas  de  rubins  foi  desconhecida  durante  muito  tempo;  mas  recente- 
mente um  relatório  do  sr.  W.  Lockhart,  engenheiro  da  Burma  Ruby 


Das  pedras  preciosas  22  5 

Mining  Company,  diz  que  os  jazigos  se  encontram  na  margem  esquerda 
do  Iravady,  muito  acima  de  Mandalay  e  da  antiga  capital  Ava,  em  volta 
da  villa  de  Mogok,  e  da  localidade  de  Kyat-piyu,  que  deve  ser  o  «Ca- 
peiam» de  Barbosa.  Como  se  vê,  aquellas  minas  estão  e  estavam  situa- 
das no  alto  Burmá,  em  plenas  «terras  do  Brama»,  ficando  assim  per- 
feitamente confirmadas  as  noticias,  alcançadas  por  Orta  e  Barbosa  ha 
mais  de  três  séculos. 

Quanto  á  procedência  das  sapphiras,  Orta  indica  Ceylão  e  Pegu,  o  que 
é  exacto,  pois  em  ambas  as  regiões  se  encontram  á  mistura  com  os  ru- 
bins;  e  indica  também  o  Malabar  e  terras  de  Vijayanagara,  no  que  pôde 
haver  um  engano,  tendo  elle  tomado  outras  pedras  por  verdadeiras  sa- 
pphiras (Cf.  Jannetaz,  Diarnant  et  Pierres précieuses,  243,  Paris  1881; 
Streeter,  Precious  stones  and  gems,  i5i,  168,  London,  i892;Tavernier, 
Voyages,  355;  Plinius,  xxxvii,  25;Yule,  Cathay,  clxxvii;  e  Marco  Polo, 
II,  296;  Duarte  Barbosa,  Livro,  363,  3/6,  38 1;  Gaspar  Corrêa,  Len- 
das, III,  85 1). 

Ao  mesmo  tempo  que  Orta  approximava  a  sapphira  do  rubim,  não 
obstante  terem  cores  diversas,  separava  do  verdadeiro  rubim  algumas 
pedras  vermelhas,  e  habitualmente  designadas  pelo  mesmo  nome,  o 
rubim  balax  e  o  rubim  espinela.  Ainda  n'este  caso  tinha  rasão;  aquel- 
las pedras  pertencem  á  espécie  mineralógica  ^pinela.,  um  alu- 
minato  de  magnesia,  crystalisando  no  systema  cubico.  Orta  caracterisa 
bem  as  suas  cores,  mais  «cheguada  á^braza»  na  espinela,  e  mais  des- 
maiada no  balax;  e  separa-as  do  rubim  oriental\>\i  coryndon  vermelho 
por  uma  nota  bem  observada:  «porque  não  tem  as  aguas  do  verda- 
deiro rubim».  Barbosa  também  as  distingue,  dando  sobre  a  sua  pro- 
cedência algumas  noticias  interessantes,  e  indicando  a  origem  do  nome 
de  balax  ou  balass,  pois  diz  que  vinham  da  «Balassia»,  uma  terra  firme 
para  dentro  de  Pegu  e  Bengala.  O  nosso  Duarte  Barbosa  não  podia 
conhecer  a  geographia  do  interior  tão  bem  como  a  do  littoral;  e  a  sua 
Balassia,  isto  é  o  Badakhshan,  ficava  muito  longe  d'ali,  para  os  lados 
do  alto  Oxus  e  do  Pamir.  Ibn  Batuta  explica  muito  bem  a  derivação 
do  nome,  dizendo  que  o  rubim  badakhshi,  se  chamava  vulgarmente 
al-balakhsh. 

Orta  distingue  também  a  sapphira  de  agua  da  verdadeira  sapphira 
oriental.  E  provável,  que  elle  designasse  já  por  aquelle  nome  a  mesma 
pedra  a  que  hoje  se  applica,  a  coi*d.iei*ite  (ou  iolitej,  um  silicato 
de  alumina,  magnesia  e  oxydo  de  ferro,  bastante  commum  em  Cey- 
lão; mas  é  possivel,  que  algumas  das  suas  sapphiras  «muito  craras» 
fossem  simplesmente  variedades  azuladas  do  crystal  de  rocha,  ás  quaes 
ainda  no  tempo  de  Romé  de  Lisle  se  dava  também  o  nome  de  saphir 
d'eau  (Cf.  Jannetaz,  i.  c,  254  e  278;  Streeter,  1.  c,  208  e  294;  Barbosa, 
Livro,  278;  Yule  e  Burnell,  Gloss.,  39;  Haúy,  Traité  de  mineralo- 
gie,  11,418). 

i5 


220  Colóquio  quadragésimo  quarto 


Nota  (3) 

Varias  pedras  têem  recebido  o  nome  dejacinthos  ou  hiacinthos;  e  por 
vezes  estas  duas  formas  do  mesmo  nome  têem  sido  applicadas  por  di- 
verso modo,  comquanto  habitualmente  se  tomem  como  synonymos. 
Não  é  fácil  saber,  se  o  «jacinto»  de  Orta  seria  uma  variedade  át  coryndon 
chamada _;"acm//zo  oriental,  ou  o  silicato  de  zirconia,  também  chamado 
jacintho;  mas  é  mais  provável,  que  elle  designasse  assim  uma  variedade 
amarella  alaranjada  da  gi^anacla  (um  silicato  de  alumina  e  outras 
bases)  bastante  frequente  em  Ceylão.  Se  Orta  diz,  que  estas  pedras  se 
encontravam  em  abundância  nos  portos  commerciaes  de  Calicut  e  Ca- 
nanor,  é  porque  as  traziam  para  ali  de  Ceylão.  Quanto  ás  granadas 
ordinárias  de  côr  escura,  alem  de  virem  de  Ceylão,  encontravam-se  em 
varias  partes  do  Hindustão,  e  por  isso  Orta  diz  serem  frequentes  nos 
mercados  do  interior.  Estas  pedras  eram  communs  e  deviam  ser  extre- 
mamente baratas,  tendo  sobretudo  em  vista,  que  Orta  não  falia  como 
um  joalheiro,  procurando  bonitos  e  grandes  exemplares,  mas  simples- 
mente como  um  medico,  contentando-se  com  pequenos  fragmentos, 
próprios  para  o  uso  das  boticas  de  então. 

Em  um  dos  paragraphos  seguintes,  Orta  falia  dos  jacintJios  (granadas) 
de  Bellas.  É  bem  sabido,  que  não  longe  de  Bellas,  nos  basaltos  do  monte 
Suimo,  assim  como  em  Cintra,  na  zona  de  contacto  dos  terrenos  sedi- 
mentares e  eruptivos,  se  encontram  granadas,  que  em  tempos  deram 
logar  a  algumas  explorações  ou  tentativas  de  exploração.  A  existência 
d'estas  pedras  parece  haver  chegado  já  ao  conhecimento  de  Plinio, 
o  qual,  fundando-se  na  auctoridade  de  um  certo  Bocchus,  diz  encon- 
trarem-se  carbúnculos  (e  por  esta  palavra  designava  qualquer  pedra  ver- 
melha ou  roxa)  nos  campos  de  Lisboa:  Bocchus  et  in  Olisiponensi  erui 
scripsit,  rnagyio  labore  ob  argillam  soli  adusti.  (Cf.  Jannetaz,  i.  c,  Syi 
e  seguintes;  Plinio,  xxxvii,  25). 


Nota  (4) 

«Ha  muyta  deferença  em  saber  que  pedra  he  a  sardonix»,  diz  o  nosso 
escriptor.  Seria  eífectivamente  difficil  averiguar  o  que  era  a  pedra  d'este 
nome,  engastada  no  logar  superior  á  direita  no  racional  do  summo  sa- 
cerdote hebraico ;  ou  o  que  era  a  pedra  do  anel,  lançado  ao  mar  por 
Polycrates  de  Samos,  e  maravilhosamente  encontrado  depois  no  interior 
do  peixe.  É  pouco  provável,  que  estas  famosas  pedras  fossem  simples- 
mente as  agathas  com  veios  corados,  bastante  communs,  a  que  hoje 
chamamos  sardonix.  Orta  não  trata  de  profundar  muito  a  questão,  e 
diz  com  uma  certa  indifferença :  quando  não  tiverem  sardonix,  sirvam- 


Das  pedras  preciosas  227 

se  dos  jacintos  ou  granadas — evidentemente  o  effeito  therapeutico  de- 
via ser  o  mesmo. 

« 

Nota  (5) 

Orta  falia  da  verdadeira  esiiti.ci*alcla,  um  silicato  de  alumina 
e  glucina,  tendo  a  composição  chimica  do  berylo  e  da  agua  marinha; 
mas  distinguindo-se  bem  d'estas  pedras  vulgares  e  de  baixo  preço,  pela 
cór  verde,  intensa  e  caracteristica. 

A  esmeralda  era  n'aquelle  tempo  uma  pedra  rara  e  cara,  a  mais  cara 
de  todas;  e  Orta  ignorava  a  sua  procedência:  «e  não  se  sabe  a  própria 
roca  d'ellas».  Um  século  depois,  Tavernier,  não  obstante  haver  percor- 
rido todo  o  Oriente,  occupando-se  muito  particularmente  do  commer- 

cio  das  pedras  preciosas,  Tavernier  estava  na  mesma  ignorância : 

j'avouequeje  n'ay pii  encore  découvrir  les  lieux  et  les  endroits  de  nostre 
Continent  d'oii  on  tire  ces  sortes  de pierres.  Parece  que  as  esmeraldas 
dos  antigos,  pelo  menos  a  parte  do  que  elles  chamaram  Gu.apa-j-^ci;  e  sma- 
ragdiís  que  se  pôde  considerar  como  sendo  a  verdadeira  esmeralda, 
porque  sob  aquelle  nome  elles  designaram  evidentemente  variadas  pe- 
dras verdes,  parece  — digo —  que  as  esmeraldas  dos  antigos  procediam 
principalmente  da  Africa,  por  exemplo,  de  Sikait  e  Djebel  Zabbara  no 
alto  Egypto,  a  leste  do  Nilo  e  não  longe  das  costas  do  mar  Vermelho. 
Cosmas  Indicopleustes  já  falia  (545  prpximamente)  d'estas  esmeraldas 
da  Ethiopia,  que  eram  levadas  para  a  índia,  e  pagas  ali  por  altos  preços. 
Edrisi  (1154)  ainda  se  refere  ás  minas,  situadas  nas  proximidades  de 
^u~.l,  Asuan,  como  sendo  activamente  exploradas  no  seu  tempo;  mas 
caíram  depois  n'um  certo  abandono,  ou  pelo  menos  n'uma  certa  obscu- 
ridade. Como  acabamos  de  ver,  eram  completamente  ignoradas  de  Gar- 
cia da  Orta  e  de  Tavernier.  Duarte  Barbosa  tem,  porém,  a  este  respeito 
uma  indicação  muito  notável:  «as  esmeraldas  nascem  no  Reino  (paese) 
de  Babilónia,  aonde  os  Índios  chamão  o  Mar  Deiguan».  Não  sei  o  que 
os  Índios  chamariam  mar  Deiguan;  mas  o  reino  ou  paiz  de  Babilónia 
no  tempo  de  Barbosa  (i5i6)  deve  ser  o  Egypto;  e  temos  assim  mais 
uma,  na  extraordinária  copia  de  informações  exactas,  colligidas  por 
aquelle  escriptor.  O  flamengo  Linschoten,  copiando  muitas  cousas  de 
Orta,  dá  no  emtanto  noticias  suas,  e  entre  ellas  uma  que  concorda  com 
a  de  Barbosa:  ex  Cayro  ALgypti  orientales  (smaragdi)  qiioque  dicti 
multi  in  Indiam  deferuntur.  Isto  está  de  accordo  com  a  opinião  de  Laet 
— citado  por  Streeter —  de  que  se  tiraram  esmeraldas  d'aquellas  minas 
até  ao  XVII  século.  Esta  velhas  minas  abandonadas  do  Egypto  foram 
visitadas  no  principio  do  nosso  século  pelo  francez  Cailliaud,  e  muito 
recentemente  (1891)  pelo  sr.  E.  A.  Floyer,  que  escreveu  acerca  delias 
uma  noticia  interessante.  Fora  da  Africa,  algumas  esmeraldas  se  encon- 
travam na  Ásia  central,  mas  em  regiões  afastadas  e  mal  conhecidas, 


228  Colóquio  quadragésimo  quarto 

que  muito  naturalmente  escaparam  ás  investigações  de  Orta  e  Taver- 
nier. 

Alguns  annos  antes  de  o  nosso  Orta  escrever  haviam  começado  a 
vir  para  a  Europa  e  para  o  Oriente  as  estneraldas  do  Peru,  que  mais 
tarde,  pela  sua  relativa  abundância,  determinaram  uma  grande  baixa  de 
preço.  Orta  conhecia-as,  e  tinha-as  na  conta  de  falsas.  Isto  é  mais  uma 
prova,  sobre  muitas,  de  que  elle  se  deve  considerar  um  tanto  parcial  no 
que  diz  respeito  ás  cousas  das  índias  occidentaes.  Aquellas  riquíssimas 
possessões  dos  hespanhoes  otfuscavam-no,  como  oftuscavam  quasi  to- 
dos os  portuguezes,  e  esta  espécie  de  ciúme  ou  rivalidade  traduzia-se 
por  vezes  em  apreciações  menos  justas.  Ao  contrario  do  que  elle  diz,  as 
esmeraldas  da  America  eram  perfeitamente  verdadeiras  e  de  excellente 
qualidade  e  agua.  Pelo  que  diz  respeito  ás  propriedades  medicinaes 
d'aquellas  esmeraldas,  as  duvidas  eram  naturaes,  e  não  foram  manifes- 
tadas unicamente  pelo  nosso  escriptor.  Na  formula,  por  exemplo,  da 
Lunonata  smaragdorum,  recommenda-se  expressamente  o  emprego  das 
esmeraldas  orientaes^,  condemnando-se  implicitamente  o  das  occiden- 
taes.Todo  o  empenho  consistia  então  em  encontrar  os  verdadeiros  in- 
gredientes, mencionados  pelos  antigos,  e  acceitavam-se  difficilmente 
estas  pedras  novas,  vindas  de  uma  região  nova,  não  conhecida  de  Avi- 
cenna  e  de  Mesué.  É  claro  que  tudo  isto  nos  parece  hoje  pueril;  mas 
quem  sabe  se  a  medicina  futura  não  considerará  também  pueris  algu- 
mas das  distincções  que  hoje  se  fazem  (Cf  Tavernier,  Voyages,  ii,  35q; 
Edrisi,  Géogr.,  i,  36;  Duarte  Barbosa,  Livro,  382;  Linschoten,  Naviga- 
tio,  86;  Streeter,  1.  c,  222;  Jannetaz,  1.  c,  262;  Concórdia pharmac,  28). 


Nota  (6) 

E  difficil  annotar  com  uma  certa  ordem  este  desordenado  Colóquio, 
e  reuniremos  aqui  as  breves  reflexões  a  fazer  sobre  o  pouco  que  Orta 
diz  da  tiirqiieja  em  todo  o  Colóquio.  Elle  sabia  que  estas  pedras  vinham 
da  Pérsia,  como  o  sabiam  em  geral  os  portuguezes  do  seu  tempo,  por 
exemplo,  Pedro  Teixeira,  o  qual  marca  exactamente  a  situação  das 
minas  em  «Nixábur»,  ou  Nischapur.  Orta  diz-nos,  também,  que  os  «mou- 
ros», não  os  hindus,  consideravam  a  turque:;a  medicinal.  A  este  respeito 
faz  algumas  considerações  interessantes.  Mesué  havia  indicado,  entre 
os  componentes  do  Electarium  de  gemmis,  um  denominado  ferur^egi, 
que  os  commentadores,  como  Cristóvão  de  Honestis  e  outros,  interpre- 


'  Isto  é,  esmeraldas  de  procedência  oriental  ou  do  Velho  Mundo;  e  não  o  que  os  livros 
especiaes  chamam  hoje  esmeralda  oriental,  que  é  uma  variedade  verde  do  coryndon,  exce- 
pcionalmente rara. 


Das  pedias  preciosas  229 

tavam  esmeralda,  que  nas  Pharmacopêas  se  tomava  também  pela  esme- 
ralda: feru^egi,  id  est  smaragdi;  mas  que  Orta  quer  que  seja  a  tur- 
que^a.  Orta  tem  rasão;  o  nome  arábico  da  turquesa  é  ^\^jj^jiru^edj\ 

derivado  do  persiano  s\j^,  piru:^á,  portanto  o  feru^egi  das  translit- 
teraçóes  latinas  é  claramente  a  turquesa  (Teixeira.  Relaciones,  i56; 
Freytag,  Lexicon  s.  v.). 

Nota  (7) 

Orta  deve  ter  rasão,  quando  diz  que  a  grande  pedra  de  Génova  não 
deveria  ser  uma  esmeralda,  e  sim  qualquer  outra  pedra  verde,  talvez 
um  jaspe.  Do  mesmo  modo,  como  já  indicámos,  algumas  das  enormes 
pedras,  mencionadas  por  Theophrasto  como  (i;i.á:5',-/),oç,  e  por  Plinio 
como  smaragdus,  podiam  ser  tudo,  menos  verdadeiras  esmeraldas 
(Theophrasto,  De  Lapidibus,  344,  edição  Wimer;  Plinio,  xxxvii,  19). 

Orta  falia  das  «porcelanas»  ás  jaspe  verde  que  se  vendiam  na  índia, 
tomando  a  palavra  no  sentido  de  taça,  independentemente  da  substancia 
de  que  era  formada.  Porcelana  parece  ter  significado  primitivamente 
a  concha  de  um  moUusco,  cuja  madre  pérola  se  applicava  ao  revesti- 
mento de  objectos  de  ornato  e  de  taças.  Tem  este  sentido  em  um  do- 
cumento portuguez  do  século  de  Orta.  No  dote  da  infanta  D.  Beatriz, 
duqueza  de  Saboya,  figuram  (i522):  «Seis  manilhas  de  porcelana,  en- 
castoadas em  ouro;  e  ás  duas  falecem  peças  de  porcelana».  Eviden- 
temente a  palavra  designa  aqui  uma  substancia,  que  revestia  as  mani- 
lhas ou  pulseiras.  Pelo  facto  d'aquella  substancia  revestir  algumas  taças 
passou  depois  a  significar  a  taça.  Em  uma  relação  de  objectos  perten- 
centes á  guarda  roupa  de  El-Rei  D.  Manuel,  encontra-se  a  seguinte 
menção:  «quatro  porcelanas  da  China  de  prata«;  e  em  um  inventario 
de  jóias  e  prata  a  cargo  da  camareira  D.  Mecia  Dandrade  (i558)  vem 
indicadas:  «Quatro  porcelanas,  a  saber,  três  de  ágata,  uma  de  jaspe, 

guarnecidos  bocal  e  pé  de  ouro ».  E  exactamente  o  sentido  em  que 

Orta  toma  a  palavra.  Mais  tarde  a  mesma  palavra  passou  naturalmente 
a  designar  uma  substancia  de  que  se  faziam  taças,  e  fixou-se  no  sentido 
que  ainda  conserva.  Mais  alguma  cousa  haveria  a  dizer  sobre  estas  va- 
riações de  sentido,  com  as  quaes  não  concordam  todos  os  etymologis- 
tas;  mas  não  temos  tempo  para  debater  este  ponto  especial  (Cf  Pro- 
vas da  Hist.  Genealog.,  11,  348,  460,  776) . 


Nota  (8) 

A  amethista,  uma  variedade  roxa  do  qtiíirtzo  hialino,  é  fre- 
quente em  Ceylão  e  outras  regiões.  O  nome  de  crysolitha  tem  sido 
dado  a  diversas  pedras;  mas  parece  que  Orta  quereria  fallar  da  cryso- 


23o    Colóquio  quadrageshno  quarto  das  pedras  preciosas 

litha  oriental,  uma  variedade  do  ci:*ysol>ei-yl  (ou  cymophana),  um 
aluminato  de  glucina,  que  se  encontra  no  Oriente,  Pegu,  Borneo,  Cey- 
lão  (Cf.  Jannetaz,  i.  c.  259). 

Nota  (9) 

A  laqueca  ou  alaqueca  era  a  variedade  vermelha  ou  côr  de  carne 
da  ealcedonia  (um  quart:^o  amorpho  e  semi-transparente)  vulgar- 
mente chamada  hoje  cornalina  ou  cornelina.  O  antigo  nome  portuguez 
vinha  do  arábico  'aqiqá  («quequi«  do  nosso  Orta),  junto  ao  artigo,  ia^sJ! 
alaqiqa  (Sousa,  Vestígios,  \<\3\  Dozy,  56). 

A  laqueca  encontrava-se  nas  terras  do  Guzerate,  em  uma  locaHdade 
chamada  «Limadura»,  e  dava  logar  a  um  commercio  de  certa  activi- 
dade. Eis  o  que  diz  Duarte  Barbosa: 

«Indo  mais  ha  ho  diante  desta  cidade  de  Cambaya,  ha  ho  certam 
dela,  está  huu  lugar  que  chamaom  Limadura,  honde  está  húa  pedra 
(pedreira)  dalaqueca,  que  he  huma  pedra  branqua  leitenta  e  vermelha, 
e  dentro  no  foguo  ha  fazem  muyto  mais  vermelha;  arranquam-na  em 
muy  grandes  pedaços,  e  aquy  ha  grandes  mestres  que  a  lavraom,  e  fu- 
raom  e  fazem  de  muytas  feições,  scilicet,  compridas,  outavadas,  redon- 
das, folhas  doliveia  (?),  e  em  muytos  anéis,  cabos  de  tresados  e  adaguas, 
e  de  outras  maneiras». 

Dá  depois  noticia  de  que  estes  objectos  de  laqueca  saíam  d"ali  para 
o  Mar  Roxo,  para  a  Arábia,  Pérsia,  e  «pêra  a  índia  (Goa  e  índia  por-- 
tugueza)  honde  as  nossas  gentes  as  compraom  pêra  levarem  a  Por- 
tugal». Na  Lembrança  das  Cousas  da  Ymdea  encontra-se  também  uma 
longa  lista  de  preços  da  «alaqueca  de  canudo,  dolyveta  (?),  de  co- 
souro  (?j«,  e  de  contas,  anéis,  cabos  de  facas,  colheres,  garfos,  tachas 
de  punhaes,  tudo  feito  d'aquella  pedra,  e  valendo  preços  relativamente 
muito  baixos  (Cf.  Barbosa,  Livro,  286;  Lembrança,  5i). 

A  virtude,  attribuida  á  laqueca,  de  estancar  o  sangue,  era  muito  sa- 
bida, e  vem  citada  repetidas  vezes  em  livros  antigos,  por  exemplo,  no 
de  Ibn-al-Baitâr  (citado  por  Dozy). 


Nota  (10) 

A  diversas  pedras  se  deu  o  nome  de  olho  de  gato,  por  exemplo,  a 
algumas  variedades  de  quartzo;  mas  o  verdadeiro  olho  de  gato  de  Cey- 
lão,  parece  ser  — segundo  Streeter —  uma  variedade  do  crysoberyl  já 

citado.  João  Ribeiro  descreve-o  com  muito  enthusiasmo «mos- 

trão  (estas  pedras)  uma  côr  composta  de  quantas  Deos  creou  :  nenhuma 
d'ellas  per  si  se  divisa,  de  todas  se  faz  uma  composição  maravilhosa» 
(Streeter,  1.  c,  228;  Ribeiro,  Fatalidade,  60). 


COLÓQUIO   QUADRAGÉSIMO   QUINTO 

DA  PEDRA  BEZAR 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 
ORTA 

Muito  me  maravilho  não  me  perguntardes  poWn  pedra  be- 
■{ar,  pois  he  tam  louvada  de  todos  os  Arábios,  e  com  muita 
rezam. 

RUANO 

Não  vos  perguntei  por  ella,  porque  )á  na  pratica  que  ti- 
vemos sobre  a  colérica  pasto  a  louvastes  muyto,  e  eu  leixava 
de  vos  falar  nella,  por  me  parecer  cousa  falsificada  polia 
maior  parte;  e  nam  por  ella  não  ser  tam  louvada,  que  as 
mezinhas  que  livram  de  peçonha,  lhe  chamamos  be:{edaricas 
per  excelência*;  por  tanto  me  fareis  muita  mercê  de  me  dizer 
em  breves  ditos  de  seu  nacimento,  e  eleiçam,  e  falsificaçam, 
e  o  pêra  que  se  usa  na  gente  desta  terra,  e  se  sam  estimadas 
em  muyto. 

ORTA 

Chamase  o  carneiro  (ou  mais  verdadeiramente  hoáé)  pa- 
\am  em  lingua  da  Pérsia,  e  ha  este  carneiro  no  Coraçone  e 
na  mesma  Pérsia;  e  eu  vi  aqui  em  Goa  hum  ruivo  e  grande, 
e  dixeramme  que  avia  outros  mais  pequenos  e  da  mesma 
cor,  e  doutra  cor.  E  nos  buchos  destes  bodes  se  cria  esta 
pedra  sobre  huma  muyto  delgada  palha,  que  está  no  meo, 
e  ahi  se  vai  tecendo,  e  fazemdo  casco,  como  de  cebola; 
a  qual  he  feita  como  huma  coluna  redonda,  e  ás  vezes  não 
he  de  huma  feiçam;  e  muytas  vezes  se  acha  esta  palha  na 
pedra,  como  eu  já  vi;  e  outras  vezes  não  lha  acham,  e  por 


*  Monardes  usa  a  mesma  expressão; omnia  medicamenta  ve- 

nenis  resistentia,  be^aardica  per  excellentiam  nuncupentur. 


232  Colóquio  quadragésimo  quinto 

a  maior  parte  he  muyto  lisa,  e  a  cor  he  como  de  bringela-, 
e  ha  as  grandes  e  pequenas;  e  os  senhores  estimam  em 
mais  as  muyto  grandes,  porque  dizem  que  no  maior  corpo 
consiste  a  maior  virtude;  e  eu  tive  cá  huma  que  pesava 
perto  de  cinquo  oitavas,  e  comtudo  em  Pormgal  foy  estimada 
em  pouquo;  e  comtudo  deuse  lá  por  3o  e  dous  mil  reis, 
e  cá  custou  mais  alguma  cousa.  E,  senão  fora  por  a  diligen- 
cia que  teve  quem  a  vendeo,  nam  se  achara  dinheiro  por 
ella;  porque  trabalhou  muyto  polia  vender  bem. 

RUANO 

Sabeis  certo  de  como  se  gera? 

ORTA 

Si,  porque  desfazendo  a  pedra,  acheia  feita  sobre  esta 
delgada  palha;  e  homens  dignos  de  fé  me  dixeram,  que  asi 
eram  todas  em  Ormuz.  E  depois  me  achei  em  huma  armada, 
na  ilha  das  Vacas,  (que  he  alem  do  cabo  de  Comorim)  onde 
vi  matar  mu3'tos  bodes  pêra  a  armada,  que  eram  muyto 
grandes;  e  os  bodes  grandes,  polia  mor  parte,  tinham  esta 
pedra  no  bucho;  onde  ouve  muytas  pedras  a  gente  que  as 
quis  buscar.  E  depois  ficou  em  custume  aos  que  tomam 
aquella  ilha  de  matarem  muytos  bodes;  e  tomaram  aos  de 
Benfiala  aquella  ilha,  pêra  descaregar  alguma  parte  do  na- 
vio, por  causa  dos  baixos  de  Ghilam,  assi  que  sempre  trazem 
dahi  muytas  pedras  de  be\ar  (i). 

RUANO 

Logo  não  as  ha  somente  na  Pérsia? 

ORTA 

Tendes  muyta  rezam,  porque  também  as  ha  aqui  nesta 
ilha  que  dixe,  e  asi  as  ha  em  algumas  partes  de  Malaqua; 
porém  temse  por  muyto  milhores  as  da  Pérsia,  e  as  do 
Goraçone;  e  conhecem  os  Mouros  a  deferença  que  ha  emtre 
humas  pedras  e  outras;  e  pêra  saber  se  sam  falsificadas, 
apertam  as  na  mão,  e  lhe  asopram  pêra  ver  se  lhe  sai  o 


Da  pedra  be^ar 


233 


vento;  porque  estas  tem  elles  por  contrafeitas.  Chamase  esta 
pedra  pa^ar,  do  pa-{am  (bode  asi  chamado),  e  asi  quando 
vos  cá  pedem  alguma  mezinha  contra  a  peçonha,  lhe  cha- 
mam pa^am,  e  asi  chamam  o  locornio*  e  a  triaga  alguns. 
Este  nome  de  pa:{ar  lhe  chamam  todos  os  Coraçones  e  Pér- 
sios e  Arábios;  e  nós  os  da  Europa  coruptamente  lhe  cha- 
mamos be^ar,  e  a  gente  indiana  mais  coruptamente  lhe  chama 
pedra  de  ba^ar;  que  quer  dizer  pedra  da  praça,  ou  da  feira; 
porque  ba:{ar  quer  dizer  luguar  donde  se  vendem  as  cousas. 

RUANO 

E  pêra  que  usam  delia,  e  quem  usa  mais  delia? 

ORTA 

A  gente  desta  terra  usa  delia,  porque  nos  vê  fazer  o  mesmo 
pêra  a  peçonha;  e  os  Mouros  de  Ormuz  e  do  Coraçone 
tomão  até  3o  grãos,  quando  muyto;  e  assi  usam  desta  pe- 
dra pêra  todas  as  emfermidades  melamcolicas  e  venenosas. 
E  todallas  pesoas  ricas  se  purguam  duas  vezes  cada  anno, 
huma  per  março,  e  outra  per  setembro,  depois  de  purgados 
tomam  por  cinquo  manhans  dez  grãos  cada  manhã,  deitados 
em  aguoa  rosada;  e  dizem  que  com  isto  se  conserva  a  mo- 
cidade; e  alguns  me  dixeram  a  tomavam  cada  mez  duas 
vezes,  pêra  fortificar  os  membros  principaes,  e  pêra  serem 
mais  poderosos  nos  jogos  de  Vénus.  E  eu  seivos  dizer  que  em 
mu3'tas  enfermidades  velhas  melamcolicas  uso  delia,  asi  co- 
mo sam  sarnas  grossas,  lepra,  prurido  antigo,  empingens, 
pêra  as  quais  me  dixe  hum  guovernador  que  se  achara  bem; 
e  pêra  estoutras  emfermidades  usei  delia,  e  me  achei  muyto 
bem,  e  por  esta  rezam  me  parece  que  seria  boa  pêra  as 
quartans. 

RUANO 

E  se  hum  homem  tomar  muyta  cantidade  delia,  fazerlheha 
mal? 


*  Seguramente  um  erro  de  imprensa;  é  o  licornio  ou  unicorneo. 


234  Colóquio  quadragésimo  quinto 

ORTA 

Posto  que  esta  não  seja  mesinha  venenosa,  nem  composta 
de  veneno  como  triaga,  eu  acho  que  o  mais  seguro  he  to- 
mar delia  pouqua  cantidade.  E  asi  dam  delia  em  Ormuz 
mu3fto  pouqua;  e  dizem  que  he  mao  tomar  muita  cantidade: 
e  hum  feitor  de  Ormuz,  meu  amigo,  diziam  os  físicos  Mouros 
que  morrera  por  lhe  darem  mwyXd. pedra  be^ar;  e  tem  rezam, 
porque  as  cousas  que  usam  per  propriedade  fazem  suas 
obras  em  mais  pequena  cantidade.  E  certamente  que  me  dixe 
hum  homem  de  Ormuz,  digno  de  fé,  que  fora  lá  feitor  do 
capitam,  e  tinha  mu3'ta  conversaçam  com  esses  Mouros  on- 
rados,  que  avia  Mouros  que  estavam  mui  debilitados,  e  que 
pêra  aquella  fraqueza  queriam  tomar  a  pedra  be^ar,  e  que 
elle  os  via  tam  fracos,  que  lhe  parecia  que  não  podiam  es- 
capar, e  que  elle  dizia  aos  físicos  que  o  seu  parecer  que  era 
que  não  podiam  escapar,  e  o  físico  lhe  dizia  que,  depois  que 
tomassem  a  pedra,  que  os  olhase,  que  os  não  conheceria; 
e  que  elle  os  olhava  depois,  e  que  os  via  muyto  rijos;  por 
onde  davam  graças  a  Deos  que  tal  pedra  criara. 

RUANO 

Diz  Mateolo  Senense  que,  se  toca  a  carne  esta  pedra, 
trazendoa  no  braço,  preserva  ao  que  a  traz  de  lhe  fazer  mal 
a  peçonha;  e  diz  também  que  deitada  da  banda  de  fora, 
feita  em  pós,  sobre  as  chaguas,  que  chupa  o  veneno,  se  he 
de  mordedura  de  bicha  ou  de  cam  raivoso. 

ORTA 

o  primeiro  que  diz,  que  posta  da  banda  de  fora  perserva 
tocando  a  carne,  nam  está  cá  em  uso,  nem  se  pratica:  mas 
nas-  outras  chagas  venenosas  que  diz,  he  verdade  que  apro- 
veita, deitada  em  chagas  feita  em  pó,  se  sam  venenosas, 
dizem  muyta  verdade;  porque  eu  sei,  que  nas  chaguas  de 
todalas  mordeduras  venenosas  aproveita,  e  nas  apostemas 
da  peste,  quando  estam  abertas,  aproveita  muyto;  e  dizem 
que  perserva  da  peste  e  que  a  cura;  e  porque  nesta  terra 
as  bexigas  e  sarampam  sam  mui  venenosas  e  matam,  muy- 


Da  pedida  beiar  235 

tos  temos  qua  por  uso  darlhe  esta  pedra  be:{ar  cada  dia, 
em  cantidade  de  hum  grão  até  dous,  deitada  em  agua  ro- 
sada, e  com  isto  he  o  veneno  emfraquccido  (2). 


Nota  (i) 

Esta  viagem  de  Garcia  da  Orta  á  ilha  das  Vacas  teve  sem  duvida 
logar  no  anno  de  i543,  acompanhando  o  seu  amo  e  amigo  Martim  Af- 
fonso  de  Sousa,  já  então  governador  da  índia,  como  seis  ou  sete  annos 
antes  o  havia  sempre  acompanhado  nas  viagens  a  Diu,  ao  Malabar  e  a 
Ceylão,  sendo  elle  apenas  capitão  mor  do  mar^. 

N'aquelle  anno,  Martim  Affbnso  de  Sousa  saiu  de  Goa  com  uma 
grande  armada  de  quarenta  e  cinco  velas,  dirigindo-se  para  o  sul  em 
uma  mysteriosa  e  pouco  gloriosa  expedição,  que  deu  muito  que  fallar. 
Ou  por  ordem  expressa  de  D.  João  III  —segundo  affirma  Diogo  do 
Couto—,  ou  por  inspiração  sua  própria,  o  governador  ia  pura  e  sim- 
plesmente roubar  o  famoso  pagode  de  «Tremelle»,  e  a  feira  ou  romaria 
que  junto  d'elle  tinha  logar  em  certa  epocha  do  anno,  e  na  qual,  como 
ingenuamente  diz  Gaspar  Corrêa,  se  juntavam  todas  as  riquezas  do 
mundo:  «todolas  cousas  do  mundo  todo  onyuerso». 

A  armada  foi  de  Goa  a  Cochym,  e  de  Cochym  a  Beadala  (Vedãlay) 
na  costa  de  leste,  onde  tomou  pilotos  da  terra  para  passar  os  baixos  de 
Chilão,  indo  reunir-se  na  ilha  das  Vacas  ao  norte  dos  baixos.  Segundo 
Diogo  do  Couto,  quando  a  armada  ah  chegou  já  tinha  passado  a  mon- 
ção favorável  de  seguir  para  a  costa  de  Coromandel,  e  este  foi  o  mo- 
tivo de  o  governador  desistir  do  seu  intento.  Gaspar  Corrêa,  porém, 
conta  que  ali  vieram  trazer  más  informações  ao  governador,  dizendo- 
Ihe  ser  difficil  a  entrada  no  rio  de  Paleacate  (Pulicat  das  cartas  moder- 
nas, um  pouco  ao  norte  da  moderna  Madrasta),  e  avisando-o  de  estar  já 
reunida  muita  gente  para  defender  o  pagode,  tanta,  que  se  elle  lá  fosse 
com  dois  ou  três  mil  homens  «nom  escaparia  pé  d'elles'i.  Esta  versão  pa- 
rece-me  muito  mais  plausível;  mas,  fosse  qual  fosse  o  motivo,  Martim 
Affonso  não  passou  da  ilha  e  demorou-se  ali  algum  tempo:  «esteve  de- 
vagar na  ilha  das  Vaquas».  Não  nos  pôde  restar  duvida  alguma  de  que 
Orta  fosse  n'esta  armada,  já  porque  elle  acompanhava  sempre  Martim 


'  Sobre  estas  expedições  veja-se  Garcia  da  Orta  e  o  seu  lempo.  A  viagem  à  ilha  das 
Vacas  foi  ali  apenas  mencionada  de  passagem,  por  não  haver  reparado  attentamente  n'este 
Colóquio. 


236  Colóquio  quadragésimo  quinto 

Afíònso,  já  porque  não  sabemos  de  outra,  que  por  aquelles  tempos  ali 
se  demorasse,  e  tivesse  de  se  abastecer  da  carne  dos  bodes  e  cabras, 
abundantes  na  ilha. 

A  ilha  das  Vacas,  depois  chamada  pelos  hollandezes  ilha  de  Delft, 
estava  situada  na  bahia  de  Palk,  entre  Ceylão  e  a  índia,  e  era  pouco 
extensa,  tendo  apenas  sete  ou  oito  milhas  de  comprimento.  Tinha,  po- 
rém, agua  em  um  pequeno  lago  central,  e  abundantíssimas  pastagens; 
de  modo  que  os  portuguezes  de  Manaar  e  Jafnapatam  estabeleceram 
ali  creaçóes  de  gado.  Davam-lhe  por  isso  o  nome  de  ilha  das  Vacas,  ás 
vezes  o  de  ilha  dos  Cavallos,  e  também  o  de  ilha  das  Cabras,  segundo 
diz  Tennent,  citando  João  Ribeiro,  posto  que  eu  não  encontrasse  esta 
indicação  na  Fatalidade  histórica. 

(Cf.  Gaspar  Corrêa,  Lendas,  iv,  287  e  seguintes,  e  324  e  seguintes; 
Couto,  Ásia,  v,  IX,  7;  Tennent,  Ceylon,  11,  549.) 


Nota  (2) 

O  nosso  Orta  deriva  «bezar»  do  persiano  «pazar»;  e  esta  ultima  pa- 
lavra do  nome  do  bode  «pazam».  Não  ha  duvida  alguma  de  que  be^ar, 
ou  na  forma  hoje  mais  usada  be:^oar,  seja  o  arábico  ba^ahr,  que  corres- 
ponde ao  persiano  pajahr  ou  pad^ahr;  mas  este  vocábulo  não  tem  a 
origem  que  Orta  lhe  dá.  Pedro  Teixeira  diz:  Pa^ahar,  que  quiere  de^ir 
tanto  como  antidoto,  y  propriamente  reparo  de  ponçona  o  veneno,  de 
Zahar  que  es  nombre  general  de  qualquier  veneno,  y  pá,  reparo.  Esta 
etymologia  de  Teixeira,  seguida  no  século  passado  no  diccionario  de 
Meninski,  e  recebida  modernamente  por  Littré  e  por  Yule,  pode  accei- 
tar-se  como  segura.  A  palavra  be:;oar  encontra-se  mesmo  em  escriptores 
antigos  tomada  na  accepção  geral  de  antidoto,  usando-se  n'este  sentido 
no  Oriente,  como  indica  muito  claramente  o  próprio  Orta;  e  só  depois 
veiu  a  designar  especialmente  a  chamada  pedra  bc^oar,  por  isso  que 
esta  se  considerava  o  mais  poderoso  dos  antídotos;  não  tinha,  portanto, 
na  origem,  nenhuma  relação  com  o  nome  do  bode. 

Deu-se,  pois,  o  nome  de  pedra  be^oar  ao  calculo  intestinal  de  diver- 
sos animaes,  principalmente  ruminantes.  A  mais  celebrada  d'estas  pe- 
dras provinha  da  Pérsia,  e  procedia,  segundo  diziam,  da  cabra  selvagem, 
Capra  jEgagrus,  chamada  pelos  persas /»a5e«  ou  pa^én,  o  «pazam»  de 
Orta.  E  possível,  que  o  «bode  ruivo  e  grande»,  visto  por  Orta  em  Goa, 
fosse  efFectivamente  d'esta  raça  selvagem.  É  certo,  no  emtanto,  que  as 
cabras  domesticas  creavam  também  aquelles  cálculos.  Pedro  Teixeira, 
fallando  dos  carneros  da  Pérsia,  em  cujos  estômagos  se  encontram  os 
be^oares,  parece  mais  referir-se  a  animaes  domésticos,  que  a  uma  espé- 
cie selvagem.  As  cabras  da  ilha  das  Vacas,  nas  quaes  —segundo  Orta 
e  Teixeira —  se  encontravam  be:^oares,  considerados  apenas  inferiores 


Da  pedra  beiar  287 

aos  da  Pérsia,  eram  originariamente  domesticas,  dizendo-se  introduzi- 
das ali  pelos  portuguezes.  E  João  Baptista  Tavernier,  que  fez  o  com- 
mercio  dos  be^oares  juntamente  com  o  das  pedras  preciosas,  e  viu  as 
cabras  da  região  de  Golconda  que  os  produziam,  descreve-as  como  de 
belles  bestes,  fort  haiites,  et  qui  ont  un  poiljin  comme  de  la  soye — evi- 
dentemente uma  raça  domestica.  Isto  não  impedia,  que  os  be^oares  dos 
animaes  selvagens,  sendo  mais  raros,  fossem  por  isso  mesmo  mais  apre- 
ciados. Kampfer,  dando  nas  Amcenitates  exoticce  uma  longa  noticia  acerca 
d'estes  cálculos,  indica  como  origem  do  be^oar  oriental  legitimo,  verus 
Q pretiosus,  a  cabra  selvagem  da  Pérsia,  principalmente  da  província  de 
Lar'.  Alem  do  be^oar  legitimo  da  cabra  selvagem,  e  dos  outros  menos 
apreciados  das  raças  domesticas,  encontravam-se  em  circulação  os  que 
procediam  de  vacas,  Antílopes  e  outros  ruminantes,  assim  como  alguns, 
provenientes  de  animaes  de  distinctas  ordens. 

Orta  conhecia  a  estructura  interior  d'aquellas  concreções  intestinaes, 
formadas  de  tinas  camadas  concentiicas,  descrevendo-as  em  uma  phrase 
muito  clara:  «e  ahi  se  vae  tecendo  e  fazemdo  casco,  como  de  cebola». 
E  conhecia  também  o  facto  de  se  formarem  ás  vezes  em  volta  de  uma 
«palha»,  ou  pequeno  corpo  estranho.  Todos  os  escriptores  citados  in- 
sistem sobre  a  influencia  da  ahmentação  no  apparecimento  dos  be^oares. 
Kampfer  diz,  que  algumas  plantas  resinosas  e  muito  aromáticas,  abun- 
dantes em  certas  partes  da  Pérsia,  determinavam  a  formação  d'aquellas 
concreções.  Segundo  Tavernier,  o  be^oar  formava-se  em  volta  dos  re- 
bentos e  pequenos  ramos  de  um  arbusto  especial,  roido  pelas  cabras, 
e  do  qual  elle  não  sabia  ou  havia  esquecido  o  nome.  Na  opinião  de 
Teixeira,  o  pasto  era  la  matéria  de  las  piedras;  e  aquelle  escriptor  cita 
mesmo  a  tal  respeito  uma  observação,  que,  a  ser  exacta,  seria  conclu- 
dente. Conta  elle,  que  no  anno  de  i585  uma  grande  tempestade  innun- 
dou  toda  a  ilha  das  Vacas,  salgando  e  estragando  as  pastagens.  Leva- 
das d'ali  as  cabras,  nunca  mais  produziram  be^oares;  mas,  passados 
alguns  annos,  adoçados  e  melhorados  os  pastos,  e  tornadas  as  cabras 
á  ilha,  criarõ  piedras  como  de  antes.  A  observação  — como  disse —  é 
concludente,  e  o  facto  de  modo  algum  improvável. 

A  pedra  be^oar  gosava  de  universal  e  excepcional  reputação  ainda 
no  tempo  de  Orta.  Um  comtemporaneo  seu,  o  illustre  medico  hespa- 
nhol  Nicolau  Monardes,  reuniu  toda  a  litteratura  medica  relativa  ás  fa- 
mosas pedras  em  uma  interessante  memoria,  intitulada :  De  lapide  Be- 
:^aar  et  Scor^onera  herba.  Ali  se  podem  ver  os  louvores,  dispensados 
áquelle  celebre  antídoto  pelos  velhos  médicos,  desde  Serapio  e  Rasis, 
até  Amato  Lusitano,  Agrícola,  Musa  e  outros  do  seu  tempo.  As  opiniões 
alheias,  Monardes  acrescenta  as  observações  de  sua  própria  clinica. 


'  Não  tenho  n'este  momento  o  livro  de  Kampfer,  e  cito  em  segunda  mão. 


238  Colóquio  quadragésimo  quinto 

Conta  o  caso  de  um  filho  da  Duqueza  de  Bejar,  soffrendo  desde  creança 
de  «delíquios»  e  «syncopes»,  e  maravilhosamente  curado  por  elle  com 
a  pedra  bejoar.  Note-se,  que  as  duas  pedras  empregadas  n'este  caso 
foram  de  Lisboa  por  intermédio  de  um  genovez,  e  eram  pequenas, 
pouco  maiores  que  um  caroço  de  tâmara,  indo  montadas  ou  encerra- 
das em  oiro,  por  onde  se  pôde  ver  em  quanta  estima  eram  tidas.  No 
tratamento  de  uma  menina  nobre,  Maria  Catafío,  soffrendo  igualmente 
de  «delíquios»,  Monardes  empregou  também  com  proveito  a  pedra, 
mandando-a  ir  expressamente  de  Lisboa;  e  com  uns  restos  d'esta  pedra, 
pois  que  outra  se  não  pôde  encontrar,  salvou  o  licenciado  Luiz  de 
Cueva,  que  se  havia  envenenado  por  imprudência.  O  medico  hespanhol 
ainda  cita  o  excellente  effeito  da  pedra  be^oar  nos  ataques  de  melan- 
colia e  tristeza  sem  causa,  recordando  o  facto  de  o  imperador  Carlos  V 
a  tomar  para  aquelle  fim:  in  hunc  effectuin  scepe  sumebat. 

Como  acabámos  de  ver,  Monardes  mandou  ir  por  duas  vezes  as  pe- 
dras de  Lisboa,  pois  a  nossa  cidade,  estando  em  relações  directas  com 
o  Oriente,  tinha  então  o  monopólio  d'este  famoso  medicamento,  como 
tinha  o  das  especiarias.  Effectivamente,  o  erudito  investigador  Carlos 
de  rÉcluse,  diz-nos  ter  encontrado  á  venda  em  Lisboa  pedras  de  varias 
formas.  Algumas,  porém,  eram  falsas,  e  os  compradores  exigiam  a  prova 
da  sua  elTicacia  antes  de  terminarem  o  negocio,  prova  a  que  os  vende- 
dores raras  vezes  se  queriam  sujeitar,  o  que  facilmente  se  comprehende. 
A  prova  fazia-se  do  seguinte  modo  :  tomava-se  um  fio,  enfiado  em  uma 
agulha,  e  passava-se  pela  herba  balestera^,  atravessando-se  depois  a 
perna  de  um  cão  com  o  fio  assim  envenenado,  e  deixando  ficar  o  fio 
na  ferida;  quando  o  cão  apresentava  todos  os  symptomas  do  envene- 
namento, administrava-se-lhe  em  agua  o  pó  da  pedra  raspada,  e  julga- 
va-se  da  legitimidade  da  pedra  pelos  seus  effeitos.  Comprehende-se, 
como  disse,  que  os  vendedores  se  sujeitassem  difficilmente  a  esta  prova, 
ainda  que  seria  fácil  sophismal-a  por  vários  modos. 

Do  que  temos  dito,  se  vê  bem  como  o  be^oar  gosava  ainda  no  tempo 
de  Orta  de  excepcional  reputação,  e  como  elle  seguia  pura  e  simples- 
mente as  opiniões  geraes  do  seu  tempo.  O  bejoar  era  propriamente  um 
medicamento  oriental,  quer  dizer,  arábico  e  persiano,  ou  da  eschola 
de  medicina  mussulmana,  mas  não  indiano.  Orta  diz  claramente,  que 
os  práticos  hindus  apenas  o  empregavam  como  imitação  dos  portugue- 
zes,  ou  talvez  até  certo  ponto  dos  mussulmanos;  mas  que  não  fazia 


'  Este  veneno  preparava-se,  pisando  e  espremendo  as  raizes  de  Helleborus,  chamado  em 
hespanhol  verdegambrv  e  hierba  de  ballestero,  e  em  portuguez  lierva  de  besteiros  ;  o  sueco 
assim  obtido  cosia-se  e  coava-se,  levando-se  de  novo  ao  lume  para  lhe  dar  a  consistência  de 
xarope  grosso.  Esta  preparação  fazia-se  para  envenenar  os  virotes  das  bestas,  empregadas 
na  caça,  e  provavelmente  também  em  tempos  mais  antigos  na  guerra,  e  d'ahi  vinha  o  nome 
vulgar  da  herva  (Cf.  A.  M.  de  Espinar,  Arte  de  Ballesteria,  Lib.  i,  cap.  8,  Madrid,  1644). 


Da  pedra  be^ar  289 

parte  da  sua  matéria  medica  tradicional.  Sendo,  porém,  recommendado 
nos  livros  árabes,  penetrou  logo  na  idade-media  nos  usos  da  medicina 
europêa,  e  conservou  a  sua  reputação  até  ao  tempo  de  Orta,  e  mesmo 
durante  todo  o  século  seguinte  e  parte  do  passado.  O  nosso  padre 
Bluteau  ainda  lhe  chama  um  precioso  contraveneno.  Desappareceu  ha 
muito  da  matéria  medica  europèa;  mas  parece  que  não  completamente 
da  oriental.  No  principio  do  nosso  século,  o  Scháh  da  Pérsia  mandou 
de  presente  a  Napoleão  I  alguns  be^oares,  por  onde  se  vê  que  ainda 
lhes  ligava  importância  e  valor. 

Notaremos,  antes  de  terminar,  que  o  be:ioar  de  Malaca,  succintamente 
mencionado  por  Orta,  devia  ser  o  mesmo  ou  análogo  áquelle  de  que 
temos  fallado,  e  não  a  pedra  de  Malaca,  da  qual  Orta  se  occupa  e  nós 
teremos  também  de  nos  occupar  em  um  dos  seguintes  Colóquios. 

(Cf.  Pedro  Teixeira,  Relaciones,  i5j  e  seguintes;  Yule  e  Burnell, 
Gloss.,  68;  Guibourt,  Drogues  simples,  iv,  io3  e  seguintes;  Tavernier, 
Voyages,  11,  889;  Hecker,  em  Phannaceutische  Post,  xxv  (1892)  p.  21; 
Monardes,  De  lapide  Be^aar,  8,  in  Exotic;  Clusius.  Exotic.  216). 


COLÓQUIO   QUADRAGÉSIMO   SEXTO 

DA  PIMENTA  PRETA,  E  BRANCA,  E  LONGA,  E  CANARIM : 

E  DOS  PEXEGOS 


INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 
RUANO 

Nam  he  fora  de  rezam,  pois  tantos  trabalhos  os  Portu- 
guezes  levam  por  aver  toda  íí  pimenta  á  sua  mão,  comendo 
a  menos  parte,  e  as  partes  de  Alemanha  e  Frandes  guas- 
tando  a  mór  parte  delia,  que  me  digais  onde  he  a  força  e 
a  cantidade  delia  maior,  e  como  se  chama  nas  terras  donde 
nace,  e  mais  como  se  chama  em  arábio,  e  como  se  colhe, 
e  a  feiçam  do  arvore,  e  se  he  cá  usada  pêra  medicina. 

ORTA 

A  mór  cantidade  desta  pimenta  ha  em  todo  o  Malavar, 
e  ao  longo  desta  costa,  do  principio  do  cabo  de  Comorim 
até  Cananor:  lá  nas  bandas  de  Malaqua  também  ha  alguma 
cantidade  desta  pimenta,  ainda  que  nam  he  tam  boa,  por- 
que a  acham  mais  van;  e  colhese  em  algumas  ilhas  da  Java 
e  na  Çunda,  e  em  Queda  e  em  outros  cabos,  e  guastase 
esta  toda  na  China,  e  na  própria  terra,  e  também  a  levam 
a  Pegú  e  a  Martavam.  E  a  do  Malavar  também  se  guasta 
toda  a  mais  na  própria  terra,  porque,  ainda  que  a  terra  do 
Malavar  seja  pequena,  se  guasta  muyta  mais  cantidade  que 
em  nenhuma  outra  terra;  e  alguma  guasta  a  gente  da  fralda 
do  mar,  e  outra  levam  pêra  o  Balaguate  caregada  em  bois; 
e  muyta  cantidade  levam  os  Mouros  pêra  o  mar  Roxo,  con- 
tra a  defeza  delrey^,  porque  nunca  cousa  alguma  pode  ser 
tam  bem  guardada,  que  se  nam  furte  muyta  cantidade  pêra 
as  partes  ocidentais  por  os  Mouros  da  terra.  Asi  que  estas 
sam  as  partes  donde  se  colhe  esta  pimenta,  ainda  que  aja 
alguns  arvores  de  Cananor  pêra  o  norte,  mas  he  tam  pouca 

i6 


242  Colóquio  quadragésimo  sexto 

cantidade,  que  nam  fazemos  caso  delia,  porque  a  gente  da 
terra  a  gasta  \  porque  estes  arvores  nam  se  criam  no  sertam, 
nem  em  outras  partes;  e  asi  he  mercadoria  boa  pêra  lá,  por- 
que eu  vi  muyta  cantidade  que  se  levava  em  bois  pêra  lá. 

RUANO 

Dizei  os  nomes  na  terra  onde  a  ha. 

ORTA 

Ghamase  acerca  dos  Malavares,  donde  ha  maior  copia, 
molanga;  e  em  as  partes  de  Malaca,  onde  também  se  co- 
lhe (como  disse  jáj  lada;  e  em  arábio  se  di\z  filjil,  e  asi 
a  chamam  os  Arábios  físicos  e  o  vulgar.  Se  Avicena  (se- 
gundo tralada  o  Belunense)  a  chama  fulful,  e  darfulful  á 
pimenta  longa*,  ^falfel,  e  Serapio**,  que  eram  Arábios,  to- 
davia me  parece  que  JiljU  he  o  mais  certo  nome,  e  náo  fid- 
ful,  nem  falfel;  porque  facilmente  se  podia  corromper  o 
nome  escrito,  e  fícou  o  próprio  na  voz  do  povo.  Porque  nisto 
vai  pouquo  nam  me  detenho  mais,  senam  diguo  que  o  Gu- 
zerate  e  o  Decanim  diz  a  pimenta  meriche,  e  o  Bengala  mo- 
rois,  e  a  pimenta  longa  pepilini. 

RUANO 

Da  feiçam  do  arvore,  e  como  crece,  e  como  se  cria  toda 
em  hum  arvore  me  dizei;  pois  nisto  concordam  os  Gregos 
e  Latinos  e  Arábios  todos,  e  os  novos  escritores  que  oje  em 
dia  escrevem. 

ORTA 

Todos  a  huma  voz  se  concertaram  a  nam  dizer  verdade, 
senão  que  Dioscorides***  he  digno  de  perdam,  porque  es- 
creveo  per  falsa  emformaçam,  e  de  longas  terras,  e  o  mar 


•  Avie.  2  Libro,  cap.  5']5  (nota  do  auctor). 

**  Serap.  i,  367  (nota  do  auctor).  A  phrase  está  muito  confusa,  mas 
o  sentido  é  bastante  claro. 

***  Dioscorides,  Lib.  2,  cap.  i53  (nota  do  auctor);  aliás  188. 


Da  pimenta  248 

nam  ser  tam  navegado  como  aguora  he;  e  a  esse  imitou 
Plinio*,  e  Galeno**  e  Izidoro,  e  Avicena  e  todos  os  Arábios. 
E  mais  os  que  aguora  escrevem,  como  António  Musa  e  os 
Frades,  tem  m.aior  culpa,  pois  não  fazem  mais  que  dizer 
todos  de  huma  maneira,  sem  fazer  deligencia  em  cousa  tam 
sabida,  como  he  a  feiçam  do  arvore,  e  a  fruta,  e  como  ma- 
durece,  e  como  se  colhe. 

RUANO 

Gomo,  todos  esses  que  diseis,  erraram? 

ORTA 

Si;  se  chamaes  errar  a  dizer  o  que  não  he. 

RUANO 

Ora  pois  isso  he  asi,  dizei  o  que  vistes  e  ouvistes  a  pes- 
soas dignas  de  fé;  e  per  derradeiro  eu  virei  com  minhas 
duvidas. 

ORTA 

A  pimenta,  scilicet,  o  arvore  ou  planta  he  plantada  ao  pé 
de  outro  arvore;  e  polia  mor  parte  a  vejo  sempre  plantada  ao 
pé  de  alguma  areqiieira  ou  palmeira,  e  tem  a  raiz  pequena, 
e  crece  tanto  quanto  he  o  arvore  a  que  está  arrimada  e  en- 
costada, abraçandose  com  o  arvore;  a  folha  não  he  muyta, 
nem  muyto  grande,  e  he  mais  pequena  que  de  laranjeira,  e 
verde,  e  aguda  na  ponta,  e  queima  algum  pouco,  sabe  casi 
como  o  betele,  de  que  já  falei;  nace  como  as  uvas  em  cachos, 
e  nam  difere  mais  que  serem  os  cachos  da.pime7ita  mais  meu- 
dos  nos  grãos,  que  os  das  nossas  uvas,  e  mais  não  sam  tam 
grandes  os  cachos  em  si  como  os  das  uvas,  e  sempre  estam 
verdes  até  ao  tempo  que  seque  d.  pimenta,  e  este  em  sua  per- 
feiçam  e  força,  que  he  até  meado  de  janeiro;  neste  Malavar 
a  planta  he  de  duas  maneiras,  huma  que  áà^  pimenta  preta, 


*  Plinius,  Lib.  12  (nota  do  auctor). 

*  •  Galenus,  Lib.  8,  Simpl.  medic.  (nota  do  auctor). 


244  Colóquio  quadragésimo  sexto 

e  outra  branca*;  e,  afora  estas,  ha  outra  em  Bengala,  que 
he  da  longua. 

RUANO 

Pareceme  que  destruis  a  todos  os  escritores  antiguos  e 
modernos,  por  isso  oulhai  o  que  fazeis^  porque  Dioscorides 
diz,  que  o  arvore  da  pimenta  he  baixo,  e  produz  hum  fruto 
longuo  a  modo  de  bainha,  ao  qual  chamam  pimenta  lon- 
gua; e  dentro  nesta  bainha  estam  huns  gramsinhos  meudos 
semelhantes  ao  milho,  e  que  estes  amde  ser  a  pimenta  per- 
feita; porque  abrindose  no  próprio  tempo  as  ditas  bainhas 
descobrem  huns  cachos  peguados,  e  cheos  daquestos  grãos 
que  conhecemos,  os  quaes,  colhendose  antes  que  se  acabem 
de  madurar,  sam  agros,  e  estes  sam  a  pimenta  branca,  e 
mesturamse  nas  mezinhas  que  fazem  pêra  os  olhos,  e  he 
contra  o  veneno  bebido,  e  mais  das  feras  peçonhentas;  a 
primeira  he  pimenta  longua,  e  he  fortemente  mordiíicativa, 
e  algum  tanta  amargua,  por  se  aver  colhido  antes  de  tempo, 
e  asi  he  proveitosa  pêra  as  cousas  que  dixe ;  e  a  pimenta  ne- 
gra he  mais  suave  e  mais  aguda,  e  mais  agradável  ao  gosto, 
por  aver  sido  colhida  em  seu  tempo,  e  mais  aromática  que 
a  branca;  e  asi  temperam  os  comeres,  por  ser  mais  provei- 
tosa. A  mais  fraca  de  todas  he  a  branca,  por  se  colher  antes 
de  ser  madura.  E  da  pimenta  negra  a  mais  pesada  he  mi- 
Ihor;  porque  se  acham  entre  ella  alguns  grãos  vazios,  chama 
esta  pimenta  a  gente  da  terra  bracamasim**.  Isto  he,  o  que 
diz  Dioscorides  do  ser  delia,  porque  das  cousas  pêra  que 
aproveita  não  he  nesseçario  falar  ao  presente;  e  ao  cabo  do 
capitulo  diz,  que  a  raiz  he  semelhante  ao  costo.  E  Plinio 
diz  que  os  arvores  sam  semelhantes  SiOsjuniperos,  e  que  na- 


*  Isto  é  um  erro,  veja-se  a  nota  (i). 

**  Uns  grãos  vazios  e  chochos,  chamados  Pfáaaa;  mas  Dioscorides 
não  diz  que  isto  seja  um  nome  indiano,  ou  da  «gente  da  terra».  Segundo 
o  erudito  Saumaise  é  um  vocábulo  puramente  grego;  Plinio  é  que  se 
enganou,  escrevendo  brechma,  e  dando  uma  feição  e  uma  significação 
indiana  á  palavra.  Não  sei  porque  Orta  escreve  bracamasim;  mas  diz 
com  rasão  adiante  que  a  palavra  não  era  conhecida  na  índia. 


Da  pimenta  24b 

cem  somente  de  fronte  do  monte  Cáucaso,  segundo  alguns 
dixeram,  e  que  as  sementes  sam  semelhantes  ás  áo  junipcro, 
e  que  se  dividem  ou  apartam  huma  semente  da  outra  em  pe- 
quena parte  da  bainha,  asi  com  os  feigóes.  O  preço  delia 
he  de  16  até  18  livras,  e  o  preço  ádi  pimenta  longa  de  2  5  li- 
vras, e  o  preço  da  branca  he  17  livras:  contase  por  cada  livra 
3  crusados*.  E  diz  que  a  pimenta  em  sua  terra  he  silvestre 
e  não  plantada,  e  que  em  Itália  ouve  hum  arvore  destes,  que 
parecia  como  murta.  Também  ha  esta  pimenta  na  parte  da 
Arábia,  chamada  Trogoldita:  chamase  esta  pimenta  na  lin- 
goa  da  terra  onde  a  ha  bracamasim.  Todalas  outras  cousas 
mais  de  dizer  pêra  que  aproveita  sam  tomadas  de  Diosco- 
rides;  por  tanto  não  as  ponho  aqui.  Aviçena  faz  dous  capí- 
tulos, scilicet,  hum  de  fidful,  e  outro  de  darfulful  (que  he 
pimenta  longa)  e  asi  elle  como  Galeno  não  dizem  mais  que 
contar  com  brevidade  o  que  diz  Dioscorides,  e  o  mesmo  faz 
Serapiam,  coligindo  o  que  dixeram  Dioscorides  e  Galeno  so- 
mente, e  se  ha  alguma  cousa  que  dixe  Paulo  Egineta  não 
faz  ao  caso.  Estas  sam  as  cousí^s  que  dixeram  os  antiguos, 
tirando  Santo  Izidro**,  que,  com  ser  santo  e  de  muyta  au- 
toridade, diz  que  quando  a  gente  da  terra  sente  que  api- 
menta he  madura  pêra  se  colher,  por  medo  das  serpentes 
põe  fogo  ao  mato,  e  fogem  as  serpentes,  e  a  pimenta  fica 
asi  preta  com  o  foguo  que  puzeram  ao  mato;  mas  eu,  fa- 
lando comvosco  a  verdade,  tenho  estas  cousas  por  fabulo- 
sas, e  que  por  taes  as  escreveo  o  primeiro  que  o  dixe;  e 
que  Santo  Izidro  não  falou  isto  porque  o  elle  crese,  senam 
por  relatar  os  ditos  dos  outros;  asi  que  destas  cousas  não 
quero  que  me  deis  desculpas,  pois  as  não  creo.  E  por  estas 
cousas  vos  diguo  que  não  sei  com  que  rezam  reprendeis 


*  Os  números  não  estão  certos;  por  um  singular  equivoco,  Orta  som- 
mou  o  signal  indicativo  do  denarius,  com  o  algarismo  romano,  achando 
25,  onde  esta  escripto  X.  XV,  e  assim  para  os  outros  números. 

*  *  Orta  escreve  Izidro,  e  deixei  ficar  esta  forma,  posto  que  o  famoso 
bispo  de  Sevilha  seja  mais  conhecido  entre  nós  como  Santo  Izidoro. 


246  Colóquio  quadragésimo  sexto 

a  estes  doutores  tam  antiguos,  e  de  tanta  autoridade,  sendo 
confirmados  pollos  modernos,  scilicet,  Mateus  Silvatico,  Se- 
púlveda, António  Musa,  o  Frade  hespanhol,  os  Frades  ita- 
lianos, e  quantos  escreveram  livros  de  botica.  Por  isso  re- 
queirovos  da  parte  de  Deos,  que  não  me  digaes  senão  o 
que  vistes  ou  ouvistes  a  pessoas  muito  dignas  de  fé,  ajudan- 
dovos  com  vossas  razoes,  que  as  sabereis  muy  bem  dar,  e  ao 
cabo  veremos  como  se  usa  na  medecina  pollos  físicos  desta 
terra,  e  asi  farei  minhas  perguntas  nccesarias:  e  perdoai  se 
falei  até  aqui  demasiadamente. 

ORTA 

Primeiramente  saiba  vossa  mercê,  que  não  nace  esta  pi- 
menta na  raiz  do  monte  Cáucaso,  ou  defronte,  como  diz 
Plinio;  pois  nessas  terras  tem  maior  preço  a  pimenta,  que 
em  as  outras  terras  sabidas,  e  isto  vós  o  sabeis,  pois  sabeis 
o  monte  Cáucaso  onde  está,  e  quam  longe  está  do  cabo  do 
Comorim,  e  de  Çamatra  (cabos  onde  ha  maior  cantidade  de 
pimenta):  nem  he  semelhante  a.o Junipero,  pois  se  planta  arri- 
mada, e  doutra  maneira  nam,  e  o  junipero  he  planta  sobre 
si:  nem  nas  folhas  se  parece  com  o  junipero,  e  a  feiçam  da 
folha  he  como  vos  já  dixe,  e  nacem  os  cachos  como  as  nossas 
uvas,  quando  estam  verdes,  com  os  bagos  destintos,  e  desta 
maneira  quando  está  em  agraço  se  lança  em  vinagre  e  sal; 
e  isto  sei  eu  muyto  bem  sabido  como  testemunha  de  vista. 
E  pella  mesma  maneira  sei  que  ha  arvore  ási  pimenta  longa, 
e  mais  a  pimenta  longa  nace  em  terra  muyto  distante  do 
Malavar,  que  o  mais  perto  será  5oo  leguoas,  porque  ha  em 
Bengala  e  na  Jaoa;  e  esta  pimenta  longa  valia  em  Cochim, 
que  he  a  maior  cantidade  da  pimenta  preta,  a  cinquo  cru- 
sados  o  quintal;  e  de  4  annos  a  este  cabo,  por  se  gastar  mais 
d. pimenta  longa  pêra  outros  cabos,  vai  o  quintal  a  i5  ou  20 
crusados.  E  vai  em  Cochim  a  pimenta  preta  usual  a  dous 
crusados  e  meo;  a  c\\ia\  pimenta  usual  vai  em  Bengala  hum 
quintal  12  crusados,  e  a  longa,  quando  a  compram  lá  em 
Bengala,  vai  hum  crusado  e  meo:  e  isto  vos  abastava  pêra 
saberdes  que  não  he  huma  mesma  arvore  a  áa.pitnenta  longa. 


Da  pimenta  247 

e  da  pimenta  usual,  quanto  mais  que  as  cousas  que  homem 
ve  pelos  olhos  nam  tem  necesidade  de  as  provar.  K  pimenta 
branca  he  outro  arvore  sobre  si,  e  falando  comvosco  a  ver- 
dade, nam  ha  muytos  arvores  delia  nestas  bandas  do  Mala- 
vir,  senam  poucos,  e  asi  ha  nas  bandas  de  Malaqua-,  e  desta 
pifuenta  branca  põem  nas  mesas  dos  senhores,  como  nós  po- 
mos nas  nossas  sal;  e  asi  se  faz  no  Malavar  e  em  ambos 
cabos  a  tem  por  boa,  pêra  a  peçonha  e  pêra  os  olhos;  e  prou- 
vera a  Deus  que  em  tudo  dixera  Dioscorides  tanta  verdade, 
como  em  dizer  que  aproveitava  pêra  a  peçonha.  E  por  aqui 
vereis  como  sam  defrentes  estes  três  arvores,  scilicet,jE?/mew/a 
longa,  e  preta,  e  branca;  a  qual  pimenta  longa  se  chama 
em  Bengala,  pimpilim,  e  o  arvore  d'ella  nam  tem  mais  se- 
melhança com  o  da  preta,  do  que  tem  as  favas  com  os 
ovos:  as  outras  duas  arvores  da  branca  e  da  preta  sam 
muyto  semelhantes  uma  com  outra,  e  nam  se  conhece,  se- 
nam da  gente  da  terra,  asi  como  nós  nam  conhecemos  as 
videiras  pretas  das  brancas,  senam  quando  tem  uvas.  E  se 
me  não  quereis  crer,  crede  a  estas  três  sementes,  que  ahi 
vam,  huma  he  da  piynenta  longa  e  outra  branca  e  outra 
preta;  e  quanto  he  chamarse  á  pimenta  barcamansi,  nunqua 
tal  nome  eu  ouvi  em  parte  alguma  destas  terras,  nem  nome 
que  se  lhe  parecese  em  alguma  cousa. 

RUANO 

Verdadeiramente  que  eu  me  acho  corrido,  como  eu  não 
via  e  os  outros  isto,  que  está  tam  craro. 

ORTA 

Pois  vedes  aqui  ha  mais  pimenta  verde  em  cachos  nacida, 
neste  páo  do  arvore,  e  vedes  aqui  estoutra,  que  está  feita 
em  achar,  de  vinagre  e  sal,  que  não  he  defrente  de  todas, 
se  a  provardes. 

RUANO 

Bem  vejo  tudo,  e  ja  que  estou  corrido  de  ver  que  nunqua 
isto  especularam  bem  os  escritores  novos,  não  me  corraes 


248  Colóquio  quadragésimo  sexto 

mais;  porque  Laguna  se  queixa  dos  Portuguezes,  porque 
lhe  nam  dizem  estas  cousas,  e  diz  que  não  tem  mais  cui- 
dado que  de  robar  e  esfolar  os  índios. 

ORTA 

Verdade  he  que  os  Portuguezes  não  sam  muyto  curiosos, 
nem  bons  escritores:  sam  mais  amiguos  de  fazer,  que  de 
dizer.  Trabalham  de  aquirir  per  suas  licitas  mercadorias*, 
porém  nam  tratam  mal  os  Índios,  porque  os  índios  da  paz 
sam  mu3^to  favorecidos  dos  guovernadores.  E  a  raiz  ádi  pi- 
menta nam  he  semelhante  á  do  casto,  nem  o  costo  he  raiz, 
senão  páo,  como  já  vos  dixe*,  e,  porque  vos  nam  maravi- 
lheis da  gente  vulgar  não  saber  bem  estas  cousas,  vos  con- 
tarei o  que  pasei  com  hum  boticairo  no  tempo  de  hum  guo- 
vernador,  que  era  muito  curioso  de  saber  das  mesinhas, 
ao  qual  eu  falei  nas  três  especias  da  pimenta  ditas,  e  lhe 
dixe  os  nomes  delias.  E  quanto  he  hl pimenta  longa  ser  outra 
arvore,  confessou  ser  verdade;  e  quando  lhe  dixe  que  a 
branca  e  preta  eram  arvores  distintos,  rindose  de  mim  me 
dixe,  como  estava  enganado;  e  pêra  isto  contou  ao  guover- 
nador  diante  de  mim,  como  estando  elle  invernando  em  Mo- 
çambique, se  achou  a  sua  náo  fazer  muyta  agoa,  e  nam  estar 
pêra  navegar,  e  que  por  isso  se  descaregou  a  náo,  e  que 
elle  por  seu  passatempo  oulhava  a  pimenta,  e  que  nella  es- 
colhera alguma  branca,  por  ser  esfolada  da  casca,  e  que  isto 
acontecia  muytas  vezes  na  pimenta  velha  e  muyto  bulida. 
E  eu  lhe  dixe  que  podia  ser  ter  a  muyta  cantidade  át  pimenta 
dX^xxmdi pimenta  branca;  e  mais  que  pudia  ser,  pois  se  achava 
esta  pimenta  em  Moçambique,  muyto  milhor  se  acharia  em 
Portugal  na  casa  da  índia,  onde  a  pimenta  he  mais  velha, 
e  mais  bulida  e  baldeada;  e  porque  o  guovernador  vio  que 
o  buticairo  me  não  queria  crer,  escreveo  a  elrey  de  Cochim, 
que  lhe  mandasse  dizer  a  verdade  daquilo,  o  qual  lhe  mandou 
um  saquo  áç. pimenta  branca;  e  lhe  escreveo  que  avia  muytos 
arvores  em  sua  terra  da  branca;  entonçes  desestio  o  buticairo 
da  sua  porfia,  por  nam  ir  contra  um  guovernador.  E  com 
isto  faço  fim  aos  ditos  àsi pimenta;  porque  pêra  dizer  o  pêra 


Da  pimenta  249 

que  aproveita  he  pratica  muyto  usada,  e  nam  ha  cousa  nova 
acerqua  dos  índios  delia,  que  nós  não  usemos.  E  dizerem 
os  índios  que  he  fria  a  pimenta^  he  cousa  mais  pêra  rir  que 
pêra  praticar;  aos  quaes  eu  digo  muytas  vezes  que  não  lhe 
saberei  provar  ser  o  foguo  quente,  porque  a  via,  por  onde 
se  avia  de  provar,  era  porque  queimava. 

RUANO 

E  os  físicos  desse  rey  vosso  amiguo,  que  dizem,  pois  di- 
zeis que  sam  letrados? 

ORTA 

Dizem  que  he  quente  no  terceiro  gráo,  como  os  Portu- 
guezes.  E  pois  que  Já  sabeis  que  sam  arvores  diversos,  nam 
he  neseçario  que  em  logar  áSi  pimenta  branca  ponham /rc/a,* 
porque  isto  não  soube  Galeno  nem  Avicena,  nem  queraes 
mais  saber,  que  a  pimenta  branca  queima  mais,  e  he  mais 
aromática;  e  quando  se  achar,  que  a  ponhaes  sempre,  e 
quando  nam,  fazer  que  deitem  a  preta  antes  que  a  longa, 
porque  he  diversa  planta ;  e  nàm  ponham  em  lugar  da  longa 
alguma  delias,  porque  mais  convém,  entre  si,  a  branca  e  a 
preta,  que  com  a  longa.  E  porque  vos  não  fique  alguma 
pimenta  por  saber,  vedes  aqui  estas  sementes  vans,  a  que 
nesta  terra  chamam  pimenta  canarim,  e  usam  delia  pêra 
desfreimar,  e  pêra  os  dentes,  quando  doem;  he  muito  boa 
mezinha,  e  asi  a  dam  aos  que  tem  mordexi;  e  não  vos  diguo 
a  feiçam  do  arvore,  porque  vos  nam  he  necesario,  nem  vai  a 
Portugal  (i).  E  bebamos  sobre  alguma  conserva,  pois  não 
vos  falecerá,  pois  que  falastes  muyto;  e  será  sobre  conserva 
de  pexeguos,  que  vem  aqui  muyto  bons  de  Ormuz. 

RUANO 

Bons  estam  e  frescos,  e  nam  he  de  maravilhar;  pois  a 
somana  pasada  volos  deram,  de  maneira  que  devem  ser 
deste  anno.  Dizeime  se  dizem  cá  que  eram  venenosos  na 
Pérsia,  e  que  trcsplantados  em  Egito  ficaram  despojados  do 
veneno. 


25o  Colóquio  quadragésimo  sexto 

ORTA 

Estes,  que  comeis,  sam  da  Pérsia;  porque  delia  vem  toda 
a  fruta  a  Ormuz;  e  ácerqua  delles  nunqua  ouve  tal  presun- 
çam,  nem  se  acha  em  memoria  de  homens  serem  algum 
tempo  venenosos.  Eu  falei  com  físicos  da  Pérsia  sobre  isto, 
e  lhes  dixe  que  isto  se  devia  entender  polia  fruta,  que  chama 
Dioscorides  jDersca;  elles  nam  me  souberam  dar  rezam  dessa 
fruta;  nem  os  tem  senão  por  muyto  bons,  os  quaes  ha  tam- 
bém no  Balagate,  que  veo  a  planta  da  Pérsia:  por  isso  comei 
sem  medo  (2), 

RUANO 

Mujto  bem  me  soube  a  conserva;  e  porém  milhor  me 
soube  o  que  me  dixestes  da  pimenta,  porque,  falando  com- 
vosquo  a  verdade,  já  hum  autor  novo  escreve  o  que  dixestes, 
que  sam  três  arvores  distintos;  mas  dilo  a  medo,  como  pessoa 
que  lho  dixera  gente  a  quem  não  dava  fé  inteira. 


Nota  (i) 

É  necessário  em  primeiro  logar  estabelecer,  de  que  plantas  ou  dro- 
gas distinctas  Orta  falia  sob  os  nomes  de  pimenta  preta,  branca,  longa 
e  canarim;  e  examinar  ao  mesmo  tempo  a  sua  nomenclatura. 

A  pimenta  preta  do  commercio,  mercearias  e  pharmacias  é  o  fructo 
imperfeitamente  maduro  do  Piper  nig-i-iim,  Linn.,  uma  trepa- 
deira da  família  das  Piperaceíe,  espontânea  e  cultivada  nas  florestas  do 
Malabar,  cultivada  já  no  tempo  de  Orta  em  outras  regiões  orientaes,  e 
hoje  também  em  alguns  pontos  da  America  intertropical.  Todos  os  seus 
nomes,  citados  nos  Colóquios,  são  conhecidos  e  de  fácil  identificação : 

— «Meriche»  no  noroeste  da  índia,  «morois«  no  Bengala,  assim  como 
meeritch,  mirch  e  outras  formas  mencionadas  em  livros  modernos,  são 
simples  modificações  de  um  dos  nomes  sanskriticos  da  pimenta  preta, 
H  I  i  "M ,  maricha  (Ainslie,  Mat.  Ind.,  i,  802;  Dimock,  Mat.  med.,  718). 

— «Molanga»  no  Malabar;  prende-se  á  forma  tamil  mellaghoo  ou  mi- 
lagu,  e  outras  do  sul  (Ainslie,  1.  c. ;  Piddington,  Index,  69). 

— «Lada»  em  Malaca,  é  a  palavra  malaya  lada,  que  significa  ardente 
ou  pungente,  e  se  applica  a  todas  zs  pimentas,  distinguindo-as  depois, 
como  nós  fazemos,  pelos  qualificativos  preta,  longa,  etc.  (Crawfurd, 
Dict.,  333). 


Da  pimenta  25 1 

— «Filfil'),  ás  vezes  escripto  nas  versões  laúnas  fui  fui,  falfel,  porque 
nas  translitterações  ha  muita  incerteza  pelo  que  diz  sobretudo  respeito 
ás  vogaes,  é  o  conhecido  nome  arábico  Jjili,^^///.  Deriva-se  depippali, 
ou  das  (órmas  pilpil  e  outras,  pela  habitual  mudança  do  p  em/.  Pippali 
é  um  dos  nomes  sanskriticos  da  pimenta  longa;  mas  comprehende-se 
bem  que  na  boca  dos  estrangeiros  passasse  para  a  pimenta  preta^  o 
objecto  principal  do  seu  commercio.  De  mais^Jilfil  é  um  nome  geral, 
ás  vezes  acompanhado  do  seu  qualificativo,  por  exemplo,  ^j^]  J-ili, 
filfil  asuad,  a  pimenta  preta.  De  pippali  se  derivçu  também  o  grego 
iT£iT£5i,  O  laúno  piper,  e  o  nome  geral  áQ  pimenta  em  quasi  todas  as  lin- 
guas  modernas  da  Europa.  Bluteau  procura  a  mesma  origem  para  a 
palavra  portugueza  pimenta,  dizendo  vir  da  indiana  pimpilim.  E  Co- 
varrubias  deriva  pimienta  de  piper.  As  palavras  portugueza  e  hespa- 
nhola  têem,  porém,  outra  origem ;  derivam-se  de  pigmentam,  que  na 
baixa  latinidade  designou  um  vinho  aromatisado  e  carregado  em  côr, 
pigmentatum,  com  diversas  especiarias,  depois  passou  a  designar  as 
especiarias,  e  depois  a  principal  d'ellas  (Ainslie,  1.  c;  Bluteau,  Vocab.; 
Covarrtibias  Thesoro;  Ducange,  Glossarium  s.  v.) 

Orta  enganou-se,  julgando  a  pimenta  branca  proveniente  de  uma  es- 
pécie vegetal  particular;  é  simplesmente  o  mesmo  fructo  do  Piper  ni- 
grum,  colhido  em  estado  de  maturação  mais  adiantada,  e  privado  da  ca- 
mada externa  do  pericarpo  pela  lavagem  e  fricções,  tornando-se  assim 
menos  ardente.  O  boticário,  que  se  riu  de  Orta,  e  lhe  disse  ter  visto  nas 
baldeações  em  Moçambique  pimenta  branca,  que  era  simplesmente  a 
pimenta  preta  «esfolada  da  casca»,  esse  boticário  tinha  toda  a  rasão. 

A  pimenta  longa  procede  de  duas  espécies,  I*ipex'  oABlcina- 
i*niix  C.  DC.  (Chavica  officinarum,  Miquel)  um  arbusto  dioico,  espon- 
tâneo em  parte  do  archipelago  malayo;  e  Pipei*  loiígviiii  Linn. 
íChavica  Roxburghii,  Miquel),  um  arbusto  espontâneo  na  índia,  Cey- 
lão,  e  parte  também  do  mesmo  archipelago.  As  duas  espécies  são  si- 
milhantes,  cultivadas  nas  mesmas  regiões,  e  comprehende-se  bem  que 
Orta  as  não  distinguisse.  Distingue,  porém,  os  arbustos  que  as  produ- 
zem da  trepadeira  que  dá  a  pimenta  preta,  dizendo  com  alguma  ou  bas- 
tante exageração,  que  se  parecem  tanto,  como  um  ovo  com  uma  fava. 

Orta  dá  alguns  nomes  vulgares  áa  pimenta  longa: 

— «Pepilini»,  e  «pimpilim»  no  Bengala;  nos  livros  modernos  encon- 
tramos as  formas  pipU,  pipilie,  pipulee.  Todas  se  prendem  a  um  dos 
nomes  sanskriticos  d'esta  droga  iqoqr^SI,  P'PP^lh  do  qual,  como  já 
observámos,  se  derivou  o  da  pimenta  em  um  grande  numero  de  linguas 
(Ainslie,  1.  c;  Dymock,  1.  c;  Amarakocha,  99). 

— «Darfulful»  entre  os  árabes;  é  o  conhecido  nome  JiJi  ,1^,  dar 
filfil  (Ainslie,  1.  c). 

Sob  o  nome  indiano  de  pokli  miri,  o  dr.  Dymock  referiu-se  moder- 
namente á  droga  chamada  por  Orta  pimenta  canarim,  confirmando  os 


252  Colóquio  quadragésimo  sexto 

seus  usos  na  matéria  medica  dos  hindus.  Segundo  aquelle  observador, 
esta  droga  parece  consistir  nos  fructos  abortados  — «sementes  vans» 
de  Orta —  dos  pés  femininos  do  Piper  trioicum,  mencionados  e  des- 
criptos  por  Roxburgh  na  Flora  Indica  (Dymock,  1.  c,  721;  Roxburgh, 
1.  c,  I,  i5i). 

Garcia  da  Orta  consome  a  maior  parte  do  seu  Colóquio  em  discutir 
as  opiniões  de  Dioscorides,  de  Plinio  ou  de  Izidoro  de  Sevilha,  e  esta 
discussão  tem  hoje  para  nós  pouco  interesse.  Comprehende-se  bem,  no 
emtanto,  que  elle  insistisse  ainda  no  seu  tempo  na  refutação  de  opiniões 
erradas,  que  se  conservaram  durante  muitos  séculos  extremamente  vi- 
vazes. Não  obstante  haverem  decorrido  sessenta  ou  setenta  annos,  em 
que  os  portuguezes  frequentaram  diariamente  o  Malabar,  passando-lhes 
pelas  mãos  as  diversas  pimentas,  e  podendo  observar  os  arbustos  ou 
plantas  de  que  procediam,  os  escriptores  scientificos  continuavam  a  re- 
petir o  antigo  cliché.  Se  algum  se  atrevia  a  dizer  o  contrario,  dizia-o  «a 
medo»;  e  Orta  tinha,  portanto,  a  necessidade  de  rectificar  as  asserções 
de  Plinio  e  de  Dioscorides,  porque  continuavam  a  ser  as  do  seu  tempo, 
as  de  Sepúlveda,  de  Musa,  dos  frades  e  de  muitos  outros. 

Tive  um  momento  a  intenção  de  dar  n'esta  nota  uma  breve  histo- 
ria do  commercio  da  pimenta;  mas  essa  historia,  por  curta  que  fosse, 
excederia  de  muito  o  limite  natural  d'estas  notas.  Contar  o  que  foi 
o  trato  da  pimenta,  seria  quasi  o  mesmo  que  contar  o  que  foi  a  admi- 
nistração económica  e  financeira  da  índia  durante  séculos,  e  isto  daria 
assumpto  largo  para  um  livro  especial.  Devo  limitar-me,  pois,  a  recor- 
dar alguns  factos  mais  salientes,  que,  embora  conhecidos,  o  leitor  es- 
timará encontrar  reunidos  n'este  logar. 

A  pimenta  foi  conhecida  na  Europa  desde  tempos  antigos.  Theo- 
phrasto  menciona  mais  de  uma  espécie  d'esta  droga,  o  que  também  faz 
Dioscorides  séculos  depois,  affirmando  ser  uma  producção  da  índia. 
Plinio  é  mais  explicito,  nomeando  os  portos  indianos  de  embarque, 
como  Barace,  também  citado  no  Périplo  do  mar  Erythrêo.  A  pi- 
menta  vinha  de  Cottonara  a  Barace  em  barcos  cavados  em  um  só  ma- 
deiro   Régio  aiitem,  ex  qua piper  monoxylis  lintribus  Baracen  con- 

vehunt  vocatur  Cottonara.  Qualquer  que  fosse  a  posição  exacta  de  Ba- 
race e  Cottonara,  estas  localidades  estavam  evidentemente  situadas  no 
Malabar,  e  o  modo  de  embarque  da  mercadoria  lembra-nos  o  que  logo 
veremos  praticado  pelos  portuguezes.  Depois,  o  Malabar  continuou 
a  ser  a  terra  clássica  da  pimenta,  o  belad  el-filfil  dos  navegadores  ára- 
bes, por  intermédio  dos  quaes  a  droga  vinha  á  Europa  na  idade-media. 
Os  caminhos  seguidos  eram  aquelles  de  que  temos  fallado  muitas  vezes, 
o  do  mar  Vermelho  e  o  do  golfo  Pérsico,  minuciosamente  descriptos 
por  João  de  Barros,  por  António  Galvão,  e  em  parte  já  pelo  auctor 
do  Roteiro  da  viagem  de  Vasco  da  Gama.  Estes  caminhos  eram  demo- 
rados, e,  alem  de  numerosas  baldeações,  as  drogas  estavam  sujeitas 


Da  pimenta  253 

a  impostos  pesados  e  repetidos,  bem  conhecidos  já  do  auctor  do  Ro- 
teiro : 

«Da  quall  (de  toda  a  especearia)  se  acha  que  ha  o  gram  soldam  de 
direito  seis  centos  miil  cruzados.» 

A  pimenta  chegava,  portanto,  á  Europa  por  um  preço  exorbitante; 
em  Inglaterra  valeu  em  media,  nos  annos  decorridos  do  de  i263  ao  de 
i399,  I  shelling  por  libra  (equivalente  a  8  s.  de  hoje);  em  França  valia 
em  iSyo  o  equivalente  a  21  francos  proximamente,  e  ainda  em  1542  o 
equivalente  a  11  francos  por  librai  As  outras  especiarias  eram  igual- 
mente caras;  mas  aphnenta  chamava  mais  a  attenção  por  ser  mais  pro- 
curada. Apimenta  era  a  especiaria  por  excellencia,  e  tanto  que  os  ne- 
gociantes de  drogas  recebiam  o  nome  particular  de  piperarii,  em  inglez 
pepperers,  em  francez  poivriers. 

Todo  este  commercio  estava  na  mão  dos  árabes  na  parte  oriental 
na  mão  dos  venezianos  e  genovezes  na  parte  mediterrânica;  e  os  por- 
tuguezes  tinham  um  vivo  desejo  de  o  chamar  para  si.  Quando  no  anno 
de  14S6  encontraram  na  costa  africana  uma  pimenta,  á  qual  chamaram 
de  rabo,  porque  trazia  o  pedúnculo  pegado  ao  fructo  [Piper  Clusii,  C. 
DG),  pensaram  logo  em  a  lançar  no  commercio.  Foi  mandada  a  Flan- 
dres, onde  a  acharam  muita  boa,  segundo  diz  Garcia  de  Rezende,  onde 
lhe  pozeram  alguns  defeitos,  segundo  diz  João  de  Barros.  Estas  tenta- 
tivas, porém,  não  tiveram  seguimento,  porque  poucos  annos  depois 
Vasco  da  Gama  chegou  ao  verdadeiro  paiz  da  verdadeira  pimenta. 
EHectivamente,  no  anno  de  1498,  as  naus  portuguezas  mettiam  a  bordo 
em  Gahcut  os  primeiros  sacos  de  pimenta,  directamente  carregados 
na  índia  em  navios  europeus.  Logo  na  segunda  viagem  dos  portugue- 
zes,  Pedral vares  Cabral  foi  carregar  a  Cochym,  «a  mór  fonte  de  pi- 
menta que  ha  na  India«.  E  pouco  depois,  Vasco  da  Gama,  voltando 
ali,  mandou  carregar  á  costa  de  Coulão,  com  os  barcos  pequenos  da 
terra  atracados  ás  naus,  ficando  estas  em  poucos  dias  «abarrotadas» 
de  pimenta  a  granel.  Passam  muito  poucos  annos,  e  nós  vemos  D.  Fran- 
cisco de  Almeida  dando  conta  de  um  commercio  já  perfeitamente  re- 
gulado: haviam-se  feito  «izames  e  alealdação«  dos  pesos  indianos  com 
os  portuguezes,  e  reconhecido  que  o  «bar»  correspondia  a  tresquintaes 
e  tanto  do  peso  velho:  calculára-se  que  o  quintal  de  pimenta  saía 
a  «mil  e  quinze  reis»:  andavam  paráos  grandes  no  serviço  da  carga: 
estavam  montadas  duas  balanças,  dando  aviamento  a  pesarem-se  mil 
quintaes  até  horas  de  «vespora» :  emhm  todo  o  cunho  de  um  puro 
estabelecimento  commercial.  Mas  já  então  as  operações  commerciaes 
se  apoiavam  nas  operações  militares,  e  os  portuguezes  queriam  ter 
pela /orça  o  monopólio  de  todo  o  commercio  dQ  pimenta.  D.  Manuel 


'  Veja-se  a  Pharmacographia,  e  Leber  já  citado  nas  notas  ao  Colóquio  do  cravo.  N'este  rá- 
pido resumo  de  factos  bem  conhecidos,  eu  supprimo  em  geral  a  indicação  dos  logares  citados. 


204  Colóquio  quadragésimo  sexto 

queixava-se  de  ainda  ir  pimenta  á  Europa  pelo  «Levante»;  e  D.  Fran- 
cisco de  Almeida  respondia-lhe :  não  vae  do  Malabar,  vae  de  Malaca  e 
das  terras  de  leste,  «bem  sey  por  onde  passa»,  mas  ainda  lhe  não  pude 
«tolher  a  passagem».  N'este  empenho  de  lhe  tolher  a  passagem,  anda- 
ram os  portuguezes  emquanto  dominaram  na  índia,  sem  nunca  o  con- 
seguirem completamente,  pois  — como  diz  Orta —  sempre  se  furtou 
«muyta  cantidade  pêra  as  partes  ocidentaes,  por  os  Mouros  da  terra». 
A  maior  parte  da  pimenta  embarcada  era  da  preta,  e  a  maior  parte 
d'esta  procedia  do  Malabar.  Começava  a  enconirar-se  a  planta  que  a 
produz  em  Cananor,  onde  já  havia  alguma  boa,  mas  «nom  he  muyta», 
como  diz  Barbosa;  augmentava  a  sua  frequência  em  Calicut;  ainda 
mais  em  Cochym  e  Coulão;  e  extendia-se  até  ao  cabo  Comorim.  Não 
se  creava,  ou  pelo  menos  não  abundava,  nas  terras  baixas  do  littoral, 
recortadas  em  ilhas  e  penínsulas  por  numerosos  esteiros  e  braços  de 
rios;  mas  pelo  contrario  nos  valles  apertados,  húmidos  e  ensombrados, 
das  vertentes  occidentaes  da  linha  de  montanhas,  que  vem  correndo  pa- 
rallela  á  costa  a  morrer  no  cabo  Comorim.  Os  nossos  escriptores  sa- 
biam isto,  e  chamam  ás  vezes  áquellas  montanhas,  ou  a  parte  d'ellas, 
a  Serra  da  Pimenta.  Os  reis  ou  rajás  de  Cochym,  de  Calicut  e  outros 
da  costa,  obrigados  pelo  interesse  e  ás  vezes  pelos  tratados  e  pelas  ar- 
mas, a  fornecerem  pimenta  aos  portuguezes,  estavam  dependentes  dos 
chefes  da  Serra  — chamados  também  reis —  para  a  obterem.  Um  d'estes 
estados  da  Serra,  situado  ao  que  parece  nos  confins  e  a  leste  das  terras 
de  Cochym,  foi  sempre  chamado  pelos  nossos  escriptores  o  Reino 
da  Pimenta.  Os  portuguezes  estiveram  umas  vezes  mal  e  outras  bem 
cora  o  rei  da  Pimenta,  e  pagaram-lhe  mesmo  durante  algum  tempo  uma 
tença  de  72:000  reaes,  mencionada  por  Simão  Botelho.  Uma  das  pri- 
meiras expedições  militares  de  Luiz  de  Camões  nos  mares  das  índias, 
foi  contra  este  rei,  e  em  favor  do  rei  de  Porca,  um  chefe  de  piratas 
do  littoral : 

Huma  Ilha  que  o  Rei  de  Porca  tem, 
E  que  o  Rei  da  Pimenta  lhe  tomara. 
Fomos  tomar-lh'a,  e  succedeu-nos  bem. 

Os  habitantes  da  Serra,  brahmanes  alguns,  christáos  nestorianos 
outros,  occupavam-se  na  cultura  das  plantas  da  Pimenta,  multiplican- 
do-as  de  estaca,  aproveitando  as  que  se  desenvolviam  espontanea- 
mente, ligando-as  aos  troncos  das  arequeiras  e  outras  arvores,  e  co- 
lhendo os  cachos,  quando  os  fructos  da  base  começavam  a  avermelhar. 
Gaspar  Corrêa  falia  explicitamente  das  culturas  de  pimenta  da  Serra : 

« estes  bramenes  que  tem  as  hortas  da  pimenta».  E  refe- 

re-se  também  aos  depósitos  d'aquella  mercadoria  ali  estabelecidos: 

« com  que  fazyão  muyto  proveito  os  bramenes  da  Serra,  que  ti- 

nhão  os  celleiros  de  pimenta». 


Da  pimenta  255 

Da  Serra  saía,  pois,  quasi  toda  a  pimenta  e  em  enormes  quantidades. 

Em  primeiro  logar  toda  a  que  se  consumia  no  próprio  Malabar  e 
nas  villas  do  littoral,  e  que  era  muita,  segundo  nos  diz  Orta.  Depois, 
a  que  se  levava  para  o  interior  «caregada  em  bois»,  tanto  para  o  Bala- 
ghate,  como  para  a  costa  de  Coromandel.  Gaspar  Corrêa  também  nos 
falia  d'estas  «cáfilas  de  bois  de  carga«,  que  faziam  caminho  pela  Serra, 
e  eram  tantas  «que  esgotavão  toda  a  pimenta».  Este  desvio  da  mer- 
cadoria chegou  a  dar  cuidado  aos  portuguezes,  e  Diogo  Lopes  de  Se- 
queira, de  accordo  com  a  rainha  de  Coulão,  mandou  assaltar  as  cáfilas 
que  passavam  pela  serra  do  «Rei  grande»  de  Travancore.  Roubadas 
as  cáfilas,  e  mortos  os  recoveiros,  cessou  momentaneamente  aquelle 
transito,  o  que  —diz  Gaspar  Corrêa—  foi  «muy  grande  bem  para  o 
.  proveito  da  pimenta  que  se  por  ally  vazava».  Saía  por  ultimo  da  Serra 
toda  a  pimenta  carregada  nas  naus  portuguezas  em  Calicut,  Cochym, 
Coulão  e  outros  portos.  Descia  pelos  rios  e  esteiros  em  barcos  da  terra, 
em  tones  e  manchuas,  pouco  mais  perfeitos  que  os  monoxylis  lintribus 
do  tempo  de  Plínio  ^ 

^  Fora  do  Malabar,  colhia-se  pimenta  em  todas  as  localidades  men- 
cionadas por  Orta,  e  em  varias  outras.  Colhia-se  em  abundância  nas 
terras  de  Queda  na  costa  occidental  da  península  de  Malaca,  como  diz 
Barros,  como  diz  Barbosa  «muyta  e  fermosa  pimenta»,  como  diz  tam- 
bém Camões: 

Tenassarí,  Queda,  que  é  só  cabeça, 
Das  que  pimenta  alli'tem  produzido  2. 

Colhia-se,  como  dizem  igualmente  Barros  e  Barbosa,  na  ilha  de 
Java,  e  na  «Çunda»  ou  Sunda,  então  geralmente  considerada  uma  ilha 
distincta  de  Java.  É  impossível  estabelecer  em  que  proporção  esta  pi- 
menta  de  leste  entrava  nas  remessas  para  a  Europa,  durante  o  domínio 
portuguez;  mas  tudo  nos  leva  a  crer,  que  viria  em  pequena  quantidade, 
comparada  com  a  que  saía  do  Malabar.  Deve  ser  exacto  o  que  nos  diz 
Orta,  isto  é,  que  seguia  em  geral  o  caminho  de  leste,  indo  para  a  Chma 
e  outras  partes  do  extremo  Oriente. 

Acerca  da  pimenta  longa  pouco  ha  a  notar.  Orta  e  Barbosa  indicam 
a  sua  cultura  em  terras  de  Bengala,  e  Orta  acrescenta  Java,  onde 
efíectivamente  a  planta  se  encontrava,  tanto  cultivada  como  espontâ- 
nea. A  pimetita  longa  valia  mais  que  a  preta  nos  mercados  do  Occi- 
dente,  porque  era  mais  rara  e  vinha  de  mais  longe.  Já  em  plena  idade 


'  De  feito,  Rhede  no  Hortus  malabaricos  dá  o  nome  de  manchuas  (mansjoas)  a  barcos 
formados  de  um  só  tronco  escavado. 

'  Na  Flora  dos  Lusíadas  admitti  que  esta  pimenta  de  Queda,  e  em  geral  de  leste,  fosse 
apimenta  longa;  mas  evidentemente  devia  ser  a  usual. 


256  Colóquio  quadragésimo  sexto 

média,  Pegolotti  nos  diz  (i34o),  que  em  Gonstantinopola  apimenta  re- 
donda se  vendia  por  pesos  de  loo  libras,  e  a  pimenta  longa  por  peso 
de  I  libra,  como  outras  substancias  e  mercadorias  das  mais  preciosas. 
E  dous  séculos  depois,  as  duas  pimentas  pesavam-se  em  Hormuz  tam- 
bém por  modos  diversos,  vindo  a  pimenta  ordinária  as  mais  das  vezes 
em  alcofas,  e  entrando  a  tara  no  peso,  o  que  não  succedia  com  a  pi- 
menta longa,  pesada  como  o  benjoin.  Em  todo  o  caso,  o  que  importa 
notar,  é  que  z  pimenta  longa  — como  também  a  branca — figurava  por 
uma  parte  relativamente  insignificante  no  grande  commercio  portu- 
guez,  que  teve  principalmente  por  hase  a  pimenta  preta  usual,  e  d'esta, 
principalmente  a  do  Malabar. 

A  partir  logo  dos  primeiros  annos,  que  se  seguiram  ao  descobri- 
mento do  novo  caminho  para  a  índia,  o  commercio  das  especiarias,  e 
muito  especialmente  o  da  mais  importante  de  todas,  a  pimenta,  foi 
vedado  aos  particulares,  ou  foi-lhes  consentido  apenas  sob  certas  con- 
dições e  apertadas  restricçóes.  Já  em  um  longo,  minucioso  e  interes- 
santíssimo regimento,  dado  a  Fernão  Soares,  no  anno  de  i5o7',  se  es- 
tabelece: « que  toda  a  especiaria,  que  se  ouver  de  comprar  na 

Jmdia,  se  compre  por  nossos  ffeitores,  e  oficiaes,  que  la  estam,  e  nam 
por  outra  maneira;  e  pêra  asy  o  fazerem,  lhe  á  de  ser  entregue  nosso 
dinheiro  e  asy  o  das  ditas  partes,  pêra  a  pimenta,  que  ham  d  aver». 
As  partes,  isto  é,  os  capitães  e  gente  das  guarnições  dos  navios,  com 
outras  pessoas  que  obtinham  esta  mercê  especial,  não  podiam,  pois, 
comprar  livre  e  directamente  a  pimenta,  mas  entravam  n'uma  espécie 
de  parceria  com  o  rei,  partilhando  com  elle  os  ganhos,  assim  como  as 
perdas  e  quebras  do  negocio.  Mais  tarde  as  restricçóes  tornaram-se 
ainda  mais  severas,  e  no  anno  de  i5i8,  D.  Manuel,  dirigindo-se  a  Fer- 
não d'Alcaçova,  veador  da  fazenda  na  índia,  prohibiu  toda  a  trans- 
acção em  pimenta:  « defendemos  e  mandamos  por  este  pre- 
sente que  nhú  christão  Português  não  compre  por  modo  algum  nhua 
pimenta»,  sob  pena  de  perder  toda  a  sua  fazenda.  Isto  não  foi  bastante, 
e  algumas  pessoas,  levadas  pelo  interesse,  continuavam  a  comprar,  tor- 
nando assim  a  mercadoria  mais  cara  e  mais  escassa,  de  modo  que  os 
feitores  d'elrei  se  viam  obrigados  a  tomar  pimenta  «verde,  e  suja,  e 
mascavada».  Então  D.  Manuel,  em  um  alvará  escripto  em  Évora  a  7  de 
Fevereiro  de  i520,  confirmou  todas  as  prohibições:  « nhuas  pes- 
soas, asi  christãos  como  mouros,  gentios,  judeos,  e  quoaesquer  outros 

de  qualquer  condição  que  sejão,  nom  tratem  com  a  dita  pimenta » 

A  penalidade  imposta  era  severa;  perder  toda  a  sua  fazenda,  e  ficar 
alem  d'isso  sujeito  á  «pena  crime  que  vos  bem  parecer» — isto  é,  en- 


'  Ultimamente  publicado  em  Alguns  doe.  do  Arch.  7iac.  da  Totre  do  Tombo,  etc.  Lis- 
boa, 1892. 


Da  pimenta  257 

tregue  ao  pleno  arbítrio  do  governador.  A  pimenta  ficou  assim  sendo, 
o  que  na  índia  chamavam  uma  droga  defeca;  e  todo  o  seu  commer- 
cio  se  concentrou  nas  mãos  de  el-rei  ou  do  estado.  Exceptuavam-se 
apenas  certas  porções  de  pimenta,  dadas  na  índia  em  pagamento  de 
soldos,  ou  concedidas  aos  capitães  e  guarnições  das  naus  por  um  sys- 
tema  complicado,  datando  logo  da  viagem  de  Cabral,  conhecido  depois 
pelos  nomes  de  qiiintaladas  e  partidos  do  meio,  e  que  seria  impossível 
explicar  nos  estreitos  limites  d'esta  nota. 

Igualmente  nos  é  impossível  discutir  aqui  os  preços  ádi  pimenta  e  as 
suas  variações,  tanto  na  índia  como  em  Portugal;  e  só  darei  a  tal 
respeito  indicações  muito  rápidas.  Segundo  o  nosso  Orta,  o  quintal 
de  pimenta  preta  usual  valia  em  Cochym  dous  cruzados  e  meio.  Isto 
é  muito  proximamente  confirmado  por  António  Nunes,  o  qual  dá 
o  quintal  como  valendo  líJbioo,  e  uma  fracção  de  real,  setido  com- 
putado o  cruzado  de  oiro  em  426  réis^.  Não  conheço  os  preços  de 
Lisboa  nos  meados  do  século,  mas  nos  últimos  annos,  a  partir  do  de 
1587,  oscillavam  de  26  cruzados,  preço  minimo,  a  mais  de  5o,  podendo 
talvez  tomar-se  uma  media  de  3o  a  40  cruzados  por  quintal.  Segura- 
mente, de  2^  a  40  cruzados  ia  uma  larga  margem  de  lucros;  mas  a 
despeza  de  viagem  era  grande,  excedendo  12  cruzados  por  quintal,  e  ha- 
via quebras  e  outras  perdas.  Bastava  um  sinistro  para  annullar  os  ga- 
nhos. No  anno  de  1594,  em  que  ardeu  a  nau  Chagas,  o  negocio  áz.  pi- 
menta deu  perda,  não  obstante  vender-se  a  das  naus  que  chegaram 
a  salvamento  pelos  preços  altos  de  45  e*52  cruzados  o  quintal.  Em  ou- 
tros annos,  porém,  os  ganhos  eram  avultados;  e  o  trato  áa pimenta  con- 
stituiu um  dos  grandes  rendimentos  do  estado.  Em  um  orçamento,  feito 
por  Figueiredo  Falcão,  para  um  dos  annos  do  principio  do  xvi  século, 
calculando-se  os  rendimentos  geraes  de  Portugal  em  1:672  contos 
de  réis  proximamente 2,  computava-se  o  producto  de  20:000  quintaes 
de  pimenta  em  240  contos,  o  dos  direitos  de  cinco  naus  em  i5o  contos, 
e  os  rendimento  próprios  da  índia  em  355  contos  proximamente,  ou 
sejam  745  contos,  quasi  metade  do  rendimento  geral,  derivados  directa 
ou  indirectamente  da  índia.  Mas  se  examinássemos  parallelamente  os 
orçamentos  de  despeza,  e  tomássemos  em  consideração  os  enormes 
gastos  de  administração  na  índia,  de  construcçóes  navaes  e  outros, 
nós  chegaríamos  de  certo  á  conclusão  do  sr.  Oliveira  Martins  em  um 


'  Estes  i3»ioo  réis,  ou  antes  reaes,  tinham  um  valor  intrínseco  superior  a  5íh5oo  réis, 
e  equivaliam  talvez  a  22^000  réis  de  hoje;  mas  sobre  estas  equivalências  tenho  graves 
duvidas,  quando  se  trata  da  índia  e  mesmo  de  Portugal ;  vejam-se  as  notas  ao  Colóquio 
do  Cravo. 

'  Dou  os  próprios  numeres  de  Falcão,  que  têem  naturalmente  de  soífrer  as  correcções 
á  conhecidas. 

17 


258  Colóquio  quadragésimo  sexto  da  piínenta 

dos  seus  estudos,  isto  é «que  di  pimenta  foi  um  mau  negocio  para 

o  thesouro  de  S.  A.» 

A  pimenta,  com  outras  drogas  e  mercadorias,  vinha  para  a  Casa  da 
índia,  e  d'ali  saía  para  o  consumo  do  paiz,  e  principalmente  para  o 
consumo  geral  da  Europa,  ou  por  vendas  feitas  em  Lisboa,  ou  pelas 
remessas  directas.  Diz-se,  que  no  dia  21  de  janeiro  do  anno  de  i522 
um  navio  portuguez  levou  pela  primeira  vez  directamente  a  pijjtetrta  e 
especiarias  da  índia  á  cidade  de  Antuérpia.  Parece-me  esta  data  um 
pouco  tardia,  posto  que  não  tenha  noticia  de  remessa  anterior.  Mais 
tarde,  estabeleceu-se  a  Feitoria  de  Flandres,  pela  qual  corriam  as  ven- 
das. Esta  Feitoria  serviu  principalmente  para  base  de  operações  finan- 
ceiras desastrosas;  faziam-se  vendas  antecipadas;  sacava-se  a  desco- 
berto sobre  apimenta  futura;  e  no  anno  de  1544  deviam-se  ali  e  em 
Castella,  proximamente  4:000  contos  de  réis,  somma  enorme  para  o 
tempo;  e  isto  a  juros  tão  altos,  que  «se  dobra  o  dinheiro  em  quatro 
annos».  Como  dizia  o  Conde  da  Castanheyra  em  um  interessante  do- 
cumento, que  hoje  chamaríamos  um  relatório  sobre  o  estado  da  fa- 
zenda publica:  o  grande  mal  «foy  começar-se  a  tomar  dinheyro  a 
cambio.  E  des  que  se  começou  a  tomar  ategora  nunca  se  outra  cousa 
fez:  e  quasi  se  não  sostem  dal  as  despezas  de  Vossa  Alteza».  Triste- 
mente actual  toda  esta  phase. 

Ficaremos  por  aqui,  notando  unicamente,  que  a  historia,  sobrema- 
neira interessante,  da  Casa  da  índia  e  da  Feitoria  de  Flandres,  não  está 
feita,  e  não  seria  possível  fazel-a  pelos  documentos  até  hoje  publicados. 
Não  obstante  as  notas  curiosas,  dispersas  por  todos  os  nossos  chro- 
nistas,  o  valiosíssimo  auxilio  dos  Subsidias,  publicados  por  Felner,  o 
livro  capital  de  Figueiredo  Falcão,  alguns  documentos  importantes, 
reunidos  por  fr.  Luiz  de  Sousa  para  os  seus  Atinaes  de  D.  João  III,  e 
publicados  por  Herculano,  os  do  Archivo  Portugue^oriental  de  Rivara 
e  vários  outros,  não  obstante  o  que  de  tudo  isto  se  pôde  deduzir,  ainda 
restam  muitas  lacunas  e  muitos  pontos  obscuros,  que  só  uma  revisão 
minuciosa  e  intelligente  dos  nossos  archivos  poderia  preencher  e  es- 
clarecer. 

Nota  (2) 

Os  pecegos,  como  muitos  outros  fructos  das  regiões  temperadas,  iam 
da  Pérsia  para  a  índia  por  Hormuz,  e  eram  muito  apreciados  dos  por- 
tuguezes,  que  tinham  algumas  saudades  da  fructa  da  sua  terra.  A  idéa 
de  que  primitivamente  foram  venenosos  era  uma  velha  lenda  clássica, 
contada  já  por  Columella,  e  á  qual  allude  também  Camões : 

O  pomo  que  da  pátria  Pérsia  veio, 
Melhor  tornado  no  terreno  alheio. 


COLÓQUIO  QUADRAGÉSIMO  SÉTIMO 

DA  RAIZ  DA  CHINA 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

Queria  levar  a  Portugal  alguma  rjz^  ou  páo  da  China, 
pois  nam  he  droga  defesa;  e  pêra  isto  queria  que  me  dixeseis 
a  feiçam  delia,  e  vosso  parecer,  e  pêra  que  enfermidades 
aproveita;  e  me  diguaes  todos  seus  sinaes,  e  a  maneira  da 
administraçam  nas  enfermidades*  que  se  dá;  e  se  usaram 
em  Portugal  desta  raiz,  por  ser  a  terra  mais  fria  e  a  mezinha 
ir  de  qua  mais  fraca;  e  como  se  conservará  milhor  esta  raiz, 
pêra  ir  mais  fresca;  e  qual  he  milhor,  se  esta,  se  o  giiaiacam 
das  nossas  chamadas  índias;  e  nam  vos  cegue**  afeiçam 
porque  esta  mezinha  está  mais  perto,  e  será  de  vos  mais 
usada. 

ORTA 

Este  páo  ou  raii  nace  na  China,  terra  muito  grande,  e 
que  se  presume  confinar  com  Moscovia,  e  se  Laguna  lhe 
chama  índias  mais  orientaes,  não  acerta  nisso  mu3'to,  senão 
se  escusa  com  dizer  que  todas  as  terras  não  sabidas  se  cha- 
mavam índias;  e  nam  vos  direi  aqui  as  rezÕes,  por  onde 
se  presume  confinar  com  Moscovia,  por  ser  cousa  de  pouquo 
proveito,  e  nam  conforme  á  vossa  entençam***.  E  porque 
nestas  terras  todas,  e  na  China  e  em  Japam,  ha  este  morbo 
napolitano,  quiz  o  misericordioso  Deos  darlhes  por  remédio 
esta  raiz,  da  qual  sabem  lá  bem  curar  os  bons  fisicos;  por- 
que os  máos  em  todo  cabo  erram.  E  como  elles  curam  lá 


*  Parece  faltar  a  palavra  «emn. 

**  Deve  também  faltar  aqui  o  artigo  «a», 

*•*  Veja-se  a  nota, vol.  i,  pagina  271. 


26o  Colóquio  quadragésimo  sétimo 

com  esta  mezinha,  acertaram  acaso  de  trazer  delia  esta  raiz 
os  Chins  pêra  se  curar  cá  no  anno  de  i535. 

RUANO 

E  como  soubestes  o  uso  deste  páo,  pois  as  náos  da  China 
não  vinham  mais  que  até  Malaqua,  e  os  Portuguezes  que 
iam  á  China  nam  conversavam  em  terra  com  os  Chins? 

ORTA 

Eu  vim  de  Portugal  hum  anno  antes,  e  trouxe  pouca  fa- 
zenda (como  se  acontece  a  muytos),  entre  a  qual  trouxe 
cinquo  quintaes  do  páo  chamado  guaiacam,  o  qual  ao  tempo 
de  agasalhar,  não  foy  bem  alojado,  e  tomaramme  delle  o  que 
quiseram  as  pessoas  que  o  queriam  tomar;  e,  chegando  a 
esta  terra,  achei  que  pereciam  muytas  pessoas  de  talpat^ias, 
e  de  outras  chaguas  de  saivia  castelhana,  e  a  muytas  delias 
não  aproveitava  o  remédio  das  unturas.  E  chegando  a  esta 
terra,  eu  fuy  mui  festejado  por  trazer  este  pao,  porque  já 
cá  se  aviam  curado  com  elle  algumas  pessoas,  ás  quaes 
avia  socedido  bem,  e  asi  esperavam  por  elle  de  Portugal, 
e  eu  vendi  o  que  trouxe  por  mil  crusados;  e  quiz  Deos  isto, 
porque  trazia  pouqua  mercadoria,  e  afora  isto  dei  algum 
de  graça,  e,  como  dixe,  muyto  me  furtaram  ao  embarcar 
e  desembarcar,  e  quiz  Deos,  que  a  todos  que  o  tomaram 
sucedesse  muito  bem.  E  como  loguo  se  acabou  o  vnQupáo, 
compravam  o  páo,  já  cozido,  a  cinquo  crusados  o  arrátel  *, 
e,  porque  custava  tanto,  queria  Deos  que  aproveitasse.  E 
nesse  tempo  vivia  a  gente  esperando  as  náos,  que  aviam 
de  vir  do  reino,  pêra  ver  se  traziam  pão,  e  veo  muito  pouco 
ou  nenhum.  E  neste  tempo  foy  curado  hum  homem  muyto 
honrado  e  riquo,  o  qual,  estando  em  Dio,  contou  a  meu  amo 
Martin  Afonso  de  Sousa,  que  lá  estava  tomando  posse  da 
fortaleza  que  lhe  ahi  deu  o  soldam  Bhadur,  rei  de  Cambaia*, 
como  avia  sido  curado  com  o  páo  da  China,  com  que  se 


»  Pôde  ver-se  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  pagina  gS  e  seguintes. 


Da  rai:{  da  China  261 

achara  muyto  bem,  e  tivera  inteira  saúde,  e  que  não  requeria 
dieta  alguma,  somente  lhe  vedavam  que  nam  comesse  carne 
de  vaca,  nem  de  porquo,  nem  peixe,  nem  frutas  verdes;  e 
ainda  na  China  lhe  concedem  o  peixe;  porque  sam  os  Chins 
muito  comedores.  E,  como  isto  foy  bem  divulgado,  desejava 
a  gente  em  grande  maneira  aver  este  páo;  porque  todos  os 
homens  sam  inclinados  a  comer  e  beber,  e  muyto  mais  os 
desta  terra  por  sua  ociosidade,  e  mais  porque  entonces  to- 
mavam o  giiaiacam  com  muyta  dieta;  porque  também  asi 
se  tomava  em  Espanha.  Asi  que  vindo  as  náos  de  Malaqua, 
■  valeo  algum  pouquo  desta  raiz,  que  nellas  veo,  a  dez  cru- 
sados  a  ganta  (que  he  peso  de  vinte  quatro  onças)*,  e  de- 
pois os  outros  annos  valeo  tam  barato,  que  vai  ás  vezes  a 
trinta  reis  a  ganta.  Desse  tempo  pêra  cá,  foy  degradado  o 
pdo  das  índias  de  Castella,  como  castelhano  que  vinha  a  ma- 
tar de  fome  a  gente  que  cá  abita;  em  tanta  maneira  que  as 
náos  que  corresponderam  ás  em  que  eu  vim,  troxeram  grande 
soma  àQpáo  de  Portugal,  com  a  fama  que  levaram  da  minha 
boa  venda,  e  não  foy  dado  por  dinheiro  algum,  e  pouquo  a 
pouco  se  guastou  nesta  terra,  queimandose.  Ora  olhai  senhor, 
se  tenho  eu  rezam  de  estar  milhor  com  este  giiaiacam,  que 
com  o  páo  da  China,  e  certo  que  destoutro,  dandose  pella 
maneira  que  se  dá,  scilicet,  dado,  considerando  primeiro  a 
calidade  e  compreisam  do  enfermo  e  a  natura  da  enfermi- 
dade, e  o  tempo  e  regiam,  se  he  fria,  se  quente,  e  o  sexo, 
e  a  idade  de  quem  o  toma**.  E  não  vos  maravilheis  louvalo 
eu  tanto,  pois  que  ninguém  ouve  que  o  louvase;  escrevendo 
tantos  escritores  cada  dia  louvando  o  giiaiacam;  porque  en- 


*  No  Livro  dos  pesos,  «gamta»  é  uma  medida  de  capacidade,  equi- 
valente a  5  quartilhos;  e  no  mesmo  sentido  é  tomada  no  Tombo,  onde, 
nas  despezas  da  igreja  de  Malaca  se  descrevem : 

"E  OYto  guantas  d'azeite  de  coquo  cada  mês  pêra  as  alampadas.» 
Yule  e  Burnell,  no  Glossary,  dizem,  porém,  que  ganton,  segundo  al- 
guns viajantes  antigos,  era  uma  medida  ou  peso,  usado  no  Archipelago 
Malayo. 

*  *  Orta  esqueceu-se  evidentemente  de  terminar  a  sua  phrase. 


202  Colóquio  quadragésimo  sétimo 

tre  elles  hum  fidalgo  alemam  escreve  hum  livro  de  seus  lou- 
vores, em  muyto  copioso  estilo  e  mui  puro  latim,  e  pudera 
ser  escrito  em  huma  folha  de  papel  (i);  e  destoutra  i^ai^  da 
China  dizem  Vesalio  e  Laguna  muytos  males,  dizendo  que 
hé  podre,  e  sem  vertude  esta  rai:^  da  China,  e  que  custa 
muito  dinheiro,  e  eu  nam  tenho  que  ver  com  que  custe 
muyto,  nem  pouco,  nem  que  seja  cara,  nem  barata,  antes 
me  parece  bem  o  que  diz  Mateolo  Senense,  que  abasta  pêra 
esta  raiz  ser  boa  mezinha  tomala  o  emperador  Carlos  quinto, 
e  aproveitarlhe.  E  certo  que  dado  com  as  condições  acima 
ditas,  muyto  aproveita  a  todos. 

RU  AN  o 

Quanta  cantidade  deste  pão  ou  rai^  cozem  pêra  huma 
pessoa? 

ORTA 

Se  O  mal,he  muyto  grande,  cozem  huma  onça  desta  rai^ 
em  quatro  canadas  de  agoa,  e  gasta  a  metade  da  agua;  e 
a  outra  guardamna  em  vidro  ou  barro  vidrado-,  e  tiramlhe 
a  escuma  ao  cozer,  porque  he  boa  pêra  deitar  em  algumas 
chaguas-,  e  ás  vezes  a  deitamos  sobre  as  chaguas  ou  incha- 
ços, e  o  baífo,  quando  está  cozendo,  he  muyto  bom  pêra 
a  dor-,  e  outras  vezes  fazemos  fomentaçam  com  esta  agoa 
quente  nos  inchaços:  e  outras  vezes  pomos  panos  molhados 
em  chagas,  e  he  muyto  bom  mondificativo.  Os  Chins  cus- 
tumam  dar  mais  cantidade  de  páo,  em  suas  terras;  e  al- 
gumas pessoas  desta  terra  quiseram  imitar  os  Chins,  co- 
zendo duas  onças  de  pdo  ou  onça  e  mea,  e  acharamse  mal 
com  isto,  porque  os  esquentou  muito;  e  eu  mesmo  tomei 
este  pdo  com  suadoiros  pêra  huma  ciática  que  tinha,  sem 
suspeita  de  morbo  galico;  e  porque  tomei  suadoiros,  e  be- 
bia aguoa  quente,  como  se  custumava  em  principio,  quando 
este  páo  veo,  encheoseme  o  corpo  de  eresipula  e  leicenços, 
poUo  grande  esquentamento  que  me  fez  no  fígado;  e  foime 
necesario  sangrarme,  e  beber  aguoa  de  cevada,  e  açucare 
rosado,  e  pôrme  ao  vento,  e  asi  fui  restituído  á  saúde.  E  de 
mim  tomaram  exemplo  muytas  pessoas  depois,  e  não  qui- 


Da  rai^  da  China  263 

seram  tomar  mais  aguoo  quente,  nem  deitar  tanta  cantidade 
de  páo,  como  deitam  na  China;  porque  a  terra  he  lá  fria 
em  estremo,  e  esta  muyto  quente.  Somente  a  tomam  cá, 
quando  ha  a  neseçidade  dos  suadoiros,  pella  manhan  quente 
pêra  suar,  e  quando  ha  nccesidade  dos  suadoiros  e  as  en- 
fermidades sam  maiores,  tomam  suadoiro  polia  manhan  e 
á  noite;  e  também  nos  tempos  muyto  quentes,  não  damos 
o  páo  a  ninguém,  quanto  mais  suadoiros.  Esta  he  a  maior 
cantidade,  que  custumamos  a  dar  cá,  scilicet,  huma  onça 
cozida  em  quatro  canadas  de  aguoa,  e  coza  até  que  gaste 
a  metade;  e  a  outros  dam  mais  pequena  cantidade  áq páo, 
ou  que  tenha  menos  cozimento. 

RUANO 

E  não  a  retificaes  com  algumas  mezinhas? 

ORTA 

Senhor,  si;  porque  a  mandam  retificar,  e  quando  o  mal 
he  mais  pequeno,  ou  a  compreisam  mais  quente,  damos  hu- 
ma onça  de  pão  cozido  em  quatro  canadas  de  aguoa,  e  que 
fique  em  duas  e  mea,  e  ás  vezes  ém  três;  e  daqui  passamos 
poucas  vezes;  e  também  trabalhamos  que  o  páo  seja  bom 
e  pesado,  e  que  não  tenha  caruncho;  e  se,  com  estas  con- 
dições, fôr  branco  he  melhor  que  o  vermelho.  E  quanto  he 
á  retificaçam,  custumam  os  Chins  deitar  raiz  de  aipo  no 
cozimento;  e  dali,  e  mais  da  rezam  em  que  se  fundavam  os 
Chins,  acustumei  eu  nam  ád^v  páo  sem  retificaçam:  scilicet, 
quando  padece  mais  a  cabeça  ou  os  nervos,  deito  rosmani- 
nho, ou  rosas,  ou  aipo  se  o  fígado  está  opilado,  ou  raizes 
de  endivia  se  está  quente,  com  alguma  opilaçam;  outras 
vezes  o  dou  pêra  ulceras  dos  rins  e  bixigua,  e  lhe  deito  alca- 
çuz; e  aqui  ouve  hum  tisico*,  aquém  o  eu  dei,  mesturado 
com  outro  tanto  de  cevada  como  era  o  páo,  e  com  pouquo 
cozimento,  e  oje  em  dia  está  sam. 


*  Na  edição  de  Goa  «fisico« ;  mas  da  errata,  apezar  de  errada,  e 
do  sentido,  julgo  deduzir  que  deve  ser  tisico. 


264  Colóquio  quadragésimo  sétimo 

RUANO 

Que  vos  moveo  a  dar  o  pão,  em  enfermidade  tam  quente 
em  membros  esperituaes? 

ORTA 

Moveome  ver  o  paciente  cheo  de  inchaços  na  cabeça,  e 
em  outros  cabos,  e  escarrar  matéria,  e  não  lhe  aproveitarem 
os  outros  remédios,  e  irse  consumindo,  e  como  quer  que 
foy,  socedeo  mu3'to  bem,  e  o  homem  ficou  sam;  e  depois 
o  fizeram  outros  mu37tos,  e  acharamse  bem  com  isto.  E  já 
aguora  ninguém  toma  o  pdo,  que  o  não  tome  retificado  com 
alguma  mezinha;  porém  eu  me  quero  gabar  que  fui  o  pri- 
meiro que  isto  usei,  e  por  meu  exemplo  o  fizeram  os  outros. 

RUANO 

Dizeime,  se  he  bem  purgar  primeiro  ao  enfermo  que  tome 
este  pdo,  e  se  tem  alguns  acidentes  nelle  os  que  o  tomam, 
porque  he  bem  sabelos,  pêra  o  remediar  quando  vierem; 
e  quando  aproveita  mais  este  pdo,  se  no  principio  das  en- 
fermidades ou  no  estado  delias;  e  se  aproveita  mais  nas 
enfermidades  grandes,  ou  nas  pequenas. 

ORTA 

Regra  geral  he  xaroparemse  e  purgaremse  os  homens 
antes  que  o  tomem;  e  se  o  mal  he  muyto  grande,  fazemos 
os  xaropes  solutivos.  E  porque  polia  maior  parte  he  este 
negocio  freima,  acrecentamoslhe  turbit  ou  agarico;  e  mando 
agoar  os  xaropes  ás  vezes  com  aguoa  do  páo;  e  depois  de 
purgado,  com  boa  regra,  lhe  começamos  a  dar  o  pdo,  e  aos 
quinze  dias,  se  he  necesario,  lhe  damos  hum  minorativo, 
e  ás  vezes  outro,  ao  cabo  dos  trinta  dias;  e  se  neste  tempo 
não  faz  camará,  cada  dia  o  cristelizamos  com  a  aguoa  do 
pdo  e  mel  rosado,  e  olio  violado,  e  canafistola,  e  isto  se- 
gundo o  que  a  nesecidade  requer;  e  estes  minorativos,  que 
lhe  damos  ás  vezes,  não  sam  de  mais  que  de  manná  e  ca- 
nafistola, e  ruibarbo  desatado  em  aguoa  do  pdo  ou  de  en- 
divia,  ou  de  cozimento  de  ameixas  ou  de  alcaçuz,  ou  aguoa 
de  cevada:  e  se  o  enfermo  se  esquenta  muyto,  damoslhe  a 


Da  rat:{  da  China  265 

aguoa  do  páo  em  menos  cozedura,  ou  mesturamoslhe  aguoa 
de  envidia  ou  de  fumus  terrse,  se  a  ha,  ou  de  linguoa  de 
vaca,  se  se  acha;  e  se  muyto  se  esquenta  o  paciente,  leixa 
o  páo,  e  toma  outra  vez  mais  oportuna  e  conveniente  pêra 
isso.  Algumas  vezes  aproveita  este  páo  aos  20  dias,  e  ás 
vezes  mais  tarde,  e  ás  vezes  mais  cedo:  mas  o  que  comu- 
mente  he  crecerem  as  dores  até  os  i5  dias,  e  dahi  por  di- 
ante vam  em  declinaçam.  E  porém  eu  vi  hum  mancebo, 
que  lhe  creceram  as  dores  em  grande  maneira  25  dias,  e 
aos  3o  dias  estava  sam  de  todo  ponto :  por  onde  diguo  que 
nam  desespere  ninguém.  Outros  vi  que  o  tomaram  muytas 
vezes,  e  a  derradeira  lhe  aproveitou,  e  as  outras  nam:  pa- 
rece ser  que  eram  os  humores  mais  frios.  E  de  meu  conselho 
avia  vossa  mercê  de  dar  lá  em  Portugal  o  páo  da  China, 
levandovos  Deos  lá  a  salvamento,  acresentando  a  cantidade 
que  cá  damos,  porque  a  terra  he  mais  fria;  e  fazer  como 
cá  fazemos,  quando  a  nesecidade  he  muyta  comer  galinha 
cozida  com  a  agoa  do  páo,  e  ás  vezes  pam  amasado  com 
a  mesma  agoa,  segundo  que  ^a  nesecidade  ouver. 

RUANO 

Bebemno  quente  ou  frio,  e  comemno  temperado  com  sal 
ou  não? 

ORTA 

Poucas  vezes  o  mando  dar  quente,  como  se  dava  no  prin- 
cipio, senão  nos  suadoiros.  Polia  manhan  doulhes  a  comer 
galinhas,  frangãos,  e  carneiro  temperado  com  sal  e  açafram 
e  coentro  seco,  e  ás  vezes  lho  dou  asado,  segundo  o  que  a 
enfermidade  requer;. sempre  lhe  tolho  o  vinho,  senam  quando 
dou  o  páo  pêra  fraquezas  do  estomaguo  de  muytas  freimas, 
e  de  nam  degerir;  porque  pêra  isto  aproveita  muito  o  páo 
com  vinho,  comvem  a  saber,  aguado  com  agua  do  páo,  por- 
que tira  o  fastio,  e  procura  boa  digestam. 

RUANO 

Pêra  o  guaiacam  de  todo  ponto  lhe  tolhemos  o  sal,  por- 
que he  imigo  dos  humores  adustos  e  das  freimas  salgadas; 


266  Colóquio  quadragésimo  sétimo 

e  muitos  homens,  que  de  cá  foram,  me  dixeram,  que  nesta 
terra  também  o  tiravam:  pêra  este  páo  não  sei  como  vós 
quereis  usar  do  sal. 

ORTA 

Uso  do  sal  temperadamente,  porque  nam  he  neseçario 
ser  muito  escrupuloso  na  física,  senam  deixar  tudo  ao  bom 
juizo  do  físico :  e  por  isto  me  parece  que  o  comer  temperado 
com  pouco  sal  não  pode  fazer  mal  nem  a  humor  adusto, 
nem  ás  freimas  salgadas,  e  eu  com  isto  me  achei  bem  sem- 
pre, e  espero  em  Deos  de  me  achar  sempre  bem.  E  também 
os  Chins  usam  nesta  cura  de  comer  pam  com  mel. 

RUANO 

Vistes  alguma  pessoa  que  o  tomase  muytas  vezes,  ou  em 
muyta  cantidade? 

ORTA 

Conheci  hum  meu  amiguo,  que  tomou  unturas  e  fumos, 
e  o  páo  guaiacam,  e  esta  raiz  também,  e  cada  vez  se  achava 
pior.  E  foy  a  Malaqua,  e  achouse  muyto  enfermo  lá,  e  cu- 
rouo  hum  Chin,  e  davalhe  a  comer  esta  rai^  da  China  na 
galinha  cozida,  e  fícou  este  homem  muyto  sam,  e  nunqua 
mais  adoeceo,  porque  este  páo  he  milhor  pêra  as  doenças 
velhas,  que  pêra  as  novas,  e  pêra  onde  ha  inchaços  grandes, 
e  chagas  muyto  roins.  E  por  tanto  nam  vos  maravilheis,  se 
aproveitou  mais  ao  cabo,  porque  pêra  as  ultimas  enfermi- 
dades as  ultimas  curas  sam  poderosas*;  e  ainda  que  este 
aforismo  se  emtenda  na  dieta,  também  se  pode  aleguar  na 
cura,  e  comtudo  olhe  bem  quem  o  dá  o  que  faz,  porque 
já  ouve  muytos  que  pereceram,  e  se  consumiram  de  muyta 
quentura. 

RUANO 

Está  isso  bem  dito;  e  porém  queria  saber  se  ha  outra 
maneira  de  tomar  este  páo  ou  raii. 


*  Anph.  I,  anphorismo  6  (nota  do  auctor) ;  um  dos  mais  conhecidos 
aphorismos  de  Hippocrates. 


Da  raii  da  China  267 

ORTA 

Algumas  pessoas  vi  no  Balagate,  que  tomavam  opáo  como 
acima  dixe,  e  mais  mesturavam  na  aguoa  quente,  que  polia 
manhan  e  á  noite  tomavam,  cada  vez,  huma  dracma  e  mea 
de  páo  mx)ido;  e  com  isto  diziam  que  se  achavam  bem,  e 
dizem  que  o  faziam  por  conselho  de  bons  físicos;  e  outros 
tomam  polia  manhan  huma  boa  talhada  de  conserva,  feita 
do  pó  do  páo  em  mel  (ou  açucare  se  a  quentura  for  muyta) 
e  sobre  ella  bebem  aguoa  do  páo,  e  esta  conserva  leva  o  pó 
do  páo,  segundo  o  arbitro  do  bom  físico:  e  esta  conserva 
também  pode  ser  retificada,  segundo  a  nesecidade  do  paci- 
ente, o  qual  fareis  milhor  que  eu,  como  vos  nisso  exercitar- 
des. E  loguo  se  pode  ver  quanto  páo  he  neseçario  nesta 
conserva,  pois  que  commumente  se  guasta  em  huma  cura, 
pêra  aguoa  dos  trinta  dias,  trinta  onças:  eu  curei  com  isto 
a  duas  pessoas  que  tinham  os  companhões*  muyto  inchados 
de  muito  tempo,  e  hum  sarou  totalmente,  e  o  outro  lhe  fícou 
muyto  pouco  pêra  se  resolver;  e  ficou  pêra  sarar  com  os 
remédios  locaes  somente.  E  por  tanto  vos  aconselho  que 
varieis  os  remédios,  e  mais  vos  diria,  se  vos  não  enfadáse. 

RUANO 

Daqui  a  mil  annos  folgarei  de  vos  ouvir,  portanto  dizei. 

ORTA 

Na  China  comem  este  páo  cozido  com  a  carne,  como  nós 
os  nabos;  porque  elle  he  muyto  tenro,  quando  he  novo,  e 
a  mim  me  parece  que  seria  muito  boa  cousa  tomar  aguoa 
estilada  deste  páo;  e  nam  sei  se  mo  quereram  lá  estilar,  e 
trazermo;  porque  aguora  a  eide  mandar  trazer,  e  pêra  isso 
mando  lá  alanbique. 

RUANO 

Fundado  em  rezam  está,  que  será  muyto  boa  mezinha 
esta  aguoa  estilada:  e  porém  dizei  pêra  que  enfermidades 
o  acharei  proveitoso? 


*  Os  testículos;  o  hespanhol  compaíion. 


268  Colóquio  quadragésimo  sétimo 

ORTA 

Pêra  qualquer  enfermidade  onde  ha  morho  napolitano,  e 
pêra  humor  enfecionado  delle,  e  por  a  parte  lesa  ser  já  to- 
cada delle,  e  ainda  que  não  seja  tocada  desta  enfermidade, 
he  bom  pêra  paralíticos,  e  que  tem  tremor  (do  qual  eu  curei 
ao  Nizamoxa  em  pouquo  tempo)  pêra  artetica,  ciragra,  po- 
dagra,  ciática,  alporcas,  e  pêra  inchaços  reduzidos  a  melan- 
colia ou  freima  como  geso*,  pêra  indigistÕes  do  estômago, 
pêra  xaqueca  velha,  pêra  pedra  e  ulceras  da  bexiga  ás  ve- 
zes, porque  com  este  páo  deitam  a  pedra,  que  antes  não 
pudiam  deitar.  E,  pêra  que  mais  vos  maravilheis,  sabei  que 
hum  físico  bom  letrado,  e  pratico  asaz  experto  pêra  curar 
os  outros,  adoeceo  6o  legoas  desta  cidade,  onde  elle  rese- 
dia,  e  curava  hum  honrado  esprital  em  huma  cidade  de  el- 
rey  nosso  senhor.  Enfermou  elle  de  huma  latica,  da  qual 
foy  doente  quatro  mezes;  e  elle,  porque  vio  que  se  não  ti- 
rava a  febre,  e  por  ser  mais  amiguo  seu  que  de  outrem, 
tirouselhe  o  bom  conhecimento,  e  tevese  por  ético,  e  bebia 
leite  de  asnas,  e  trazia  após  de  si  huma  asna,  a  qual  o  se- 
guia já,  e  o  consentia  mamar;  não  se  achava  milhor,  senão 
empeorava  com  ter  inflações  no  estomaguo;  veiose  aqui  cu- 
rar comiguo,  e  pousou  em  minha  casa;  eu  o  vi,  e  lhe  senti 
alguma  opilaçam  no  fígado,  e  lhe  senti  excrecencias  e  prin- 
cípios na  febre  manifestos;  e  vendolhe  as  orinas  o  convenci 
que  aquilo  era  latica,  com  alguma  mestura  de  melancolia  por 
adustam;  o  qual  elle,  lendo  por  os  livros,  me  confessou,  e 
me  dixe  que  certamente  se  fora  curando  outra  pessoa  não 
me**  enganara,  mas  porque  os  homens,  asi  como  se  queriam 
mais,  asi  tinham  as  suas  enfermidades  por  maiores.  Eu  cu- 
rei este  homem  alguns  dias,  e  ficou  sem  febre  com  huma 
inflaçam  e  dor  no  estomaguo,  e  com  humas  ventosidades 
grossas  nelle,  pêra  o  qual  lhe  dava  conserva  de  gengivre, 


•  Ignoro  completamente  o  sentido  d'esta  expressão. 

**  A  palavra  me  não  faz  sentido,  pois  aquelle  medico  falia  de  si, 
e  deve  dizer,  não  se  inganara. 


Da  raii  da  China  269 

com  que  se  achava  melhor;  e  nunqua  pôde  este  físico  sarar, 
até  que  lhe  dei  o  pdo  da  China,  retiíicando  a  aguoa  com 
huma  pouca  de  aguoa  estilada  de  canela,  e  asi  foy  perfei- 
tamente sam. 

RUANO 

Certamente  que  me  contastes  muitas  cousas  de  boa  pra- 
tica de  medecina,  e  não  quisera  que  acabareis  tam  asinha. 
Por  tanto  dizei  o  nome  e  a  feiçam  áo  páo  ou  rai^  da  China. 

ORTA 

Diguo  que  he  huma  mata,  do  tamanho  de  três  ou  quatro 
palmos  de  altura  sobre  a  terra,  e  terá  de  raiz  hum  palmo, 
pouquo  mais  ou  menos:  he  huma  raiz  grossa,  e  outra  del- 
gada, como  cá  vedes  estas  raizes,  que  he  o  que  qua  vem, 
tudo  raizes;  e  quando  se  colhe  esta  raiz  he  muyto  tenra, 
e  comese  a  bocados,  crua  e  cozida;  e  quando  a  comem, 
lança  de  si  huma  humidade,  como  cana  de  açucare  mal  doce; 
e  saem  desta  raiz  á  frol  da  terra  humas  asteas  pequenas 
como  pena  de  escrever,  e  segjundo  a  raiz  he,  asi  lança  as 
asteas,  e  do  pé  destas  vergonteas  até  o  alto  saem  humas 
folhas  ralas  da  feiçam  da  laranjeira  nova.  Este  páo  ou  mata 
se  chama  na  China  lampatam:  e  isto  he  o  que  pude  saber 
desta  mata  e  raiz,  e  já  vi  huma  mata  pequena  nesta  Goa, 
e  secouse  antes  que  crecesse.  E  porém  antes  que  acabemos 
a  estoria  do  páo,  vos  direi  o  que  me  aconteceo  nos  tempos 
passados.  Antes  que  este  páo  viesse  á  índia,  avia  hum  mer- 
cador de  pedras,  a  que  cá  chamamos  lapidar ios,  e  também 
lhe  pudiamos  cha^mox pedreiros,  senão  chamamoslhe  o  nome 
latino  pêra  os  mais  honrar:  este  teve  huma  parlesia  universal 
em  todo  o  corpo  e  braços,  e  pernas  e  mãos  e  pés,  em  tanta 
maneira  que  nam  pudia  bulir  hum  anel  pêra  o  ver:  avia 
já  seis  mezes  que  era  doente  sem  nenhuma  melhoria,  pediu- 
me  que  o  aconselhase,  se  seria  bom  tomar  o  giiaiacam,  e 
lhe  dixe  que  ao  menos  nam  lhe  faria  mal.  A  este  homem 
curei  xaropando  e  purgando  primeiro,  e  no  meo  menoran- 
doo,  ao  fim  também;  e  ficou  muyto  sam.  E  avendome  elle 
pagado  muyto  bem,  por  fim  me  deu  hum  anel  com  hum 


270  Colóquio  quadragésimo  sétimo 

diamam,  pello  qual  me  deram  5o  crusados,  e  asi  me  deu 
hum  relógio,  com  hum  mostrador  muyto  bom,  e  me  dixe  que 
lhe  perdoase,  que  bem  sabia  que  me  não  paguava,  senam 
que  me  dava  aquilo  por  lembrança;  e  porém  que  me  daria 
hum  conselho,  e  era  que  nam  mandáse  a  nenhum  dos  que 
curase,  que  não  dormisse  com  molher,  senão  que  nam  a  vise; 
por  que  elle,  comendo  por  dia  seis  onças  de  pam  e  passas, 
sendo  vinte  cinquo  dias  do  páo,  tivera  aceso  com  huma  sua 
moça  três  vezes:  vede  quanto  pôde  o  estimulo  da  carne!  E 
mais  me  dixe  que,  quando  o  achava  muyto  triste  e  elle  dizia 
que  avia  de  morrer,  que  nam  era  senão  com  o  pensamento 
de  aver  pecado  contra  Deos  e  contra  sua  saúde.  E  dahi 
avante  sempre  vedo  o  coito  aos  que  tomam  esta  j^ai^  ou  páo; 
porque,  se  com  a  dieta  muyto  grande  se  acontece  isto,  que 
fora  com  a  larga  da  raii  da  China?  E  mais  todos  dizem  que 
este  páo  ou  raiz  incita  muyto  isto;  e  por  tanto  vos  requeiro 
que  os  que  curardes,  que  não  vejam  molheres,  porque  as 
não  toquem  (2),  E  o  páo  que  ouverdes  de  levar  pêra  Portu- 
gal, seja  metido  tm  jarras  martavans  de  colo  alto;  porque 
sam  vidradas  por  dentro,  e  sostem  muyto  o  páo  sem  se 
danar  (3). 


Nota  (i) 

O  nome  de  «guaiacam»,  do  americano  giiaiacan,  usado,  segundo  pa- 
rece, pelos  indígenas  das  Antilhas,  dava-se  ás  madeiras  de  duas  arvo- 
res do  mesmo  género,  e  da  família  das  Zygophjyllece :  GviaiacTxm. 
oflieinale,  Linn.,  uma  arvore  mediana  das  Antilhas,  Cuba,  Jamaica, 
Trinidad  e  outras,  e  também  da  terra  firme  da  America:  Grixaia- 
cnin.  sanctvim,  Linn.,  uma  arvore  muito  similhante  á  precedente, 
da  qual  se  distingue  por  caracteres  puramente  botânicos,  e  habitando 
nas  mesmas  regiões.  Cuba  e  outras  ilhas,  e  parte  meridional  da  Florida. 

Esta  madeira  foi  conhecida,  ao  que  parece,  logo  depois  das  primei- 
ras viagens  de  Colombo,  e  começou  a  ser  considerada  um  remédio 
poderoso  nas  doenças  syphiliticas,  que  se  haviam  desenvolvido  pela 
Europa  de  uma  maneira  pavorosa  por  aquelles  fins  do  xv  século  e 
princípios  do  seguinte.  Julgava- se  a  doença  de  importação  americana, 
como  vimos  já  (11,  p.  11 5),  e  isto  contribuía  para  dar  importância  ao 


Da  7'at\  da  China  271 

remédio,  americano  também.  A  madeira  foi  por  isso  conhecida  pelos 
nomes  de  guaiacum  sanctum,  ligiium  sancíum,  lignum  vitce,  derivados 
da  sua  verdadeira  ou  supposta  efficacia;  e  deu  logar  a  uma  abundante 
htteratura.  Logo  no  anno  de  iSij,  um  Nicoláo  Poli,  depois  medico  do 
imperador  Carlos  V,  escreveu  um  opúsculo  curto.  De  cura  Morbi  Gal- 
lici  per  Lignum  Guayacanum,  onde  nota,  que  aqueUe  remédio,  quod 
sanctum  cognominam,  parecia  vir  providencialmente  da  terra,  donde 
viera  a  terrivel  doença.  No  anno  seguinte  (i5i8),  Leonardo  Schmauss 
conta  no  seu  De  Morbo  Gallico  tractatus,  como  mandara  pedir  infor- 
mações a  respeito  do  novo  remédio,  e  obtivera  de  Portugal  e  Hespa- 
nha  dezenove  cartas  e  noticias,  sobre  as  quaes  redigira  o  que  dizia 
de  arbo)  e  guaiacana.  As  dezenove  cartas  levaram  de  certo  tempo  a  re- 
unir, por  onde  se  vê,  que  se  devia  ter  começado  a  fallar  do  remédio 
logo  no  começo  do  século,  como  já  antes  notámos.  Também  no  anno 
seguinte  (iSig)  Ulrich  von  Hutten,  o  conhecido  partidário  da  Reforma, 
e  tido  na  conta  de  um  excellente  latinista,  escreveu  um  opúsculo  en- 
comiástico, onde  celebrava  a  sua  própria  cura:  Ulrichi  de  Hutten  equi- 
tis  de  Guaiaci  medicina  et  rnorbo  gallico  liber  unus.  Este  era  o  «fidalgo 
alemam»  do  nosso  Orta,  que,  reconhecendo-lhe  as  qualidades  de  es- 
criptor  «em  muyto  copioso  estilo  e  mui  puro  latim»,  lhe  nota,  no  em- 
tanto,  que  tudo  aquillo  podia  ser  escripto  em  «huma  folha  de  papel». 
Oviedo,  no  seu  conhecido  livro  sobre  as  índias  occidentaes  (i526),  e 
muito  mais  tarde  Monardes,  no  não  menos  conhecido  tratado  das 
Drogas  de  las  índias  (1569),  deram" igualmente  varias  noticias  interes- 
santes sobre  o  guaiacan;  noticias  que  não  vem  ao  nosso  caso,  e  não 
será  necessário  resumir. 

Aquella  droga  vinha,  pois,  das  novas  possessões  americanas  hespa- 
nholas  a  Sevilha  e  outros  mercados  de  Hespanha,  d'onde,  comovemos 
pelo  nosso  Orta,  passava  a  Portugal,  sendo  exportada  d'aqui  para  a 
índia  oriental. 

(Cf  Pharmac,  92 ;  Poli,  Schmauss,  e  Hutten,  em  Aloysio  Luisino, 
Aphrodisiacus,  sive  de  lue  venérea,  p.  241,  383,  275;  Oviedo,  em  Ramu- 
sio,  III,  54  e  124;  Monardes,  nos  Exoticorum,  3 12.) 

Nota  (2) 

A  rai:;  da  China  pertencia  a  uma  planta  trepadeira  e  espinhosa  da 
familia  das  Smilacece,  Snxilax  China,  Linn.  (^5./eroA-,Wallich), 
espontânea  na  China  e  Japão,  assim  como  em  algumas  provincias 
orientaes  da  índia;  mas  Orta  não  conhecia  esta  ultima  procedência. 

Todo  o  Colóquio,  com  as  suas  longas  e  um  tanto  fastidiosas  espla- 
nações  sobre  as  regras  a  seguir  na  applicação  da  rai^  da  China,  e  regi- 
men dietético  a  observar,  é  estremamente  interessante  para  a  historia 


272  Colóquio  quadragésimo  sétimo 

da  medicina,  pois  é  a  primeira  noticia  scientifica,  sobre  a  introducção 
na  índia  de  um  novo  remédio,  que  d'ali  passou  para  a  Europa.  Não 
exige,  porém,  nem  comporta  uma  longa  nota,  pois  não  tem  muitos 
pontos  obscuros  a  elucidar. 

A  nova  droga,  começada  a  applicar  com  proveito  na  índia,  no  anno 
de  i535,  depois  da  noticia  dada  em  Diu  a  Martim  Affonso  de  Sousa, 
foi  trazida  desde  logo  para  a  Europa,  creando-lhe  sobretudo  repu- 
tação o  facto  de  ser  tomada  com  favorável  resultado  pelo  impera- 
dor Carlos  V,  que  sofFria  de  gotta.  E  o  celebre  medico  e  cirurgião, 
André  Vesalio,  escreveu  e  publicou  em  o  anno  de  1 546  uma  carta  sobre 
este  assumpto  especial :  Epistola  rationevi,  jnodinnque  propinandi  ra- 
dieis Chince  decocti,  quo  miper  invictissimus  Carolus  V  imperator  iisus 
est.  Orta  conhecia  esta  carta,  onde  vem  algumas  criticas  e  reparos  ao 
novo  remédio  ^;  assim  como  conhecia  o  que  haviam  dito  em  seu  des- 
favor, e  em  seu  louvor,  o  erudito  André  Laguna,  e  o  eruditíssimo 
Matihioli.  A  rai^  da  China,  preconisada  no  tratamento  das  doenças 
syphiliticas,  que  atrahiam  então  todas  as  attenções,  foi  eflFectivamente 
muito  discutida,  louvada  e  preferida  ao  guaiaco  por  uns,  e  n'esse  nu- 
mero entrava  o  nosso  Orta,  tida  em  conta  inferior  por  outros  e  creio 
que  pelo  maior  numero.  Por  outro  lado,  as  sarsaparilhas,  provenien- 
tes de  diversas  espécies  americanas  do  mesmo  género  Smilax,  come- 
çaram quasi  pelo  mesmo  tempo  a  ser  conhecidas  na  Europa,  e  a  sua 
crescente  reputação  contribuiu  para  diminuir  a  voga  da  rai^  da  China. 
Na  Europa  caiu  em  quasi  completo  abandono;  mas  no  Oriente,  na 
China  e  na  índia,  onde  é  geralmente  conhecida  pelo  nome  persa 
chúb-chini  (páo  da  China),  consomem-se  ainda  hoje  enormes  quan- 
tidades d'aquella  droga,  sendo  geralmente  considerada  anti-rheuma- 
tica,  anti-syphilitica  e  aphrodisiaca. 

A  noticia  de  Orta,  de  que  «na  China  comem  este  páo  cozido  com  a 
carne,  como  nós  os  nabos»,  vem  confirmada  modernamente  por  Polak, 
citado  na  Pharmacographia,  o  qual  afRrma  que  serve  de  alimento  aos 
Turcomanos  e  aos  Mongoes.  É  possível,  no  emtanto,  que  a  noticia  de 
Orta,  como  a  de  Polak,  resulte  de  alguma  confusão  da  rai^  da  China, 
chamada  n'aquelle  payz  tu-fuh-ling,  com  um  singular  cogumello,  o  Pa- 
chyma  Cocos,  chamado  fuh-ling,  e  que  effectivamente  serve  de  alimento. 

Orta  toca  n'este  Colóquio,  como  já  tinha  feito  no  trigésimo  quarto, 
em  uma  questão  complicada,  a  antiga  existência  da  syphilis  no  Oriente, 
questão  em  que  reconheço  a  minha  absoluta  incompetência.  Não  se 
percebe  muito  bem,  se  Orta  admitte  a  importação  da  doença  na  Europa 
nos  fins  do  xv  século,  o  que  era  então  a  doutrina  corrente,  e  unicamente 


'  O  nosso  Orta  tem  rasão,  e  Vesalio  faz  effectivamente  varias  críticas  ao  novo  remédio, 
devendo  eu  emendar  n'este  ponto  o  que  disse  em  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  p.  294. 


Da  raii  da  China  278 

diz,  que  ella  existira  de  todo  o  tempo  n'aquellas  «terras  todas  e  na  China 
e  em  Japam»,  como  existia  na  America;  ou  se  francamente  rejeita  a  dou- 
trina da  importação,  suppondo  aquella  doença  antiga  em  todo  o  mundo. 
Este  ultimo  modo  de  ver,  foi  sustentado  em  tempos  relativamente  an- 
tigos, assim  como  nos  modernos,  admittindo-se,  por  exemplo,  que  o 
ch.zmB.áo  fogo  persa,  muito  espalhado  pelo  Oriente,  seria  a  syphilis; 
e  encontrando-se  também  na  Biblia  algumas  passagens,  significativas 
da  existência  da  doença  entre  os  hebreus,  desde  o  tempo  de  Moysés. 
No  caso  de  Orta,  como  em  muitos  outros,  a  questão  complica-se  pelo 
facto  de  elle  não  distinguir  claramente  as  doenças  syphiliticas  das  sim- 
plesmente venéreas;  e  eu  — repito —  deixarei  a  discussão  a  pessoa 
mais  competente. 

Notarei  unicamente  dous  factos,  que  parecem  contrariar  a  opinião 
de  Orta,  e  indicar  uma  importação  no  Oriente  pelos  europeus,  princi- 
palmente pelos  portuguezes:  o  primeiro,  apontado  pelo  próprio  Orta 
no  Colóquio  trigésimo  quarto,  é  o  nome  fringui  dado  ás  boubas  na 
índia,  e  que  é  a  simples  corrupção  de  frangue,  e  indica  uma  origem 
europêa  do  mal,  trazido  pelos  frangues  ou  francos :  o  segundo  é  uma 
phrase  de  António  Pigafetta,  o  companheiro  de  viagem  de  Magalhães 
na  primeira  circumnavegação  do  globo,  o  qual  diz,  que  em  Timor  e 

outras  ilhas  (i522)  chamavam  á  sj-philis  mal  de  Portugal:  in 

tiitte  qiieste  isole regna  una  malatthia  che  quei  popoli  la  chia- 

mano  il  mal  di  Portogallo,  e  noi  altri  in  Itália  il  mal  francese. 

(Cf.  Pharmac,  648;  a  carta  de  André  Vesalio  em  A.  Luisino,  Aphro- 
disiacus,  586;  Dymock,  Mat.  med.,  838;  sobre  o  Pachyma  Cocos  e  outras 
producçóes  análogas,  Hanbury,  Science  papers,  200  e  seguintes;  Ha- 
monic,  Les  maladies  vénériennes  che:^  les  Hebreux  à  VEpoque  Biblique, 
nos  Ann.  de  Dermatologie  et  de  Syphiligraphie  (1886  e  1887) ;  Pigafetta 
em  Ramusio,  i,  368  verso.) 

Nota  (3) 

As  jarras  martavans  eram  fabricadas  na  região  da  Indo -China,  que 
lhes  dava  o  nome,  e  muito  apreciadas  em  todo  o  Oriente.  Deviam  ser 
de  barro  vidrado,  posto  que  Duarte  Barbosa  diga  serem  de  porcellana. 
Eis  a  passagem  de  Duarte  Barbosa  :  « . .  . .  lambem  se  fazem  n'este  lugar 
(Martabam)  muytas  e  grandes  jarras  de  porcelana,  muy  grosas,  rijas,  e 
fermosas;  ha  hy  delias  que  levaom  hua  pipa  dagoa;  saom  vidradas  por 
dentro  de  preto  e  muyto  estimadas  entre  os  Mouros». 

Linschoten  (i5g8)  ainda  lhes  attribue  maiores  dimensões,  dizendo 
que  algumas  podiam  levar  duas  pipas;  e  Pyrard  de  Lavai  (1610)  tam- 
bém as  louva  muito :  . . .  des  jarres  les  plus  belles,  les  mieux  vernies 
et  les  mieux  façonnées  que  faye  vu  ailleurs  (cf.  Duarte  Barbosa,  Li- 
vro, 36i;  Yule  e  Burnell,  Gloss.,  v.  Martaban). 

18 


COLÓQUIO  QUADRAGÉSIMO  OITAVO 

DO  RUIBARBO,  O  QUAL  SE  DIZ  EM  POUCAS  PALAVRAS 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

Do  ruibarbo  queria  saber  a  feiçam  do  arvore,  e  folhas  e 
fruta  que  tem;  e  se  esta  raiz  que  a  nós  vem,  se  vem  verda- 
deira ou  falcificada;  que  certamente  que  por  ver  hum  arvore 
destes  daria  muyto  agora. 

ORTA 

Muytos  annos  ha  que  vi  no  tesouro  de  Cochim  hum  caxam 
da  China  cheo  de  ruibarbo,  o  qual  estava  muito  podre,  e 
todo  se  fazia  em  pó.  E  dixeramme  em  Cochim,  que  os  Chins 
coziam  aquellas  raizes  ou  as  estilavam,  e  que  se  purgavam 
com  aquella  agoa;  e  posto  que  isío  me  dixeram  muytas  pes- 
soas, nunqua  descansei,  porque  nenhuma  era  testemunha 
de  vista,  e  porque  nós  temos  por  certo  que  todo  o  ruibarbo 
que  vem  de  Ormuz  ter  á  índia,  vem  ter  a  Ormuz  primeiro 
da  China,  pella  província  de  Uzbeque,  que  he  parte  da  Tar- 
taria;  e  he  fama  que  da  China  vem  ahi  ter  per  terra,  e 
alguns  dizem  que  o  ha  na  mesma  terra  de  Uzbeque  em 
huma  cidade  chamada  Çamarcandar;  porém  este  he  muito 
ruim,  e  de  pouco  peso,  e  purgam  com  elle  os  cavalos  na 
Pérsia,  e  eu  também  os  vi  purguar  no  Balagate,  e  a  meu  pa- 
recer este  deve  ser  o  ruibarbo,  que  nós  chamamos  em  Eu- 
ropa ravam  turquino,  e  não  porque  elle  seja  da  Turquia  nem 
perto  delia. 

RUANO 

E  dos  que  vam  á  China  não  averá  algum  que  diga  a  ver- 
dade, perguntandolhe  vós? 

ORTA 

Em  estremo  desejei  saber  isto,  e  dizemme  os  mercadores 
que  lá  vam,  que  o  nam  ha  no  porto  de  Cantam,  senão  pella 


276  Colóquio  quadragésimo  oitavo 

terra  dentro;  e  trazemno  ahi  a  Cantam  a  vender,  e  dahi 
vem  á  China*,  e  algum  a  esta  índia;  donde  vem  ter  tam 
danado  pollo  mar,  que  o  não  queremos  cá  gastar,  por  ser 
milhor  o  que  vem  pella  via  de  Ormuz. 

RUANO 

Por  tam  certo  tendes  que  não  ha  ruibarbo  senão  na  China? 

ORTA 

Si,  porque  o  que  vem  de  Ormuz  elles  mesmos  confesam 
que  vem  ter  á  Tartaria  da  China,  e  da  Tartaria  ou  Uzbeque 
vem  a  Ormuz  e  a  toda  essa  Pérsia,  e  por  isso  lhe  chamam 
rapam  chim',  e  os  Mouros  muytos  nesta  terra  lhe  chamam 
somente  rapam ^  mas  todos  confessam  não  aver  outro,  senão 
o  da  China;  que  he  asi,  que  nam  ha  ruibarbo  trazido  de 
Berbéria  nem  rapam  indico;  senão  o  que  se  traz  á  índia, 
ou  Berbéria,  ade  vir  primeiro  da  China  á  índia,  ou  á  Berbé- 
ria. 

RUANO 

Falando  comvosco  a  verdade,  milhor  ruibarbo  me  parece 
o  que  vendem  em  Castella,  scilicet,  em  Medina  ou  em  Se- 
vilha, que  o  que  se  vende  em  Portugal  na  caza  da  índia;  e 
asi  vai  mais  caro  muyto. 

ORTA 

O  ruibarbo  que  vem  á  Pérsia  ou  Uzbeque,  vai  dahi  ter 
a  Veneza,  donde  vai  a  Espanha,  e  este  vai  a  Veneza  pella 
via  de  Alexandria;  e  muyto  outro  vai  ter,  pella  via  de  Alepo, 
a  Tripol  de  Suria,  donde  vai  á  mesma  Veneza ;  e  porque 
todos  estes  caminhos  sam  pouquos  por  mar,  e  muitos  por 
terra,  nam  danam  tanto  o  ruibarbo;  porque  tenho  por  ave- 
riguado, que  gasta  mais  e  apodrece  hum  mez  de  mar  que 
hum  anno  da  terra.  E  já  o  ruibarbo  que  vem  á  índia  por 
maio,  com  estar  nella  até  setembro,  não  he  para  se  guastar 


*  Não  se  percebe  bem  o  que  quer  dizer,  e  a  phrase  deve  estar  alte- 
rada na  impressão. 


Do  ruibarbo  277 

já,  e  entonces  vem  outro  de  Ormuz  milhor  e  mais  novo;  e 
o  compram  pêra  a  índia,  e  pêra  o  levarem  a  Portugal;  e  o 
que  invernou  na  índia,  deitamno  na  praia,  e  isto  nam  se 
entende  no  que  inverna  nas  terras  do  sertam;  porque  nam 
he  terra  sogeita  a  potrefaçam;  e  quem  nesta  terra  o  quizer 
bem  guardar,  mandeo  a  Bisnaguer  ou  a  Balagate.  E  peço- 
vos  muito  por  mercê  que  me  perdoeis  por  vos  não  falar  no 
ruibarbo^  senam  pouco  ou  nada;  porque  o  não  pude  saber. 
E  espero  em  Deos,  que  se  saiba  tudo  mais  bem  sabido 
ainda,  pois  a  China  se  conversa  tanto  já  com  os  Portugue- 
zes  (i). 


Nota  (i) 

O  rhuibarbo  do  commercio,  a  raiz  do  R-heuin.  olHcinale, 

Baillon,  da  família  das  Polygonacece,  e  porventura  também  a  de  ou- 
tras espécies  próximas,  vinha  de  regiões  distantes,  que  no  tempo  de 
Orta  — e  ainda  até  certo  ponto  hoje —  eram  mal  conhecidas,  e  das  quaes 
elle  tinha  naturalmente  escassas  noticias. 

Os  antigos  conheceram  uma  droga,  chamada  pã,  p-íiov,  rhacoma,  e  de- 
pois rha-ponticum,  rheum  barbarum,  reii  barbanmi,  que  seguramente 
deveria  ser  a  raiz  de  uma  ou  mais  espécies  do  género  Rheum,  entre  as 
quaes  figurava  de  certo  a  que  depois  forneceu  a  maior  parte  da  droga. 
A  palavra  ponticum  vinha  da  sua  procedência,  ou  antes  simplesmente 
passagem,  pelas  regiões  próximas  ao  Ponto  Euxino;  emquanto  a  de- 
signação de  barbarum  se  quiz  derivar  da  sua  exportação  pelo  antigo 
porto  de  Barbarike  na  costa  da  índia,  mas  deve  antes  resultar  de  ser 
trazida  de  regiões  desconhecidas  e  barbaras '.  De  reu-barbarum  se  de- 
rivou facilmente  a  palavra  portugueza  e  hespanhola  ruibarbo,  que  já 
encontramos  n'esta  forma  em  um  documento  de  Barcelona  de  1271, 
citado  por  Capmany. 

Orta  não  conhecia,  nem  a  feição  da  planta,  nem  exactamente  a  sua 
habitação,  o  que  de  modo  algum  nos  pôde  surprehender.  Apenas,  al- 
guns séculos  antes,  um  único  viajante  europeu,  o  famoso  Marco  Polo, 
havia  passado  pela  região  e  cidade  de  Sukchur  (Su-chau,  na  provinda 


'  Também  a  primeira  parte  do  nome,  se  attribuiu,  na  sua  forma  Rha,  ao  antigo  nome  do 
Volga,  por  onde  se  dizia  vir;  e  na  forma  reu,  raved,  ravam  (como  diz  Orta)  simplesmente 
a  ser  uma  raiz. 


278  Colóquio  quadragésimo  oitavo 

de  Kan-su),  dando  noticia  de  que  ali  havia  pelos  campos  muito  rhui- 
barbo,  em  que  na  cidade  se  fazia  um  activo  commercio,  concorrendo 
a  ella  mercadores  de  todas  as  partes  do  mundo.  Esta  noticia  isolada 
podia  facilmente  escapar,  como  escapou,  ao  nosso  escriptor.  Também 
este  não  podia  conhecer  uma  noticia  interessante  e  mais  minuciosa, 
pouco  anterior  ao  seu  livro.  Ahi  pelo  anno  de  i55o,  pouco  mais  ou 
menos,  Ramusio  deu  um  almoço  em  Murano,  fora  de  Veneza,  ao  qual 
assistiam  os  seus  amigos,  o  architecto  messer  Michele  San  Michele,  o 
celebre  editor  e  impressor  messer  Thomazo  Giunti,  o  interprete  em 
lingua  turca  da  Illustrissima  Signoria  de  Veneza  messer  Michele  Mam- 
bré,  e  um  mercador  mussulmano  Chaggi  Memet  (Hadj  Mohammed), 
recentemente  chegado  com  uma  carregação  de  rhiiibarbo.  A  sobre- 
mesa, a  conversação  versou  particularmente  sobre  aquella  droga,  e  o 
mercador  contou  como  havia  penetrado  até  á  cidade  de  Succuir  (Su- 
chau,  o  Sukchur  de  Polo),  dando  informações  sobre  o  commercio  do 
rhuibarbo,  e  uma  descripção  da  planta,  acompanhada  por  um  dese- 
nho. Esta  descripção  e  desenho  foram  fielmente  inseridos  pelo  Ra- 
musio no  seu  livro;  e  aproveitados  depois  pelo  erudito  Matthioli  nas 
suas  annotacões  á  obra  de  Dioscorides.  O  desenho  não  era  muito  exacto ; 
e,  um  século  depois,  o  padre  Kircher  reproduziu-o  na  sua  China  illus- 
trata,  confrontando-o  com  um  desenho  mais  correcto,  obtido  pela  in- 
tervenção dos  Jesuítas,  que  já  então  começavam  a  penetrar  na  China 
septemtrional.  Modernamente  vários  viajantes  —como  Prjevalsky,  Pias- 
setsky,  que  esteve  em  Lan-tchu,  junto  ao  rio  Amarello  e  á  Grande  Mu- 
ralha, um  dos  mercados  conhecidos  d'aquella  droga,  o  capitão  William 
Gill,  mais  recentemente  Bonvalot  e  Henrique  de  Orleans —  tèem  pas- 
sado pelas  terras  onde  se  cria  o  rhuibarbo,  ou  nas  suas  proximidades; 
mas  são  principalmente  os  missionários,  estabelecidos  nas  fronteiras  do 
Thibet,  como  o  vigário  apostólico  Chauveau  e  outros,  que  têem  for- 
necido informações  valiosas.  Por  seu  intermédio  se  obtiveram  as  plan- 
tas, que  se  cultivaram  e  floriram  no  jardim  botânico  de  Montpellier,  e 
pelas  quaes  o  sr.  Baillon  fez  a  sua  diagnose  da  espécie. 

A  área  habitada  pelo  Rheum  é  bastante  vasta,  comprehendendo  as 
províncias  de  Shan-si,  Shen-si,  Ho-nan,  Kan-su  e  parte  da  de  Sz-chuen 
na  China,  assim  como  todo  o  Thibet  oriental,  terras  de  Zaidam,  Min- 
jak  e  outras.  O  Rheum  cresce  ali  espontaneamente  nas  pastagens  e 
encostas  relvadas  das  montanhas.  Se  em  toda  a  região,  o  rhuibarbo 
do  commercio  procede  da  única  espécie  Rheum  officinale,  ou  se  outras 
espécies  o  produzem  também,  é  questão  que  não  está  ainda  resolvida. 

No  tempo  de  Orta,  e  antes,  algum  rhuibarbo  vinha  á  índia  dos  por- 
tos da  China  por  Malaca;  mas  nas  viagens  longas  d'aquelle  tempo,  e 
mal  acondicionado  nas  embarcações,  chegava  geralmente  em  péssimo 
estado  á  índia,  e  em  muito  peior  a  Portugal.  Thomé  Pires  queixava-se 
da  mesma  cousa : 


Do  ruibarbo  279 

«Também  foy  Ha  ter  hiia  soma  de  Ruybarbo  podre,  que  se  comprou 
em  Malaca :  eu  nom  fuy  na  compra  delle,  que  estava  em  Cananor :  foy 
comprado  por  quatro  centos  cruzados  a  Ruy  daraujo  e  Joham  viegas : 
devem  tornar  o  dinheiro  a  vosa  alteza,  pois  venderam  mercadoria  po- 
dre   » 

O  ravam  chnii,  vindo  directamente  da  China  por  mar,  era  de  tão  má 
qualidade,  que  nunca  podemos  supplantar  na  Europa  o  que  seguia  o 
antigo  caminho;  e  o  próprio  Orta  confessa,  dever  ser  o  da  Casa  da  ín- 
dia peior,  que  o  vendido  em  Hespanha  e  procedente  de  Veneza.  Este 
>  vinha  pelo  longo  caminho  das  caravanas,  por  Yarkand,  Kashgaria,Tur- 
questan,  passando  em  Samarcanda  («Çamarcandar»  de  Orta),  e  pela 
Pérsia  a  Hormuz,  ou  para  occidente  aos  portos  da  Syria,  donde  ia  a 
Veneza. 

Muito  mais  tarde,  este  caminho  desviou-se  para  o  norte,  indo  as 
caravanas  pelo  deserto  de  Gobi  a  Kiachta,  e  tendo  então  a  Rússia  o 
monopólio  do  commercio  de  rhuibarbo  para  a  Europa. 

(Cf.  Baillon,  Adans.,  x,  246;  Pharmac,  442;  Yule,  Marco  Polo,  (,219, 
220;  Ramusio,  Nav.,  11,  i5;  Kircher,  China  illustrata,  i83  e  184,  Amste- 
lodami,  1667;  Ga^.  de  Pharm.,  38.) 


COLÓQUIO  QUADRAGÉSIMO  NONO 

DE  TRÊS  IVIANEIRAS  DE  SÂNDALO 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 
RUANO 

He  o  sândalo  muyto  neseçario,  por  ser  muyto  cordial,  e 
com  ser  frio  cheira  bem  (cousa  que  em  poucas  mezinhas 
se  acontece);  e  por  isto  parece  mal  a  Mateolo  Senense  o 
que  dizem  os  Arábios  da  compleisam  do  sândalo.  E  o  saji- 
dalo  vermelho  dizemme  nesta  terra  que  he  ávido  por  mais 
frio,  e  a  causa  disto  he  porque  não  tem  cheiro,  e  por  en- 
tender milhor  isto,  folgaria  de  saber  o  nome  delle  acerqua 
das  linguoas  da  terra  onde  o  ha,  e  da  Arábia;  e  saber  em 
que  terras  nasce,  e  saber  se  he  em  uso  de  medecina  acerqua 
da  gente  desta  terra. 

ORTA 

O  sândalo  nasce  acerqua  de  Timor,  onde  ha  a  maior  can- 
tidade;  e  he  chamado  chandam:  com  este  nome  se  chama 
por.  todas  as  terras  visinhas  a  Malaqua;  e  os  Arábios,  como 
pessoas  que  cheiravam  o  comercio  destas  terras,  corrom- 
pendo o  vocábulo,  lhe  chamaram  sandal.  Todo  o  Mouro  de 
qualquer  naçam  que  seja  o  chama  asi;  e  os  Canarins  e  De- 
canins  e  Guzarates  o  chamam  cercandá.  Nacem  e  crecem 
os  arvores  do  sândalo  em  Timor,  donde  he  a  maior  canti- 
dade;  e  sam  matas  que  não  se  acabam  de  gastar,  asi  de 
huma  banda  da  ilha  como  da  outra. 

RUANO 

E  todo  o  sândalo  nasce  nestas  ilhas  somente? 

ORTA 

Em  outras  partes  nasce,  como  vos  direi;  e  porém  em  Ti- 
mor não  nasce  este  sândalo  vermelho,  senão  em  Tanasarim 


282  Colóquio  quadragésimo  nono 

e  na  costa  de  Charamandel*,  scilicet,  em  alguns  cabos  delia. 
E  a  feiçam  deste  arvore  do  sândalo  vermelho,  até  ao  presente, 
não  o  pude  saber  ^  mas  sei  certo  que  vem  dali  todo  o  sândalo 
vermelho,  o  qual  se  guasta  muyto  pouquo  nesta  terra,  por- 
que não  o  gasta  a  gente  mais  que  pêra  febres,  e  algum  se 
leva  para  Portugal  e  pêra  as  bandas  do  ponente.  E  também 
se  gasta  cá  o  vermelho  em  pagodes  ou  Ídolos,  e  amde  ser  os 
páos  mu3lo  grandes ;  e  por  isso  quanto  o  páo  he  maior,  que 
entram  mais  pouquos  páos  em  hum  bar  (que  sam  quatro 
quintaes)  tanto  vai  mais  preço.  E  quanto  he  ao  sândalo  bran- 
quo e  amarelo-,  muyto  grande  cantidade  se  guasta  em  toda 
a  índia;  porque  toda  a  mais  gente,  ora  sejam  Mouros  ora 
Gentios,  se  untam  com  sândalo  desfeito  em  aguoa,  e  pisado 
em  pedras,  que  pêra  esse  mister  tem  feitas;  e  asi  untam  todo 
o  corpo  até  que  se  seca  pêra  estarem  frios,  e  cheirarem  bem; 
porque  esta  terra  he  muito  quente,  e  a  gente  delia  muyto 
amigua  de  cheiros. 

RUANO 

Diz  Mateolo  Senense  que  nace  em  ambas  as  índias,  sci- 
licet, na  que  está  primeiro  que  o  Ganges,  e  na  que  está 
alem  do  Ganges. 

ORTA 

Não  nasce  o  sândalo  vermelho  senão  na  índia,  que  está 
ante  do  Ganges**  (o  qual  rio  a  gente  da  terra  chama  Gam- 
gua),  e  outro  sândalo  branquo  e  amarelo  nasce  alem  do 
Ganges  (i). 

RUANO 

Como  sabeis  que  este  páo  vermelho  he  sândalo,  e  não 
bra\il,  pois  nenhum  delles  tem  cheiro? 


*  A  mesma  orthographia  se  encontra  em  outros  escriptores  portu- 
guezes,  e  parece  representar  correctamente  a  pronuncia  de  então,  que 
depois  se  alterou,  sem  rasão,  para  Coromandel. 

**  Isto  é  um  simples  equivoco,  pois  disse  antes  encontrar-se  em  Te- 
nasserim,  que  elle  sabia  muito  bem  estar  alem  do  Ganges. 


De  três  maneiras  de  sândalo  283 

ORTA 

Verdade  he  que  nenhum  cheira  bem,  mas  o  bra:{il  he 
mais  doce,  e  mais  tinge;  e  o  sândalo  nem  he  doce,  nem 
tinge.  E  deste  modo  perdeo  hum  meu  amigo  mercador, 
porque  trouxe  sândalo  i'ermelho  por  brasil,  e  os  tintoreiros 
lho  compraram,  e  como  viram  que  não  tingia,  tornaramlho 
a  engeitar,  e  assi  ficou  por  vender  a  mercadoria. 

RUANO 

Não  vai  mais  dinheiro  o  sândalo  vermellio  que  o  hraiil?  (2). 

ORTA 

Vai  mais  o  sândalo  vermelho,  porém  gastase  pouco,  e  do 
hra:[il  guastase  muyto ;  e  por  isto  quando  vem  muyto  sândalo 
vai  pouquo.  E  tornando  a  dizer  donde  nasce  o  sândalo 
branco  e  amarelo,  diguo  que  em  Timor  (a  qual  ilha  tem 
muytos  portos  de  huma  banda  e  de  outra);  e  diguo  que  o 
de  Mena,  que  he  hum  porto,  he  o  milhor  de  todos,  e  tem 
menos  páo  que  os  outros:  e  Matomea,  que  he  outro  porto, 
tem  hum  sândalo  amarelo,  mas  tem  muyto  páo.  E  diguo 
ter  muyto  páo,  ter  pouco  cerne,  porque  no  cerne  está  o 
cheiro;  e  o  outro  porto  dito  Camanace  tem  ruim  sândalo, 
porque  he  de  muyto  páo  e  de  pouco  cerne,  ou  amaguo:  e 
desta  maneira  he  o  sândalo  de  Cerviaguo  (outro  porto  asi 
chamado).  E  os  mercadores  esprementados  vendo  o  sândalo 
loguo  dizem  donde  he,  e  se  tem  muyto  páo  ou  pouquo.  E 
também  ha  sândalo  em  Verbali  (que  he  hum  porto  de  Jaoa), 
e  ha  nelle  sândalo  amarelo  e  branco,  e  tem  muyto  forte 
cheiro,  mas  dura  esto^  sândalo  pouquo;  porque,  se  está  hum 
anno  sem  se  vender,  he  neseçario  cortarlhe  o  páo,  e  ficar 
mais  no  cerne.  E  também  se  achou  em  Macaca*  huma  mata 
de  sândalo,  e  guastouse  já,  ou  por  dizer  mais  verdade  era 
tam  ruim  que  o  não  compravam,  e  por  isso  não  foram  lá 
por  elle. 


*  Talvez  Macassar? 


284  Colóquio  quadragésimo  nono 


RUANO 

Ha  de  duas  maneiras  sândalo  em  Timor,  ou  he  todo 
branco?  E  qual  he  mais  estimado? 

ORTA 

O  mais  estimado  e  de  milhor  cheiro  he  o  amarelo,  mas 
na  parte  onde  o  sândalo  he  milhor,  que  he  em  Timor,  ha  pou- 
quo  do  amarelo;  e  vem  entre  5o  páos  hum.  E  se  viesse  muyto 
venderseia  sobre  si,  e  valeria  mais.  E  o  outro  sândalo  ama- 
relo, que  dixe,  he  somenos,  e  duralhe  o  cheiro  mais  pouquo, 
o  que  não  acontece  no  de  Timor,  a  esse  pouquo  que  de  lá 
vem;  posto  que  falando  o  outro  dia  com  hum  mercador, 
que  sabe  bem  essas  terras,  me  disse,  que  na  parte  que  he 
mais  descuberta  do  sol  ha  muyto  sândalo  amarelo,  e  mais 
ambas  as  maneiras  do  sândalo  tem  os  arvores  semelhantes, 
que  nós  nam  conhecemos  a  deferença  que  ha  entre  os  arvo- 
res. E  pode  ser  que  conheça  esta  deferença  a  gente  da  terra, 
que  trata  com  estes  arvores. 

RUANO 

Digua  a  feiçam  do  arvore,  e  se  dá  fruto  ou  não,  e  se  dá 
flores. 

ORTA 

O  arvore  do  sândalo  he  tamanho  como  huma  nogueira; 
e  a  folha  he  muyto  verde,  e  he  feita  como  a  da  aroeira; 
deita  frol  azul  escura,  e  dá  huma  fruta  verde  do  tamanho 
de  cereja,  e  cae  azinha,  e  he  primeiro  verde,  e  depois  preta 
e  sem  sabor. 

RUANO 

Aguora  quero  eu  dizer  as  duvidas,  que  tenho  do  que  di- 
zem OS  autores  Arábios  e  Latinos,  pois  que  os  Gregos  anti- 
guos  o  nam  conheceram;  e  dos  Arábios,  Rasis*,  posto  que 
o  conheceo,  não  diz  que  cousa  he,  senam  para  que  apro- 


*  Rasis,  trat.  cap.  10  (nota  do  auctorj. 


De  ires  maneiras  de  sândalo  285 

veita.  Serapiam*  perfere  o  citrino  a  todos,  e  vós  asi  o  afir- 
maes,  e  diz  que  o  vermelho  he  após  elle:  e  asi  diz  outras 
cousas  em  que  não  tenho  duvida,  somente  em  dizer  que  se 
traz  da  Siria;  e  mais  duvido  aleguar  Galeno,  pois  delle  nam 
escreveo. 

ORTA 

Em  ambos  esses  ditos  errou  Serapiam;  e  pois  da  índia 
he  mercadoria  pêra  a  Siria,  nam  he  muyto  dizer  que  se 
trazia  delia,  nam  dizendo  que  nacia  nella;  e  asi  em  aleguar 
Galeno  também  erra,  mas  esta  vez  não  he  a  primeira,  por- 
que asi  o  dizem  muytas  vezes  os  Arábios,  porque  nam  viam 
os  livros  de  Galeno,  e  como  ouviam  algum  grego  dizer  que 
Galeno  falava  na  mezinha,  loguo  o  criam.  Nem  Avicena** 
nam^diz  cousa  alguma  do  sândalo,  em  que  aja  duvida,  que 
ja  não  tinhaes  bem  decrarado,  nem  Avenrroís***.  Pois  asi 
passa,  falai  nos  Latinos,  e  dizei  alguma  duvida  se  delles 
tendes. 

RUANO 

António  Musa  diz  que  o  sândalo  aos  Portuguezes  o  de- 
vemos; que  o  trazem  do  campo  de  Calecut,  onde  se  colhe, 
e  que  Calecut  he  a  principal  feira  que  ha  na  índia;  e  vós 
dizeis  que  o  ha  em  Timor,  e  o  vermelho  emTanasarim,  terras 
confins  de  Malaca****. 

ORTA 

Foy  celebrada  a  cidade  de  Calecut  em  estas  partes,  onde 
se  compravam  e  vendiam  todas  as  mercadorias,  e  ali  eram 
trazidas  das  outras  partes,  onde  vinham  os  Chins  com  suas 
mercadorias,  e  com  ellas  traziam  sândalo  mesturado,  o  qual 
vendiam  ahi,  e  o  levavam  pêra  o  ponente;  e  como  já  vos 


*  Serapio,  cap.  846  (nota  do  auctor). 

*  *  Lib.  2,  cap.  656  (nota  do  auctor). 

»**  Avenrois,  5o,  Coliget  (nota  do  auctor). 

*  *  *  *  Tenasserim  era  confim  de  Malaca ;  mas  o  nosso  bom  Orta  de- 
via saber,  que  Timor  ficava  muito  longe  d'ali. 


286  Colóquio  quadragésimo  nono 

dixe  outras  vezes,  a  feitoria  dos  Chins,  chamada  Chinacota, 
oje  em  dia  permanece  nessa  cidade,  em  a  qual  os  Chins 
moravam.  Mas  porque  a  gente  da  terra  fez  huma  traiçam 
aos  Portuguezes,  quando  em  principio  vieram  a  esta  terra 
os  Portuguezes,  e  se  foram  a  Cochim,  elles  estruiram  Cale- 
cut per  muytas  vezes;  e  asi  pouco  a  pouco  se  foy  estruindo, 
sendo  primeiro  cidade  muyto  chea  de  riquos  Mouros  (á  mam 
dos  quaes  vinha  toda  esta  fazenda);  e  por  esta  razam  diz 
António  Musa  que  no  campo  de  Calecut  nacia  o  sândalo; 
e  em  Calecut  não  ha  campo,  senam  serras  e  palmares  ao 
longo  da  praia;  e  o  que  vem,  os  Portuguezes  o  trazem  nas 
suas  náos  de  Malaqua  em  muita  cantidade,  donde  vem  ter 
a  Cochim  e  a  Goa;  e  destes  portos  se  reparte  para  o  Ma- 
lavar  e  o  Canara,  e  Benguala,  e  pêra  o  Decam,  e  pêra  o 
Guzarate  -.  e  a  mais  pequena  parte  vai  pêra  Ormuz,  e  pêra 
Arábia,  e  pêra  Portugal,  como  vos  já  dixe. 

RUANO 

Chamam  commumente  o  sândalo  citrino,  macha^ari  ou 
maha:{ari,  e  per  outros  nomes  a  estes  semelhantes;  e  por 
essa  causa  eu  queria  saber,  que  quer  dizer  este  nome;  porque 
dizem  os  Frades*,  que  em  alguns  livros  de  sinónimos  se  diz 
7?iacha\ari,  scilicet,  odoliferi ;  e  que  Serapio  diz  que,  quando 
se  nomea  sândalo  por  excellencia,  se  entende  do  citrino;  e 
em  outro  cabo  dizem  os  mesmos  Frades,  que  não  se  acha 
em  Europa  sândalo  citrino,  senam  dentro  no  miolo  se  acha 
em  muytos  páos;  e  muytos  autores  dizem  isto  asi  como  Se- 
púlveda**; e  diz  mais  este  Sepúlveda,  que  milhor  he  deitar 
ametade  do  pó  do  vermelho,  e  ametade  do  pó  do  branco; 
e  mais  diz  elle,  louvando-se,  que  já  vio  sândalo  amarelo. 
E  de  tudo  isto  me  dai  a  resuluçam,  como  pessoa  que  o 
vio;  e  para  isto  não  me  deis  mais  rezam,  que  a  vossa  vista. 


*  Os  frades  (nota  do  auctor);  os  commentadores  de  Mesué  de  que 
já  antes  falíamos. 

**  Sepúlveda  (nota  do  auctor). 


De  três  maneiras  de  sândalo  287 

ORTA 

De  ser  mais  cheiroso  o  sândalo  amarelo  não  ha  duvida, 
e  de  ser  de  mais  preço;  e  ha  o  ahi  em  muytos  cabos,  e 
eu  vi  já  muyto,  e  muitos  outros  o  viram;  e,  porque  se  com- 
pra cá  na  índia  milhor  que  em  Portugal,  não  o  levam  lá, 
e  mais  por  o  pouquo  cuidado  dos  boticairos  portuguezes, 
que  o  não  pedem  na  casa  da  índia,  pêra  que  o  mandem 
trazer  de  cá,  e  também  se  am  de  culpar  os  que  fazem  estas 
drogas  a  elrey  em  o  não  mandarem  a  Portugal.  E  quanto 
he  ao  nome  de  macha:[a?'t  ou  maha\ari,  pareceme  (salvo 
milhor  juizo)  que  quer  dizer  trazido  de  Malaca;  ou  pode 
ser  que  estava  escrito  ma:{afram,  que  quer  dizer  dos  ama- 
relos ou  dos  açafroados.  E,  como  quer  que  seja,  he  noto 
ser  milhor  o  citrino  que  todos.  E  quanto  he  a  deitar  ame- 
tade  do  vermelho,  e  ametade  do  branco,  nam  he  sqt  citrÍ7io; 
antes  he  milhor  deitálo  todo  branco,  porque  o  branquo  he 
mais  cheguado  á  natureza  do  citrino;  pois  ambos  se  acham 
em  huma  mesma  terra,  e  o  vermelho  he  muyto  longe  donde 
nasce  o  branco.  E  também  que^o  que  saibaes  que  este  ar- 
vore do  sândalo  se  dá  em  outras  partes,  se  o  prantam,  e 
eu  o  vi  em  Amdanager,  onde  foy  trazido  para  se  semear: 
e  he  este  Amdanager  huma  cidade  do  Decam,  onde  reside 
o  Nizamoxa,  cuja  he,  mu3'tas  vezes.  E  eu  o  vi  ahi,  em  huma 
caza  de  prazer  onde  ha  muytos  pomares,  arvores  de  sân- 
dalo, e  muytas  das  nossas;  e  algumas  das  nossas  dam  fruto; 
mas  este  páo  de  sândalo  no  arvore  não  cheirava:  e  mais 
me  dixeram  muitos  que  o  sândalo  não  cheira,  senão  des 
que  está  escascado  e  muyto  seco. 

RUANO 

Ha  em  outras  partes  sândalo? 

ORTA 

Na  ilha  de  Sam  Lourenço,  e  em  alguns  cabos  da  costa 
de  Melinde  o  ha,  segundo  dizem  os  negros  da  terra;  mas 
depois  soube  que  he  hum  páo  cheiroso,  como  ha  muytos 
entre  nós,  e  mais  não  tem  os  signaes  do  sândalo.  E  também 


288  Colóquio  qimdragesimo  nono 

dizem  as  Malavares  que  ha  na  sua  terra  hum  páo  cheiroso 
que  parece  ser  sândalo  branquo;  e  untamse  com  elle  pêra 
as  febres,  e  chamamlhe  os  Malavares  sambaraiie  (3). 


Nota  (i) 

O  sândalo  vermelho  é  a  madeira  de  uma  pequena  arvore  da  família 
das  LegutJimoscr,  o  Ptei^ocai-pus  santalinus,  Linn.  f.,  ha- 
bitando as  florestas  do  sul  da  índia,  tanto  da  parte  Occidental,  do  Ca- 
nará  para  baixo,  onde  Orta  o  não  menciona,  como  na  costa  e  terras 
de  Coromandel. 

A  arvore  do  sândalo  vermelho  é  absolutamente  diversa  e  muito  afas- 
tada da  que  produz  os  outros  sândalos,  não  sendo  fácil  saber  por  que 
lhe  deram  o  mesmo  nome.  Em  todo  o  caso  não  ha  aqui  confusão  ou 
invenção  de  Orta,  porque  já  antes  lhe  chamavam  assim,  e  o  nome 
sanskrito,  J  rh^^^^eí^^H,  raktachandana,  significa  a  mesma  cousa.  A  ma- 
deira, apesar  de  insípida  e  inodora,  é  empregada  medicinalmente,  como 
adstringente  e  tónica,  e  externamente  como  refrigerante,  empregos  si- 
milhantes  aos  que  tem  o  verdadeiro  sândalo,  d'onde  talvez  veio  o  dar- 
se-lhe  o  mesmo  nome.  Serve  também  na  tinturaria;  mas  o  seu  uso 
principal  é,  como  já  dizia  Orta,  nas  construcçóes,  sendo  os  troncos 
maiores  muito  apreciados  ainda  modernamente  para  pillares  e  traves 
dos  templos  ou  pagodes  (Cf  Pharmac.^  iji;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i,  385; 
Amaracocha,  iSy;  Dymock,  Mat.  med.,  237). 


Nota  (2) 

O  brapl,  de  que  Orta  falia  apenas  de  passagem,  merece  no  emtanto 
uma  nota  especial.  Era  a  madeira  de  uma  arvore  da  familia  das  Legu- 
minosce,  Ccesalpinia  Sappan,  Linn.,  madeira  empregada 
na  tinturaria,  e  conhecida  no  commercio  europeu,  desde  os  antigos 
tempos  da  idade  media,  pelos  nomes  de  brasil,  brésil,  em  italiano  ver- 
^ino,  os  quaes  se  julgaram  derivados  de  brasa  ou  braise  pela  còr  ver- 
melha da  madeira. 

É  bem  sabido,  como  uma  madeira  ou  diversas  madeiras,  similhantes 
a  esta,  tendo  os  mesmos  usos,  e  procedendo  de  varias  espécies  do 
mesmo  género  Ccesalpinia,  se  encontraram  nas  terras  da  America, 
visitadas  pelos  portuguezes  logo  no  começo  do-xvi  século.  E  é  também 
conhecida  a  phrase,  em  que  Barros  lamenta,  que  o  nome  de  Santa 
Cruz  — primitivamente  Vera  Cruz —  se  mudasse  por  influencia  do  diabo 


De  três  maneiras  de  sândalo  289 

no  de  um  «páo  que  tinge  pannos».  Deixaremos,  porém,  esta  phrase  e 
as  reflexões  que  poderia  suscitar  o  nome  Brazil,  dado  ás  terras  de  San- 
cta  Cruz.  Começando  a  vir  o  pau  brasil  em  maior  quantidade  da  Ame- 
rica, passou  o  nome  especialmente  para  a  mercadoria  nova;  e  o  antigo 
brasil  da  índia  e  outras  partes  da  Ásia  voltou  a  ser  geralmente  desi- 
gnado pelo  nome  asiático  de  sappan,  ou  sapang  no  archipelago  Ma- 
layo,  o  qual  parece  prender-se  ao  sanskrito  patanga,  ou  ao  maláyalam 
shappan,  que  significa  vermelho. 

O  brapl  asiático  havia  sido  conhecido  dos  portuguezes  e  designado 
por  este  nome  antes  do  descobrimento  da  America;  e  no  Roteiro  da 
viagem  de  Vasco  da  Gama  se  lê,  que  em  Tenacar  — provavelmente 
Tenasserim —  se  encontrava  «muito  brasyll,  o  qual  faz  muito  fino  ver- 
melho». Depois  de  a  mercadoria  da  Ásia  ser  geralmente  supplantada 
no  commercio  pela  de  procedência  americana,  ainda  continuou,  no 
emtanto,  aquella  a  ser  conhecida  por  algum  tempo.  O  brapl  de  que 
falia  Orta,  é  evidentemente  o  asiático,  confundido  occasionalmente 
pelo  seu  amigo  mercador  com  o  sândalo  vermelho.  E  do  Lyvro  dos 
pesos  se  vê  também,  como,  no  meado  do  xvi  século,  o  brai^il  era  uma 
mercadoria  bem  conhecida,  tanto  em  Hormuz  como  em  Malaca. 

(Veja-se  o  que  eu  disse  na  Flora  dos  Lusíadas,  91;  e  Dymock,  Mat. 
med.,  25i;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  11,  450;  Barros,  Ásia,  i,v,  2;  Roteiro,  iio; 
Lyvro  dos  pesos  da  Ymdia,  18  e  39.) 


Nota  (3) 

O  sândalo  é  a  madeira  de  uma  pequena  arvore  da  família  das  San- 
talacece,  Saiitalvxiii  all>uiii,  Linn.,  que  habita  no  sul  da  índia, 

nas  florestas  de  Mysore,  Travancore  e  outras,  assim  como  nas  ilhas  do 
archipelago  Malayo,  particularmente  na  de  Timor,  e  na  de  Sumba,  ao 
sul  da  de  Flores,  que  foi  mesmo  chamada  por  isso  a  ilha  Chandana, 
isto  é,  a  ilha  do  sândalo. 

O  nome  santalum  e  sândalo  deriva-se  do  arábico  J  JJ-v»,  sandal,  que 
era,  como  Orta  diz,  uma  corrupção  ou  antes  um  modo  de  pronunciar 
e  escrever  o  sanskrito  ^^T^J/T,  chandana.  Por  este  ultimo  nome  vem 
a  substancia  mencionada  no  Nirukta,  um  dos  mais  antigos  commen- 
tarios  dos  Vedas,  assim  como  nos  celebres  poemas,  o  Ramayana  e  o 
Mahabharata.  E  igualmente  citada  no  Périplo  do  mar  Erythreu,  nas 
viagens  de  Cosmas  Indicopleustes,  e  em  outras  obras  antigas.  Se  o  al- 
gum ou  almug,  trazido  pelas  frotas  de  Salomão  e  de  Hiram  do  paiz 
de  Ophir,  era  igualmente  esta  madeira,  é  questão  diversa  e  um  pouco 
mais  duvidosa. 

Distinguiam  já  os  escriptores  sanskriticos  duas  variedades  de  ver- 
dadeiro sândalo,  o  amarello  ou  citrino,  chamado  pitachandana,  e  o 

»9 


290  Colóquio  quadragésimo  nono  do  sândalo 

branco,  chamado  srikhanda;  mas  não  procediam  nem  procedem  estas 
duas  variedades  de  duas  arvores  ou  espécies  diversas,  como  Orta  pa- 
rece indicar;  e  o  citrino,  mais  carregado  em  côr,  pesado  e  aromático, 
é  simplesmente  o  cerne  perfeito  de  alguns  troncos.  Os  usos  do  sân- 
dalo são  bem  conhecidos,  servindo  para  o  fabrico  de  cofres  ou  moveis, 
trabalhados  e  entalhados,  principalmente  nos  templos  e  edifícios  sagra- 
dos, entre  os  quaes  se  podem  citar  as  famosas  portas  do  templo  de 
Somnath,  ainda  conservadas  em  Agra,  e  que  se  diz  terem  mais  de  mil 
annos.  Tinha  egualmente  empregos  medicinaes,  sendo  considerado  frio 
e  secco,  cardíaco  ou  «cordial»,  tónico,  adstringente,  alexipharmico,  re- 
solutivo, e  applicavel  também,  misturado  com  leite,  no  tratamento  das 
gonorrhoeas.  Gastava-se  e  gasta-se,  sobretudo,  como  perfume,  redu- 
zido a  pó  em  umas  espécie  de  pequenas  mós  de  pedra,  e  misturado 
depois  aquelle  pó  com  agua  rosada  e  outros  ingredientes.  Igualmente 
se  consumia  na  cremação  dos  cadáveres  dos  hindus  muito  ricos,  que 
os  outros  naturalmente  não  podiam  esperar  este  luxo  post-mortem. 

Orta,  á  parte  uma  phrase  curta  e  duvidosa,  menciona  unicamente 
o  sândalo  de  Timor,  e  em  segundo  plano  o  de  Java  e  outros  pontos  do 
archipelago  Malayo,  O  mesmo  faz  Duarte  Barbosa,  fallando  do  «Sân- 
dalo branco  e  côr  de  limão,  que  nasce  em  huma  ilha  chamada  Timor». 
E  o  mesmo  faz  também  Camões,  limitando-se  a  mencionar  o  d'aquella 
região : 

AUi  também  Timor,  que  o  lenho  manda 

Sândalo  salutifero  e  cheiroso. 

É  incontestável,  pois,  que  a  ilha  de  Timor  era  então  a  principal  e 
mais  importante  origem  do  sândalo  do  commercio;  e  parece,  que  as 
arvores  das  florestas  do  sul  da  índia  seriam  pouco  conhecidas  e  apro- 
veitadas. No  emtanto,  o  Santaluni  albinn  não  é  raro  na  índia,  e  a  ma- 
deira d'esta  procedência  alcança  hoje  nos  mercados  os  preços  mais  ele- 
vados, e  passa  por  ser  superior  á  de  Timor  e  outras  terras  de  leste. 
É  possível  também,  que  se  não  tivesse  feito  a  identificação  entre  a  ar- 
vore da  índia  e  a  das  regiões  mais  afastadas;  e  inclino-me  a  aceitar 
esta  hypothese.  Na  ultima  phrase  do  Colóquio,  Orta  diz,  que  os  ma- 
labares tinham  na  sua  terra  uma  arvore,  que  parecia  ser  sândalo  branco, 
e  da  qual  se  serviam  para  os  mesmos  usos  medicinaes;  e  em  um  dos 
Colóquios  anteriores  (ir,  p.  5o  e  64)  fallou  de  uma  madeira  das  proxi- 
midades do  cabo  Comorim,  chamada  aguila  brava,  que,  segundo  todas 
as  probalidades,  era  o  próprio  sândalo.  Em  resumo,  o  Santalum  álbum 
da  índia,  não  parece  haver  dado  logar  por  aquelles  tempos  a  uma  ex- 
ploração activa;  e  sobretudo  não  estava  bem  clara  a  sua  identidade  com 
a  madeira,  mais  conhecida  e  celebrada,  procedente  da  ilha  de  Timor. 

(Cf.  Pharmac,  540;  Crawfurd,  Dict.,  SjS;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i,  3/6; 
Dymock,  Mat.  med.,  75 1;  Duarte  Barbosa,  Livro,  385;  Lusíadas,  x,  134.) 


COLÓQUIO  QUINQUAGESIMO 

DO  ESPIQUENARDO* 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

o  espiquenardo  foy  de  muyto  preço,  e  muyto  louvado  an- 
tiguoamente;  que  diz  no  evangelho  que  aquelle  ingoento  pu- 
dia  ser  vendido  por  mais  de  trezentos  dinheiros;  e  trezentos 
dinheiros,  contados  segundo  a  conta  de  Budeu**,  sam  40 
crusados  nossos,  que  pêra  aquelle  tempo  era  gram  valia  o 
que  custava  aquelle  ingoento;  posto  que  aguora,  polia  muita 
abundância  de  cheiros  que  ahi  ha  naturaes  e  perigrinos,  nam 
vai  tanto  ao  presente;  dos  quaes  cheiros  fazem  as  suaves 
pastilhas  e  caçoleas,  os  delicados  pivetes,  e  mesturas  de  âm- 
bar e  almisqiie,  e  algitalia,  e  linaloe,  e  outros  muytos  cheiros. 
Asi,  por  esta  rezam,  como  por  o-uso  que  delle  ha  na  física, 
he  bem  que  façamos  huma  pratica  delle,  e  mais,  porque  al- 
guns escritores  dizem  que  carecemos  do  verdadeiro  espique. 

ORTA 

Nam  carecemos  de  verdadeiro  espique,  antes  temos  mais 
mezinhas,  do  que  nunqua  tivemos;  e  nam  sam  tam  falsifi- 
cadas como  eram  primeiro,  polia  muyta  abundância  que  vai 
destas  partes  orientaes  para  o  ponente;  porque,  se  oulhar- 
mos  o  que  diz  Plinio***  destas  mezinhas,  nam  nos  mara- 
vilharemos se  as  falsificaram ;  porque  o  muito  preço  os  con- 


*  Orta,  coUocando  aesta  situação  alphabetica  um  nome  começado 
pela  lettra  e,  lembrou-se  evidentemente  da  forma  latina,  começando 
por  s;  e  o  mesmo  se  pode  dizer  dos  dois  Colóquios  seguintes. 

*  *  Um  escriptor  citado  pela  primeira  vez :  veja-se  a  nota  final  ao 
Colóquio. 

***  Plinius,  Lib.  12,  cap.  12  (nota  do  auctor). 


292  Colóquio  quinquagesimo 

strangia  a  falsificálas;  mas  aguora  que  a  navegaçam  he  mais 
descuberta,  e  com  mais  náos,  asi  pera  Portugal  como  pêra 
as  outras  bandas  do  ponente,  não  nos  maravilharemos  de 
valer  tam  barato,  e  aver  tanto,  sem  ser  falsificado.  E  mais 
compram  estas  mezinhas  milhor  aos  da  terra,  e  a  terra  as 
cria  milhor  aguora;  porque  é  mais  cultivada  e  aparelhada 
pera  as  dar. 

RUANO 

Digua  donde  nascem,  e  como  se  chamam  nestas  terras 
acerca  das  naturaes?  E  mais  os  Mouros  como  as  chamam, 
porque  os  Gregos  e  Latinos  bem  sei  o  nome  que  lhes  põem. 
E  acabado  isto  examinaremos,  que  dizem  os  escritores  que 
delias  escreveram. 

ORTA 

Chama-se  o  espiqiie  nas  terras  donde  nasce  acerca  do  gen- 
tio cah^çava,  e  nasce  no  Mandou,  e  em  Chitor,  e  em  algumas 
partes  de  Benguala,  perto  do  rio  Ganges  (a  que  os  índios 
chamam  Giianga):  he  rio  muyto  fermoso,  e  ávido  por  sancto 
em  tanta  maneira,  que  os  Bengualas,  quando  querem  mor- 
rer, se  mandam  deitar  nelle,  scilicet,  pondo  os  pés  dentro 
na  aguoa,  a  qual  aguoa  he  muyto  boa,  e  eu  a  provei. 

RUAJSO 

E  os  outros  Gentios  das  outras  terras  tem  este  rio  em 
veneracam? 

ORTA 

Si  em  muita;  porque  um  rio  que  dizem  ser  ramo  deste, 
que  corre  nordeste  sudeste  também  chamado  Giianga,  que 
he  nas  terras  do  Nizamoxa,  todos  os  mais  dos  anos  se  vai 
lavar  nelle  toda  pessoa  gentia  das  suas  terras.  E  porque 
alguns  sam  proves,  e  não  podem  lá  ir  a  lavarse,  manda 
elrey,  tiranicamente,  que  quem  se  quiser  ir  lavar,  que  se  vá 
a  lavar,  e  que  toda  a  pessoa  pague  por  isso  180  reis,  que 
he  meo  pardáo  de  ouro.  E  pera  isto  se  faz  conta  na  terra 
quantas  pessoa  ha,  e  os  ricos  paguam  por  os  proves,  e  asi 
se  junta  huma  soma  de  dinheiro;  e  disto  sam  eu  testemunha, 
porque  vi  colher  este  dinheiro,  e  me  paguaram  delle  os  que 
o  recadavam  dividas  que  elrey  me  devia,  e  mercês  que  me 


Do  espiquenardo  293 

fazia*.  E  no  rio  Guanga  de  Benguala  e  Orixá  (ou  Uria  como 
elles  dizem)  lia  certos  pagodes,  aos  quaes  vam  em  romaria 
os  mercadores  do  Guzarate  e  do  Decam,  e  vam  lavarse  no 
rio  Guanga;  e  fazem  grandes  guastos  e  esmolas  aos  pago- 
des; e  de  lá  vem  lavados  e  rapados  e  tomados  do  diabo, 
a  que  elles  chamam,  santificados. 

RUANO 

Nova  maneira  de  tiranisar  he  essa,  e  porém  dizei  o  nome 
em  arábio,  e  se  usavam  em  física  desta  mezinha  os  Mouros 
e  Gentios. 

ORTA 

Chamalhe  Avicena*  *,  e  todolos  Arábios  que  aguora  ha  cem- 
bul,  que  quer  dizer  em  arábio  espigiia;  e  asi  chamam  o  espi- 
quenardo, cembul  indi,  asi  como  se  dixesse  espigua  da  índia; 
e  a  que  nós  dizemos  espigua  céltica,  chamam  elles  cembul 
rumin,  como  se  dixesemos  espigua  da  tei'ra  dos  Rumes. 
E  se  Mateus  Silvatico  lhe  chama  cenubel  e  sobel,  he  como 
pessoa  que  não  sabia  o  arábio;  ou  se  pode  dizer  que  os 
nomes  se  foram  corompendo  pouco  e  pouco.  E  quanto  he 
o  que  perguntaes,  se  he  em  uso  de  física,  diguo  que  si,  ácer- 
qua  dos  Mouros  e  muyto  mais  acerca  dos  Gentios. 

RUANO 

Aguora  he  neseçario  que  examinemos  os  escriptores  pêra 
me  tirardes  as  duvidas  que  ha  nisso;  e  Discorides,  mais  an- 
tiguo,  diz*  *  *  que  ha  duas  especias,  scilicet,  huma  siria  e  outra 
indica,  e  nam  porque  se  achem  nestas  regiões,  senam  porque 


*  Este  segundo  Ganges  on  Ganga  é  o  Godavery,  cujo  curso  foi  mal 
conhecido  até  um  período  muito  posterior  a  Orta.  D.  João  de  Castro 
dá -lhe  o  mesmo  nome  que  Orta,  e  diz,  fallando  dos  rios  do  Deckan : 
«Guodavam,  que  per  outro  nome  chamam  Gangua».  Rot.  de  Goa  a 
Diu,  7,  Esta  phrase  e  a  situação  geographica  marcada  estabelecem 
perfeitamente  a  identificação  com  o  Godavery,  que  suppunham  ser  um 
affluente  do  Ganges. 

**  Lib.  2,  cap.  146  (nota  do  auctor). 

***  Lib  I,  cap.  6  (nota  do  auctor). 


294  Colóquio  qiiinqiiagesimo 

nasce  em  hum  monte  que  tem  duas  faces,  e  huma  delias 
olha  pêra  a  Siria,  e  outra  pêra  a  índia;  e  depois,  falando 
na  eleiçam,  dizem  que  entre  os  nardos  indicos  ha  o  giian- 
jetico,  por  nascer  perto  do  rio  Ganges,  e  que  nasce  em  huma 
montanha,  em  a  qual  cresce  esta  mezinha;  e  que,  posto  que 
he  maior  e  mais  viçosa  que  a  do  alto  do  monte,  he  de  menos 
vertude;  e  dizem  que  o  cheiro  delia  he  como  do  cipero.  A 
cerqua  destas  cousas  me  digua  o  seu  parecer. 

ORTA 

Eu  nam  conheço  outro  espiquenardo  nesta  terra,  senam 
o  que  já  vos  dixe,  e  he  o  que  vem  do  Chitor,  e  do  Mandou, 
terras  que  confinam  com  o  Deli,  e  com  Benguala  e  com  o 
Decam.  E  asi  estas  terras,  como  outras  mu3'^to  mais  avante, 
tudo  he  índia.  E  dizer  que  he  huma  espigua  siria  e  outra 
indica,  não  se  pôde  entender  senão  dizer  que  este  monte 
tem  duas  faces,  huma  do  ponente  e  outra  do  levante ;  porque 
o  monte  ou  os  montes  estam  na  índia,  e  a  Siria  está  da 
banda  do  ponente  mu3'to  longe.  E  mais  he  de  notar  que  não 
nasce  todo  neste  monte,  senam  em  muytos  cabos  desta  re- 
giam, onde  o  semeam;  porque  não  nasce  sem  ser  semeado, 
senam  pôde  nascer  sem  se  semear  em  muyto  pouca  canti- 
dade;  e  he  uma  raiz  que  crece  deitando  huma  astia  curta 
sobre  a  terra,  que  a  maior  pôde  ser  de  três  palmos,  e  outras 
muito  mais  pequenas,  e  loguo  acima  da  raiz  deita  a  espigua, 
e  algumas  espiguas  vai  deitando  polia  astia  acima,  e  asi  o 
trazem  a  vender  a  Cambaiete  e  a  Çurrate,  e  a  Guogua*  e 
a  outros  portos  do  mar,  onde  lho  compram  os  mercadores 
Arábios  e  Pérsios,  porque  a  menor  parte  guastamos  nós. 
E  também  a  gente  da  terra  guasta  muyta  cantidade,  e  eu 
o  comprei  já  pêra  elrey  nosso  senhor  em  Dio:  e  algum  delle 
he  cujo,  e  cheo  de  pó  feito  dos  cabellos  do  mesmo  espiqiie, 


*  Cambaya  e  Surate  são  portos  bem  conhecidos;  Gogá  ficava  em 
frente,  no  mesmo  golfo  de  Cambaya,  na  costa  de  leste  da  península  de 
Kathywar. 


Do  espiqiienardo  295 

e  os  mercadores  que  acima  dixe  tudo  compram,  e  dizemme 
que  com  o  pó  lavam  as  mãos^  nem  achamos  cá  nesta  terra 
ser  hum  milhor  que  outro*,  nem  os  que  vem  a  vender,  dizem 
que  o  ha  nos  montes  e  nos  vales,  e  que  o  dos  montes  he  o 
milhor;  nem  as  espiguas  que  vem  sam  muyto  mais  grandes 
humas  que  outras;  e  todas  as  mais  nascem  perto  da  terra; 
isto  he  o  que  polia  maior  parte  acontece.  Huma  cousa  vos 
posso  certificar,  que  se  Dioscorides  vira  este  espique,  que 
nos  vem  e  lá  o  mandamos,  dixera  que  era  o  verdadeiro  es- 
piquenardo;  e  certo  que  he  de  maravilhar  destes  escritores 
modernos  que  dizem  que  nam  ha  cinajnomo  nem  cassiali- 
gnea,  confessando  que  vem  da  índia,  asi  como  espiqiie.  Muyto 
milhor  dixeram  que  não  he  esta  índia  que  elles  dizem,  se- 
nam  que  he  outra  que  nós  não  sabemos,  por  estar  escon- 
dida, e  isto  seria  milhor;  porque  certo  aver  muyto  das 
mezinhas  e  valerem  pouquo  por  causa  da  descuberta  na  na- 
vegaçam  os  faz  duvidar  serem  ellas. 

RUANO 

Nam  faleis  com  paixam;  porque  Mateolo  Senense  he  de 
vosso  parecer,  reprendendo  a  Menardo,  e  a  Fucio,  porque  di- 
zem que  nam  ha  verdadeiro  espiqiie:  mas  dizeime  que  direis  a 
Plinio  que  diz  que  he  huma  frutice  pequena  e  negra,  e  fraca, 
e  que  hum  género  delia,  que  nasce  ácerqua  do  rio  Ganges 
he  de  todo  danada;  e  depois  diz  que  o  preço  delia  he  de 
90  livras,  e  se  he  quintal  e  de  espique  podese  sofrer;  porque 
vai  em  Dio  a  vinte  cinquo  e  a  trinta  crusados,  não  he  muyto 
valer  a  duzentos  e  setenta  crusados,  que  sam  90  livras;  e 
dizem  que  o  que  tem  as  folhas  grandes  vai  a  trinta;  mas,  nas 
Anotações  de  Plinio,  diz  Hermalao  Bárbaro  que  nam  sam 
livras,  senam  dinheiros,  porque  tem  esta  nota  como  X  feita, 
que  vai  dinheiro  X,  isto  traz  mais  rezam  asi  por  o  preço  ver- 
dadeiro desta  mezinha,  como  o  áa^ pimenta,  e  doutras  muitas 
drogas*. 


*  Veja-se  a  nota  final  do  Colóquio. 


296  Colóquio  qinnquagestmo 


ORTA 


Eu  nesta  terra  não  vi  outro  espique  senão  este,  que  levam 
pêra  o  ponente,  o  qual  vem  todo  perto  do  Ganges,  e  desta 
só  maneira  usam  os  físicos  índios  e  os  Turcos,  e  Pérsios  e 
Arábios,  que  delia  vem,  e  habitam  nesta  terra,  curando  os 
reis  e  príncipes.  E  quanto  he  os  preços  serem  grandes,  não 
he  maravilha,  porque  estes  caminhos  nam  eram  sabidos.  E 
asi  que  Plinio  pudia  nisto  dizer  verdade,  mas  não  em  dizer 
que  o  espique  do  Ganges  era  em  todo  condenado;  pois  não 
he  outro  senão  este,  e,  se  o  ha  em  outras  terras,  he  em  tão 
pouqua  cantidade  que  não  veo  á  minha  noticia  (i). 

RUANO 

Diz  Laguna  que  o  espique  que  se  vende  nas  boticas  não 
he  espigua,  senam  raiz,-  e  a  isto  não  contradizem  Diosco- 
rides,  senão  dizendo  que  parece  espigua;  e  mais  dizem  que 
o  espique  he  suspeitoso  na  índia,  porque  delle  se  faz  huma 
poçam  ou  composiçam  venenosa  chamada  jczsío,  o  qual  jcísso 
dizem  que  mata  não  tam  somente  per  dentro,  senam  apli- 
cado per  fora;  e  asi  dizem  que  vem  da  Siria.  Que  respon- 
deis a  isto? 

ORTA 

Diguo  que  a  tal  composiçam  chamada  pisso  eu  nam  a  vi, 
nem  delia  ouvi  dizer;  ante  vos  afirmo  que,  querendo  o  Ni- 
zamoxa  provar  hum  pouquo  do  licornio  meu,  deu  a  hum 
homem  que  estava  preso  por  caso  de  morte,  napello;  e  pa- 
rece ser  que  se  pisso  fora  mais  venenoso,  que  lho  dera  a 
beber;  asi  que  por  isto  e  por  nunqua  ouvir  falar  neste  jcmo, 
nem  em  semelhante  mezinha,  aplicada  por  fora,  me  parece 
fabulosa  cousa,  e  por  tal  a  julguo  (2).  E  ao  que  dizem  que  vem 
da  Siria,  diguo  que  vai  de  cá  a  Alepo,  e  de  Alepo,  que  he 
a  Siria,  vai  a  Veneza  alguma  parte,  que  se  guasta  em  Eu- 
ropa. E  deste  modo  se  entende  o  que  diz  Sepúlveda,  que 
o  chama  espica  aliep,  como  se  dixesse  espigua  de  Alepo; 
porque  sempre  Alepo  foy  cabeça  da  Siria,  e  foi  a  principal 
escala  da  índia  pêra  o  ponente,  e  aguora  o  he  muito  mais. 
E  diz  Sepúlveda,  que  huma  especia  dita  satiech,  he  satiach, 


Do  espiqiienardo  297 

e  isto  quer  dizer  Satiguam*,  que  he  um  porto  muyto  cele- 
brado em  Benguala,  onde  entra  o  rio  Ganges:  e  esta  me- 
zinha, posto  que  he  muyto  celebrada,  e  guastada,  não  acha- 
mos falsificarse :  somente,  a  que  he  velha,  perde  o  cheiro 
algum  tanto;  e  por  isto  asi  passar  não  temos  necesidade  de 
falar  no  espiquenardo. 

RUANO 

Que  cidade  he  Alepo?  He  por  ventura  Haram? 

ORTA 

O  bispo  Dom  Ambrósio,  penitenciário  que  foy  do  papa 
Paulo,  veo  a  esta  terra  polia  Arábia  e  Turquia,  comovido 
com  zelo  de  nossa  fé;  e  sabia  muito  bem  o  arábio,  e  lia  o 
muyto  bem.  E  conversando  eu  em  S.  Domingos,  porque  era 
religioso  da  mesma  ordem,  me  dixe  que  Abraham,  quando 
Deos  o  livrou  de  Ur,  cidade  dos  Caldeos,  veo  ter  a  Alepo, 
cidade  e  cabeça  da  Suria,  e  tinha  muytos  gados  em  grande 
cantidade,  e  que  dava  o  leite  a  beber  a  todos  os  necesitados 
e  proves,  que  vinham  a  comer  e  beber  o  leite  cada  dia; 
e  que  estes  quando  vinham,  perguntavam:  yalep?  que  quer 
dizer  ordinharam  ou  mimgiram  já?  E  que  por  isto  lhe  pu- 
seram áquella  terra  este  nome.  E  dizia  o  bispo  que  isto  lhe 
dixeram  os  antiguos  de  Alepo,  os  quaes  tem  que  Alepo  foy 
abitado  e  senhoriado  de  Abraham  (3). 

RUANO 

Poderei  eu  falar  com  esse  bispo? 

ORTA 

Não,  porque  partindo  pêra  Portugal,  morreo  em  Cochim 
antes  que  se  embarcase. 

RUANO 

Certamente  que  folguára  de  conversar  esse  bispo  (4). 


*  Ou  Chatígam,  modernamente  Chittagong,  junto  á  embocadura 
oriental  do  Ganges. 


298  Colóquio  quinquagesimo 


Nota  (i) 

O   «espiquenardo»   de   Orta  é   o  ZVa.rd.ostacliys  Jata- 

mansij  D.C.,  uma  pequena  planta  da  família  das  Valerianeí^,  muito 
conhecida  e  usada  na  índia  desde  os  tempos  mais  remotos,  como 
medicamento  e  principalmente  como  perfume,  e  designada  pelo  nome 

sanskritico,  sTóTTRTT,  jatãmansí.  Orta  identifica  esta  planta  com  o 
celebre  nardo  dos  antigos,  spica  nardi  dos  velhos  escriptores  de  maté- 
ria medica;  e  esta  sua  opinião  é  partilhada  pelas  melhores  auctoridades 
no  assumpto,  como  são  sir  W.  Jones,  Sprengel,  Royle  e  outros. 

—  O  nome  vulgar  «cahzçara»,  citado  pelo  nosso  escriptor,  deve  estar 
muito  estropiado;  e  apenas  vagamente  se  parece  com  alguns  nomes 
que  encontramos  em  Dymock,  Ainslie  e  Piddington,  como  balchar,  e 
chehur  ou  chehar. 

—  O  arábico  «cembul»,  isto  é  jj-;'^-^',  senbul,  é  perfeitamente  conhe- 
cido; e,  segundo  o  uso  dos  árabes,  juntavam-lhe  o  qualificativo  da  re- 
gião senbul-i-hindi.  E  também  natural  — como  Orta  diz —  que  desi- 
gnassem pelo  de  senbul-i-rurni,  uma  droga  análoga,  procedente  das 
terras  occidentaes,  e  produzida  por  uma  planta  da  mesma  familia,  do 
género  Valeriana. 

O  espiquenardo  do  commercio  indiano  vinha  eff'ectivamente  das  re- 
giões montanhosas  do  norte  da  índia,  isto  é,  do  Mandou  e  Chitor,  to- 
mando naturalmente  estas  expressões  na  accepção  lata  e  um  tanto 
vaga,  em  que  as  tomava  Orta,  e  a  que  por  mais  de  uma  vez  nos  temos 
referido. 

(Cf  Jones,  Asiat.  Researches,  11,  405 ;  e  iv,  109;  Sprengel,  Diosc,  11, 
345 ;  Royle,  Ant.,  33 ;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  n,  367;  Dymock,MíZ/.  med.y^ij; 
Piddington,  Index,  90.) 

Nota  (2) 

Creio  que  a  composição  venenosa,  a  que  Orta  dá  o  nome  de  «pisso», 
dizendo  não  a  conhecer,  é  simplesmente  a  mesma  cousa  de  que  falia 
logo  em  seguida  sob  o  nome  de  napello. 

É  muito  conhecida  na  índia  uma  droga  extremamente  venenosa, 
chamada  bish,  do  sanskrito  visha,  da  qual  parece  que  Christovão  da 
Costa  fallou,  dando-lhe  o  nome  de  bisa,  e  que  consiste  na  raiz  do 
A-conitiiiii  fei*ox,  Wallich,  e  talvez  também  de  outras  espécies 
do  mesmo  género.  E  provável  que  Orta,  vendo  applicar  esta  droga  pelo 
seu  amigo  Nizam  Scháh,  conhecesse  ser  a  raiz  de  um  Aconitum,  e  lhe 
desse  o  nome  de  «napello»,  lembrando-se  do  Aconitinn  Napellus  da 
Europa,  também  venenoso,  posto  que  menos  enérgico.  O  que  elle 
chama  «napello»  e  o  «pisso»  seriam  pois  a  mesma  cousa;  e  unicamente 
succedia,  que  o  nosso  medico  não  havia  estabelecido  a  identicação  entre 


Do  espiqiienardo  299 

as  duas  drogas  venenosas  (cf.  Pharmac,  12;  Dymock,  Mat.  med.,  i. 
Chr.  da  Costa,  Tractado  de  las  drogas,  90). 


Nota  (3) 

D.  fr.  Ambrósio  de  Rontecalli,  natural  da  ilha  de  Malta,  foi  enviado 
á  índia  pelo  papa  Paulo  IV,  com  o  titulo  de  bispo  Aurense,  e  poderes 
de  legado  a  latere.  Viveu  algum  tempo  em  Goa,  naturalmente  no  con- 
vento de  S.  Domingos  a  cuja  ordem  pertencia,  gosando  a  fama  de  ho- 
mem instruído,  não  só  de  grande  theologo,  como  de  bom  mathematico 
e  orientalista  distincto.  Morreu  effectivamente  em  Cochim,  quando  se 
dispunha  a  partir  para  Portugal  (cf.  fr.  Lucas  de  Santa  Catharina,  Hist. 
de  S.  Domingos,  iv  parte,  gSo,  Lisboa,  lySS). 

Excede  muito  a  minha  competência  a  discussão  da  etymologia,  dada 
pelo  erudito  bispo  ao  nome  da  conhecida  cidade  da  Syria.  Unicamente 
notarei,  que  a  forma  arábica  do  nome  Alepo  ou  Aleppo  é  --^i^»-,  Haleb; 
e  se  approxima  ou  é  idêntica  a  alguns  tempos  do  verbo  mungir  ou 
ordenhar.  Os  arabistas  decidirão  se  o  bispo  tinha  rasão,  e  se  esta  de- 
rivação é  possível  e  está  no  espirito  da  língua. 

De  resto,  aos  que  se  não  contentarem  com  a  etymologia  do  bispo, 
podemos  fornecer  outra,  muito  mais  singular.  E  a  do  conhecido  via- 
jante e  naturalista  francez,  contemporâneo  de  Orta,  Pedro  Bellon:  diz 
elle,  que  assim  como  Aleph  é  a  primeira  lettra  do  alphabeto,  assim 
aquella  cidade  se  chamava  Halep,  por  ser  a  primeira  da  região  em  que 
está  situada  (Petri  Bellonii  Observationes,  versão  latina  de  Clusius,  nos 
Exotic,  i55). 

Nota  (4) 

Orta  deu-se  a  bastante  trabalho  para  averiguar  a  concordância  dos 
preços  das  drogas,  correntes  no  seu  tempo,  com  os  mencionados  na 
Biblia,  e  em  livros  antigos,  como  o  de  Plinio.  Foi  procurar  esclareci- 
mentos a  um  trabalho  clássico  e  celebre  sobre  a  matéria,  escripto  pelo 
erudito  Guilherme  Budeo :  De  Asse  et  partibus  ejus  libri  quinque,  do 
qual  vi  a  edição  de  i533.  Devo,  porém,  confessar  francamente,  que  não 
procurei  ali  a  «conta  de  Budeo»,  nem  apurei  se  o  resultado  a  que  Orta 
chegou  é  exacto. 

Sobre  o  mesmo  assumpto,  Orta  consultou  também  as  Castigationes 
Pliniance  de  Hermolao  Bárbaro,  onde,  nas  Castigationes  secimdce,  no- 
tas ao  Livro  xii  (edição  de  1493),  encontrou  a  discussão  dos  preços  do 
nardo,  e  a  explicação  de  que  o  signal  X  significava  o  dinheiro,  «dena- 
rium  ostendat».  Esta  explicação  foi-lhe  útil,  porque  — como  antes  no- 
támos—  elle  se  havia  equivocado  no  CJoloquio  da  pimenta  sobre  a  si- 
gnificação d'aquelle  signal. 


COLÓQUIO  QUINQUAGESIMO  PRIMEIRO 

DO  ESPODIO 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 
RUANO 

Entra  o  espodto  em  tantas  composições  feitas  pelos  Ará- 
bios^ tam  doutos  e  esperimentados,  que  nos  faz  duvidar  po- 
derem as  composições  que  o  levam,  tomarse  polia  boca  o 
espodio  dos  antigos  Gregos,  pois  he  metal  (e  pêra  isto  vie- 
ram a  usar  os  Latinos  de  oge  de  outro  espodio,  chamado 
asi  dos  Arábios)*;  e  por  esta  causa  queria  saber  de  vós,  que 
espodio  he  este  que  cá  usam  os  físicos. 

ORTA 

Nam  ha  mais  que  hum  espodio  no  mundo,  ou  pomfolix 
ou  tutia;  e  por  falta  deste  tomavam  outras  mezinhas  os 
Greguos,  e  chamavamlhes  antispodio,  que  quer  dizer  espodio 
falso,  ou  contrafeito;  mas  os  Arábios  não  fazem  mençam 
deste  espodio,  senam  debaixo  do  nome  de  tutia,  ou  pomfolix, 
nem  de  antispodio  fazem  alguma  mençam. 

RUANO 

Pois  donde  nasce  esta  distincam  de  chamar  a  uma  mé- 
zinha  espodio  dos  Greguos,  e  a  outra  espodio  dos  Arábios? 

ORTA 

De  Davo  Terenciano**,  que  conturbava  todas  as  cousas: 
e  este  Davo  foi  Gerardo  Cremonense,  que  trasladou,  em 


*  Toda  a  phrase  é  extremamente  incorrecta;  mas  o  sentido  fica  bas- 
tante claro. 

•*  Davus,  escravo  de  Simo,  personagem  de  uma  das  comedias  de 
Terêncio. 


3o2  Colóquio  quinquagesimo  primeiro 

lugar  de  tabaxir,  espodio,  não  tendo  semelhança  com  elle 
alguma,  nem  na  obra  hum  do  outro,  que  não  seja  mais  de- 
ferente do  que  he  branquo  com  preto.  E  não  tam  somente 
errou  elle  nisto,  mas  todos  os  que  tresladaram  os  livros  de 
arábio  en  latim,  dizem  tabaxir,  scilicet,  espodio,  e  aquella 
exposiçam  não  he  do  escritor,  senão  do  tradutor. 

RUANO 

E  parecevos  mal,  falecendo  hum  nome,  fazerem  impo- 
siçam  de  outro  em  seu  lugar? 

ORTA 

Não,  se  aquelle  nome  não  significar  outra  cousa  muyto 
deferente  no  parecer  e  na  obra,  porque  estas  equivocações 
dam  causa  a  muytos  erros,  e  porque  os  da  física  sam  mais 
periguosos,  sam  estes  maiores  erros. 

RUANO 

Pêra  isso  dizei  o  que  he  o  tabaxir,  segundo  os  doutores 
e  a  gente  desta  terra. 

ORTA 

O  que  OS  Arábios  chamam  tabaxir,  he  nome  tirado  da 
linguoa  da  Pérsia;  e  dahi  o  tomaram  os  Arábios,  asi  como 
Avicena  e  outros.  E  tabaxir  quer  dizer  leite,  ou  çumo,  ou 
humidade,  que  invernou  ou  demorou  em  alguma  parte;  e 
por  este  nome  he  conhecido  de  toda  a  Arábia  e  Turquia, 
e  Pérsia. 

RUANO 

E  se  esta  mezinha  he  da  índia,  como  se  chama  nestas 
partes  ? 

ORTA 

A  gente,  onde  a  ha,  a  chama  sacarmambum,  que  quer 
dizer,  açucare  de  mambiim,  porque  áquellas  canas  daquella 
arvore  chamam  os  índios  onde  nasce,  mamhú.  E  porém  já 
lhe  chama  aguora  a  gente  da  terra  tabaxir;  porque  debaixo 
deste  nome  lho  pedem  os  Mouros,  que  o  vem  comprar  da 
Pérsia  e  da  Arábia,  e  da  Turquia,  que  se  leva  a  estas  re- 


Do  espodio  3o3 

giões  por  mercadoria;  e  vai  muito,  quando  falece,  e  pouquo, 
quando  vai  muyto  a  venderse;  que  asi  sam  todas  as  merca- 
dorias; mas  o  preço  ordinário  na  Pérsia  e  Arábia  he  a  peso 
de  prata. 

RUANO 

Como  sam  as  canas  e  os  arvores  que  as  criam?  E  elle 
como  se  tira  e  he  feito?  E  em  que  terras  é  a  força  e  a  can- 
tidade  destas  canas? 

ORTA 

Ha  huns  arvores  grandes,  e  altos  tanto  como  freixos,  e 
outros  mais  pequenos,  e  isto  ha  em  Bisnaguer  e  suas  terras, 
e  no  Malavar  também;  e  tem  os  ramos  direitos  polia  maior 
parte,  senão  alguns  delles,  que  vem  de  boa  feiçam,  que  en- 
tortam e  acorcovam,  pêra  fazer  as  canas  dos  palanquins  e 
andores  que  na  índia  se  usam.  Tem  entre  nó  e  nó  estas 
canas  cantidade  de  um  palmo,  e  a  folha  pouco  mais  comprida 
e  larga  que  a  da  oliveira  nossa;  e  nestas  canas,  scilicet, 
nos  nós,  se  gera  huma  humidade  grossa  que  parece  como 
o  amidam,  quando  está  muyto  .coalhado;  e  asi  he  branca, 
e  ás  vezes  he  mu3'ta,  e  ás  vezes  pouca,  como  a  que  nasce 
dentro  das  canas  de  escrever,  a  que  os  moços,  em  linguoa 
portugueza,  chamam  ladrão.  E  por  o  que  vos  dixe  vereis 
que  nam  he  raiz  de  canas  nossas  queimadas,  como  dizem 
alguns  Arábios. 

RUANO 

Vistes  já  o  tabaxir  nas  canas?  E  como  he  algum  delle, 
preto  ou  cinzento? 

ORTA 

Vi  muytas  vezes,  posto  que  poucas  canas  o  tem;  e  sam 
as  de  Bisnaga  e  Batecalá,  e  de  algumas  do  Malavar:  e  a 
gente  da  terra,  scilicet,  os  carpinteiros,  quando  as  lavram 
para  fazer  algum  madeiramento,  se  acham  dentro  este  çumo 
basto  ou  miolo,  põemno  loguo  poUos  lombos  e  rins,  e  na 
fronte  se  lhe  dóe  a  cabeça,  e  se  o  senhor  da  madeira  não 
lho  toma.  E  algum  delle  he  preto  e  cinzento,  e  nam  se  tem 
por  pior;  porque  he  de  estar  muito  na  cana,  e  a  humidade 
o  fazer  daquella  cor.  E  já  tive  por  certo  em  algum  tempo, 


3o4  Colóquio  quinqiiagesimo  primeiro 

que  porque  punham  foguo  ás  canas,  ficava  daquella  cor,- 
mas  depois  soube  a  verdade,  porque  ás  vezes  não  põem  fo- 
guo no  mato  das  canas  e  muytas  delias  o  dam,  que  nunqua 
viram  foguo;  por  onde  parece  ser  a  verdade  ser  da  muita 
humidade  que  corre  a  elle:  e  asi  me  foy  dito  a  mim  por  ín- 
dios da  terra. 

RUANO 

Pois  os  Arábios  e  Latinos  falaram  somente  neste  simple, 
pouquo  trabalho  tereis  de  me  fallar  nisso,  decrarando  o  que 
dizem-,  e  dizer  onde  dizem  mal  e  onde  bem. 

ORTA 

Rasis,  posto  que  fala  no  tabaxir*,  não  diz  de  que  he  feito, 
senão  o  pêra  que  aproveita.  Serapio  diz**  que  he  sataxir 
ou  mais  direitamente  espodio;  e  diz  o  pêra  que  aproveita, 
aleguando  a  Rasis,  o  qual  Rasis  alegua  a  Galeno;  e  diz  nisto 
bem,  mas  tal  cousa  nunqua  escreveo  o  Galeno,  nem  outro 
Grego  algum.  Mas  isto  não  se  pôde  tirar  a  Serapio,  ale- 
guar  a  Galeno  e  a  Dioscorides,  onde  nunqua  falaram  cousa 
alguma;  e  também  diz,  aleguando  ao  mesmo  Galeno,  que 
no  sabor  he  amarguo,  no  qual  erra  manifestamente,  mas 
antes  he  doce;  e  por  esta  rezam,  como  Já  vos  dixe,  lhe  cha- 
mam os  índios  açúcar  de  mambu  E  quanto  he  a  não  lhe 
chamar  tabaxir,  senão  sataxir,  nisto  nam  errou,  porque  Sa- 
rapio  tabaxir  escreveo,  e  o  tempo  corrompeo  o  nome.  E 
em  dizer,  ou  mais  direitamente  espodio,  o  erro  que  nisto 
se  cometeo  foy  do  trasladador,  que  pôs  aquillo  de  mais  da 
sua  casa.  Avicena  diz***  que  sam  raizes  de  canas  queima- 
das, o  qual  vedes  ser  falso;  e  nem  as  canas  sam  das  nossas, 
e  o  Belunense  diz  que  ha  de  dizer  alcaná  por  outra  letra,  e 
que  alcaná  he  o  arvore  das  canas  de  que  se  faz  o  espodio, 


*  Rasis,  Tratatus,  3,  cap.  36  (nota  do  auctor). 
**  Serapio,  cap.  342  (nota  do  auctor). 
•»*  Lib.  I,  cap.  617  (nota  do  auctor). 


Do  espodio  3o5 

c  nisto  faz  no  seu  chamado  Vocabulário  huma  discriçam  do 
arvore,'  mas  eu  nunqua  achei  quem  lhe  chamase  este  nome 
nesta  terra.  E  quanto  mais  que  nem  as  raizes  das  canas  he  o 
tabaxir;  asi  que  em  ambas  traduções  erra  Avicena.  Avcnr- 
rois  diz*  que  he  carvam  dos  nós  das  canas  queimadas  da 
índia,  donde  parece  que  o  não  vio,  pois  a  cousa  tam  branca 
chama  carvam. 

RUANO 

E  que  vos  parece  destes  homens  errarem? 

ORTA 

Pareceme  que  o  trato  e  navegaçam  não  era  tam  usada;  por 
onde  aviam  as  enformaçóes  falsas  e  curtas.  E  diz  Valério 
Codro**  muyto  mal  dos  Arábios,  porque  fazem  o  espodio 
das  raizes  das  canas,  sendo  espodio  metal  ou  feito  de  metal. 
E  nisto  não  diz  bem,  porque  os  Arábios,  como  vos  dixe, 
não  conheceram  tal  nome,  senão  tutia,  e  desta  escreveram, 
conforme  aos  Greguos.  António  Musa  diz  que  Avicena  usou 
do  espodio  de  canas,  porque  não  tinha  o  de  metal  (bem  vedes 
que  nunqua  falece  tiilia  nem  metaes,  mas  não  usaram  delia 
tomada  por  a  bocca)  e  mais  diz  que  nós  não  aviamos  de 
usar  deste  espodio,  pois  he  contrafeito  e  falso,  e  diz  que  nam 
faltaram  escriptores  modernos,  como  Menardo  e  outros,  que 
dixeram  que  de  nenhuma  cousa  se  faz  espodio  senam  dos 
metaes.  E  nisto  se  enguanou  muyto,  porque  Dioscorides  en- 
sina a  fazer  espodio  no  5  livro.  Mas  de  todas  estas  cousas 
he  livre  Avicena;  porque  não  falou  senão  tabaxir,  e  nam 
sonhou  que  havia  de  ter  falso  tradutor;  e  pois  trabalham 
todos  na  equivocaçam  destes  nomes,  scilicet,  espodio,  avendo 
de  significar  duas  cousas.  E  ao  fim  diz  que  usemos  do  es- 
podio de  canas  de  Avicena,  ou  de  coraes  queimados,  ou  de 
marfim  queimado,  ou  de  ossos  de  elefante  queimados.  Vede, 
senhor,  quantos  erros  se  pudiam  escusar,  se  olhasem  estes 


•  Coliget,  5  (nota  do  auctor). 

•  •Valério  Codro  (nota  do  auctor);  aliás  Valério  Gordo. 


20 


3o6  Colóquio  qiiinqiiagesimo  primeiro 

homens  a  composiçam;  e  se  for  de  Greguo,  usar  do  espodio 
verdadeiro  de  metal,  e  se  for  de  Arábio  usareis  deste  espodio, 
que  levareis  da  índia,  que  eu  volo  averei;  e  se  for  Latino 
que  receita  a  composiçam,  vereis  se  he  mezinha  que  se  ha 
de  tomar  por  dentro  ou  por  fora,  e  usareis  conforme  a  en- 
tençam  do  escritor,  que  fez  a  composiçam;  porque  loguo 
se  verá,  se  querem  esfriar  coraçam,  ou  cérebro,  ou  fígado, 
ou  rins,  ou  se  querem  restringir  alguns  fluxos;  e  se  asi  for 
bem  he  usar  do  íabaxir  da  índia.  Muytos  doutores  simpli- 
cistas,  e  copiladores  de  mezinhas  vos  trataram  sobre  esta 
matéria;  mas  casi  todos  falam  de  huma  maneira;  porque 
os  que  dizem  que  menos  mal  he  tomar  espodio  feito  das 
raizes  das  nossas  canas,  erram,  porque  isto  não  he  mezinha 
cordial,  como  he  o  espodio,  nem  esfria,  como  o  tahaxir;  e 
dizer  que  o  façam  de  coraes  ou  marfim  queimado,  se  essa 
fora  a  entençam,  bem  o  pudera  dizer  Avicena  e  os  outros. 
E  os  que  dizem  que  se  faz  de  ossos  de  elefante,  eu  sei  certo 
que  não  aproveita  pêra  cousa  alguma:  e  quando  morre  algum 
elefante,  comemlhe  os  Gentios  a  carne,  e  deitam  os  ossos 
a  longe.  Pois  como  os  aviam  lá  de  levar  a  Europa  a  vender? 

RUANO 

Aveis  dito  muito  bem:  e  por  isso  o  levarei  de  cá.  Per  fim 
queria  saber  de  vós  como  usam  esta  mezinha  os  físicos  ín- 
dios, e  os  dos  reis,  e  os  da  Pérsia  e  Arábia  e  Turquia; 
porque  com  isto  fícarey  satisfeito. 

ORTA 

A  gente  da  terra,  que  sabe  física,  guasta  este  tahaxir  pêra 
os  esquentamentos  interiores  e  exteriores,  e  pêra  as  febres 
coléricas,  e  pêra  as  camarás:  e  os  fízicos  que  tem  o  Niza- 
moxa.  Arábios  e  Persas  e  Turcos,  o  usam  pêra  as  mesmas 
cousas  ditas,  e  muyto  mxais  pêra  fluxos  coléricos,  e  fazem  os 
nossos  trociscos  com  semente  de  azedeiras  (i).  E  deste  modo 
curei,  per  conselho  de  Nizamoxa,  a  Franguecham  Português 
(chamado  Sancho  Pirez)  natural  de  Matosinhos;  o  qual  era 
tam  querido  e  privado  seu,  que  o  via  cada  dia,  e  lhe  oulhava 


Do  espodio  307 

as  camarás;  e  nam  fiava  a  cura  deste  homem  senão  de  mim, 
porque  avia  medo,  que  lho  matasem  os  físicos,  por  ser  pri- 
vado seu. 

RUANO 

Muyto  lhe  devia  querer.  E  era  mouro  ou  cristam?  E  tinha 
muyta  renda? 

ORTA 

Ao  que  me  dizia  em  secreto  era  christam,  e  comia  co- 
miguo  as  cousas  vedadas  aos  Mouros,  e  rezava,  e  dizia  mal 
delles;  e  não  era  circumciso,  posto  que  todos  cuidavam  que 
si,  mas  eu  o  vi  e  nam  o  era:  mas  asaz  de  mal  tinha,  pois  con- 
fessava ser  mouro,  e  este  morreu  com  6  mil  crusados  de 
renda.  He  verdade  que  desta  renda  paguava  á  gente  com 
que  era  obriguado  a  servir,  e  certo  que  se  o  diabo  o  não 
levara  primeiro  em  o  combate  de  Calabarga,  me  tinha  pro- 
metido de  vir  comigo;  e  eu  já  lhe  tinha  ávido  perdam  se- 
creto do  visorey  Dom  AíFonso  de  Noronha.  E  elle  fazia 
muytas  esmolas  a  Portuguezes,  e_a  Misericórdias,  e  a  outras 
igrejas,  de  que  eu  sam  testemunha  (2). 


Nota  (i) 

Orta  começa  por  estabelecer  a  distincção  entre  a  substancia  vegetal, 
impropriamente  chamada  espodio  pelos  traductores  dos  árabes,  e  o  es- 
podio, spodo  ou  spodio  dos  antigos  escriptores  gregos  e  latinos,  análogo 
ou  idêntico  ao  pompholix  e  á  tutia,  substancias  mineraes.e  absoluta- 
mente diversas  da  primeira.  Como  elle  volta  a  tratar  da  tutia  em  um 
Colóquio  especial,  reservamos  para  então  o  que  ha  a  dizer  sobre  estes 
óxidos  metallicos 

O  espodio  vegetal  ou  tabaschir,  que  faz  o  assumpto  d'este  Colóquio,  é 
uma  conhecida  concreção  siliciosa,  depositada  nas  cavidades  dos  entre- 
nós dos  bambus :  Ba,nil>usa  0,1*111x01110.06».,  Retz.,  e,  segundo 
dizem,  de  outras  espécies  do  mesmo  género.  Não  é,  no  emtanto,  uma 
substancia  muito  vulgar,  pois,  como  já  Orta  advertia,  se  não  encontra 
em  todas  as  plantas,  e  só  excepcionalmente  em  algumas,  desenvolvi- 
das em  condições  especiaes  de  vegetação. 


Bo8  Colóquio  quinquagesimo  primeiro 

É  geralmente  conhecida  no  Oriente  pelo  nome  persa,  j^Lls,  ta- 
baschir,  derivado  do  sanskrito  ç^=f)Tt  U  I,  tvak-kshírã,   e  cuja  ultima 

parte  significa  leite,  como  Orta  nota  acertadamente. 

Derramaram-se  sobre  esta  substancia  vastos  thesouros  de  erudição, 
por  isso  que  alguns  escriptores  dos  séculos  passados  e  já  do  nosso,  como 
o  eruditíssimo  Salmasius,  e  depois  Sprengel  e  vários  mais,  suppozeram 
ser  este  tabaschir,  e  não  o  vulgar  assucar,  aquillo  de  que  Dioscorides 
e  depois  Plinio  fallaram  sob  os  nomes  de  ffóxyafov  e  de  saccharum.  Posto 
que  o  nome  do  assucar  se  não  derive  primitivamente  do  sabor  doce, 
e  a  palavra  sanskrita  sarkara,  da  qual  procedem  todas  as  designações 
posteriores  (o  nome  portuguez  vem  pelo  árabe,  e  conservando  o  artigo, 
as-succar),  se  applique  á  forma  granulosa  da  substancia  crystallisada, 
é  certo,  que  tanto  Dioscorides  como  Plinio  se  referem  ao  seu  sabor 
doce,  quando  classificam  o  aic/apov  ou  saccharum  como  uma  espécie  de 
mel.  O  tabaschir  não  é  sensivelmente  doce,  e  esta  simples  mas  impor- 
tante circumstancia,  leva  a  maior  parte  dos  escriptores  mais  modernos, 
Royle,  Yule,  Dymock  e  outros,  a  julgarem  que  aquelles  antigos  auctores 
se  referiam  effectivamente  ao  assucar,  do  qual  tinham,  no  entanto,  um 
conhecimento  muito  incompleto. 

O  tabaschir  é,  como  dissemos,  uma  concreção  siliciosa,  na  qual  pa- 
recem entrar  70  por  cento  de  silica,  e  que  se  apresenta  em  fragmentos 
irregulares  de  côr  branca  ou  azulada,  e  um  tanto  opalina.  Ás  vezes,  a 
substancia  bruta,  encontra-se  denegrida  e  suja,  o  que  parece  resultar, 
contra  a  opinião  de  Orta,  de  haverem  lançado  fogo  aos  bambus,  sendo 
então  necessário  calcinal-a  para  a  purificar.  Gosa  esta  substancia,  no 
Oriente,  de  grande  e  mal  fundada  reputação  medicinal,  sendo  consi- 
derada pelos  hindus  como  um  tónico  poderoso,  e  tida  pelos  árabes  e 
persas  na  conta  de  adstrigente,  fortificante  e  cardíaca.  Entrava  natural- 
mente este  tabaschir  ou  espodio  em  varias  composições  da  pharmacia 
árabe,  que  por  muito  tempo  deu  a  lei  na  Europa;  mas  a  substancia 
era  rara,  e  por  isso  lhe  substituíram  a  maior  parte  das  vezes  aquelles 
succedaneos  variados,  de  que  Orta  falia,  as  raizes  das  cannas,  e  o  coral 
ou  o  marfim  queimado.  Na  Pharmacopéa  de  Barcelona  (1587)  nós  ve- 
mos, por  exemplo,  como  por  spodio  se  deve  sempre  entender  o  marfim 
queimado :  spodium  Arabum  sunie,  hoc  est  Ebur  ustum. 

(Cf  Dymock,  Mat.  med.,  856;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i,  419;  Amaraco- 
cha,  I,  227;  Royle,  Atit.,  83;  Yule  e  Burnell,  Gloss.  v.  sugar  e  tabas- 
heer;  Concórdia  pharmac.  barcinonensium,  73.) 

A  propósito  do  tabaschir,  Orta  descreve  naturalmente  as  plantas  de 
que  se  obtinha,  comparando-as  com  os  freixos,  unicamente  na  altura, 
está  claro,  e  assimilhando  a  íórma  da  folha  á  da  oliveira.  Nota  que  os 
ramos  (colmos)  eram  direitos,  a  não  ser  alguns,  que  artificialmente  cur- 
vavam para  depois  servirem  nos  palanquins..  Esta  forma,  regularmente 
curva,  pode  observar-se  nas  curiosas  estampas  dos  palanquins,  usados 


Do  espodio  Sog 

pelos  portuguezes  de  Goa,  e  que  illustram  o  livro  de  Linschoten,  A  parte 
mais  interessante  do  que  Orta  diz  do  bambu,  é  o  nome  de  mambum  ou 
mambu  que  lhe  dá,  e  cuja  origem  é  pouco  clara.  Os  primeiros  portugue- 
zes, no  começo  do  século,  não  dão  nome  especial  á  planta,  chamando-lhe 
simplesmente  canas,  e  notando  apenas  quanto  eram  grandes  e  grossas, 
comparadas  com  a  Arundo  do  sul  da  Europa.  O  nome  vulgar  no  Canará, 
segundo  Wilson  — citado  por  Yule —  parece  ser  bãnbú,  de  modo  que 
não  é  fácil  saber  d'onde  veio  a  forma  usada  por  Orta.  Poucos  annos 
depois  (iSyS)  Costa  emprega  a  mesma  forma  manbu  ou  mãbu;  e  no 
fim  do  século  (ogS)  Linschoten,  pelo  menos  na  versão  latina,  dá  as 
duas  formas :  ea  ab  Indis  Manbu,  a  Lusitanis  Bambu  vocatur.  D'esta 
passagem  de  Linschoten,  se  não  foi  influenciado,  como  muitas  vezes 
é,  por  Orta,  resulta  que  o  nome  indígena  «seria  manbu.  O  que  parece 
certo,  é  que  a  palavra  foi  introduzida  no  uso  europeu  pelos  portugue- 
zes (Cf.  Yule  e  Burnell,  Gloss.  v.  Bamboo;  C.  da  Costa,  Trac/íiio,  296; 
Linschoten,  Navigatio,  67). 

Nota  (2) 

Sobre  este  curioso  typo  de  aventureiro  portuguez  do  xvi  século,  te- 
mos, além  das  interessantes  noticias,  que  nos  dá  Garcia  da  Orta  n'este 
Colóquio,  as  que  nos  fornece  Diogo  do  Couto. 

Sancho  Pires  era  um  portuguez  do.  norte,  natural  de  Mattosinhos, 
que  passou  á  índia  como  soldado,  artilheiro,  ou  — na  linguagem  do 
tempo —  bombardeiro,  o  que  tornava  os  seus  serviços  mais  apreciados, 
pois  os  bons  bombardeiros  eram  raros,  e  nós  vemos  algumas  vezes  alle- 
mães  e  flamengos,  contratados  para  este  mister.  No  governo  de  Nuno 
da  Cunha,  passou  para  o  serviço  do  Nizam  Scháh,  levado  pelo  seu  es- 
pirito inquieto,  ou,  o  que  é  mais  natural,  por  haver  commettido  algum 
crime,  ou  algum  acto  de  indisciplina.  Estas  deserções  não  eram  frequen- 
tes, mas  poderíamos  citar  outros  exemplos.  Devemos  dizer  desde  já,  em 
abono  de  Sancho  Pires,  que  o  Nizam  Scháh  esteve  quasi  sempre  em 
paz  com  os  portuguezes,  e  elle  não  teve  de  voltar  as  armas  contra  os 
seus.  Sancho  Pires  parece  ter  sido  um  valentão,  tendo  alem  d'ísso  ver- 
dadeiras qualidades  de  commando,  de  modo  que  chegou  a  general  de 
cavallaria,  obtendo  muita  importância  na  corte  de  Buhran,  e  recebendo 
o  titulo  de  Frangue  khan*.  Havia-se  feito  mussulmano,  unicamente 
pelos  seus  interesses,  mas  sem  zelo  pela  sua  nova  religião,  pois  em 
segredo  se  dizia  christão,  e  quando  jantava  com  Garcia  da  Orta  comia 


'  «Tringuican»  diz  Couto ;  mas  era  evidentemente  Frangue  khan.  Foi  uso  entre  os  mou- 
ros deiíar  o  nome  da  nacionalidade  como  distinctivo;  assim  nós  vemos  o  famoso  Rumecão 
dos  livros  ponuguezes,  Rume  khan,  um  Rume ;  e  Tatar  khan,  um  Tártaro;  d'ahi  Frangue 
khan,  porque  Sancho  Pires  era  um  Frangue. 


3io       Colóquio  qiiinquagesimo  primeiro  do  espodio 

todas  as  «cousas  vedadas  aos  mouros».  Conservava  também  escrúpulos 
da  sua  apostasia,  e  não  só  mandava  esmolas  ás  misericórdias,  como 
dissuadia  alguns  outros  christãos  de  mudarem  de  religião,  mostrando- 
Ihes  «as  obrigações  que  tinham  á  lei  de  Christo».  Em  summa,  parece 
ter  sido  um  homem  de  valor  e  um  bom  homem;  Diogo  do  Couto  falia 
d'elle  com  muita  consideração,  e  Orta  com  uma  certa  amizade. 

Buhran  Nizam  Scháh  morreu  no  anno  da  hedjira  961  (de  J.  C.  i553), 
posto  que  Diogo  do  Couto  colloque  a  sua  morte  no  de  i555.  Deixava 
diversos  filhos,  entre  elles  Hussein  da  sua  favorita  Amina,  e  outros  de 
Biby  Mariam,  irmã  do  Adil  Scháh  de  Bijapuri.  Desejava,  porém,  que 
Hussein  lhe  succedesse,  e  entregou-o  aos  cuidados  do  seu  general  e 
valido  Sancho  Pires,  o  qual  o  coUocou  no  throno.  O  historiador  persa 
Ferishta  não  falia  de  Sancho  Pires,  pois  os  mussulmanos  guardam  ge- 
ralmente silencio  sobre  a  intervenção  dos  christãos  nos  seus  negócios; 
mas  confirma  indirectamente  esta  noticia  de  Diogo  do  Couto,  dizendo 
que  Hussein  foi  sobretudo  apoiado  peio  partido  dos  estrangeiros,  abe- 
xins e  outros.  Os  demais  filhos  de  Buhran  fugiram,  e  o  reino  obedeceu 
a  Hussein,  ou  antes,  segundo  parece,  a  Sancho  Pires,  o  seu  principal 
sustentáculo.  Poucos  annos  depois  (967  da  hedjira,  iSSg  de  J.  C),  susci- 
tou-se  a  guerra  entre  o  Adil  Scháh,  que,  alem  de  outras  rasões,  pro- 
movia os  direitos  dos  sobrinhos  ao  throno,  e  o  Nizam  Scháh,  alliado 
então  com  o  «Cotamaluco»,  isto  é,  com  o  Qutb  Scháh  de  Golconda. 
Sancho  Pires  commandou  n'essa  guerra  o  ataque  contra  a  fortaleza 
de  Calabarga  (Kulbarga),  e  morreu  na  brecha  como  um  valente,  le- 
vando-o  o  diabo,  segundo  diz  Garcia  da  Orta,  apesar  da  evidente  sym- 
pathia  que  por  elle  tinha. 

Vé-se  também  do  Colóquio,  que  Sancho  Pires  havia  pensado  em 
voltar  para  o  serviço  de  Portugal,  servindo-lhe  de  intermediário  Gar- 
cia da  Orta,  o  qual,  já  no  governo  do  vice-rei  D.  Affonso  de  Noronha 
(i 550-1554),  lhe  havia  obtido  um  perdão  secreto. 

(Cf.  Couto,  Ásia,  VII,  iv,  9;  Ferishta,  Hist.  of  the  rise  ofthe  mahome- 
dan  power  in  índia,  lu,  236  a  239.) 


'  Veja-se  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  pag.  228. 


COLÓQUIO  QUINQUAGESIMO  SEGUNDO 

DO  ESQUINANTO  ' 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

Dizem  em  Portugal  que  o  esquinanto  (he  mezinha  nas 
boticas  usada)  vem  da  índia;  e  também  em  Castella  dizem 
que  vem  de  levante.  Queria  saber  os  nomes  delia,  scilicet, 
na  terra  onde  nasce,  e  no  arábio;  porque  o  greguo  e  latino 
eu  o  sei,  como  vós,  não  tomeis  trabalho  em  mo  dizer.  E 
também  me  direis  as  terras  onde  sabeis  que  nasce,  e  se  o 
usam  muyto  os  físicos  Indianos. 

ORTA 

Asinha  sereis  nisso  servido  e  -despachado,  senão  vierdes 
çom  vosso  contraponto  ao  cabo. 

RUANO 

Isso  não  se  escusa;  por  tanto  começai  em  ora  boa. 

ORTA 

Nasce  em  Mascate  e  Calaiate  (terras  da  Arábia)  onde 
ha  tanto,  como  a  erva  comum  que  pacem  as  bestas  em 
Espanha;  e  ali  lhe  chamam  cachahar,  e  alguns  lhe  chamam 
haxiscaçule,  que  quer  dizer  erva  pêra  lavar;  e  em  Pérsia, 
que  confina  com  as  ditas  cidades,  se  chama  alaf,  que  quer 
dizer  erva,  e  podese  chamar  asi  por  excelência:  cá  na  índia 
não  tem  mais  nome  que  erva  de  Mascate;  em  portuguez, 
em  latim  e  greguo  já  o  sabeis.  E  chamamlhe  em  nossa  terra 
palha  de  Mequa,  e  não  erram  muyto,  porque  esta  terra, 
posto  que  por  mar  seja  muito  distante  de  Mequa,  indo  por 
terra  he  muyto  perto;  e  vam  lá  os  Arábios  de  Mascate  e 


3i2  Colóquio  quinquagesimo  segundo 

Calaiate  em  pouquo  tempo:  também  não  erram  mu3to  em 
a  chamar  palha  ou  pasto  de  camélias,  porque  os  ha  na  terra  \ 
mas  nam  tantos  que  guastem  a  erva  e  a  frol;  mas  ha  muytas 
mulas,  e  asnos  e  cavalos,  que  cá  chamamos  arábios,  de 
muito  preço;  e  ha  muytas  vacas  e  cabras  e  ovelhas,  e  pa- 
cem  esta  erva,  que  he  muyta  em  toda  a  terra.  Vem  á  índia 
pêra  mezinha  encomendada  dos  boticairos,  mas  a  mais  delia 
trazem  nas  náos  os  mercadores  de  cavalos  pêra  lhe  deitar 
aos  pés,  pêra  que  nam  cheire  mal  a  orina  e  o  esterco  delles; 
e  pêra  isto  trazem  fardos,  porque  como  se  molha  e  dana 
a  erva,  deitamna  ao  mar,  e  tornam  a  deitar  outra  aos  pés 
dos  cavallos.  E  também  alguns  marinheiros  a  trazem  em 
fardos,  pêra  vender  cá;  e  eu  ouve  muitos  fardos  em  Dio, 
por  pouquo  dinheiro,  pêra  mandar  ao  reino  com  outras  dro- 
gas. E  porque  vos  dixe  que  se  chamava  cachabar,  não  neguo 
ter  outros  nomes  nas  partes  da  Arábia,  porque  Avicena*  a 
chama  adhar,  e  Serapiam»*  adJier;  e  deste  modo  a  chamam 
também  os  físicos  Arábios  e  Pérsios,  que  ha  na  índia;  e  á 
frol  chamam yòca,-  e  desta  frol  vem  pouqua  a  esta  terra  ou 
nenhuma,  porque  eu  não  a  vi,  e  na  terra  donde  nasce  não 
fazem  caso  delia,  polia  gente  ser  silvestre  e  de  pouquo  saber; 
e  se  lhe  chama  Mateus  Silvatico  a:{qchir  e  adcaram,  sam 
nomes  corrutos.  Nesta  terra  não  usam  dessa  mezinha  os 
naturaes,  senão  nós  e  os  Arábios  e  Pérsios;  e  na  terra  donde 
nasce  he  comum  mezinha,  pêra  se  lavarem  os  homens  e  os 
animaes. 

RUANO 

Aguora  nos  resta  examinar  os  escritores.  E  começando 
por  Dioscorides***,  por  sua  autoridade,  diz  que  o  ha  na 
Africa,  scilicet,  na  Arábia,  parte  delia,  e  na  regiam  dos  Na- 
bateos,  donde  vem  mais  excellente;  e  diz  que,  loguo  após 


*  Avicena,  Lib.  2,  cap.  589  (nota  do  auctor). 

»*  Serapio,  cap.  ig  (nota  do  auctor). 

***  Dioscorides,  Lib.  i,  cap.  16  (nota  do  auctor). 


Do  esquinanto  3i3 

elle,  he  o  arábio,  chamado  babilónico  de  alguns,  e  de  ou- 
tros tcuchites;  e  o  pior  de  todos  he  o  que  nasce  em  Africa, 
e  a  frol  he  mais  em  uso  na  física.  Sabeis  se  o  ha  nestas 
partes? 

ORTA 

Sei  que  o  ha  nestas  partes  ditas,  e  que  todas  se  nomeam 
Arábia.  E  quanto  he  á  terra  dos  Nabateos,  saber  se  o  tem 
ou  não,  diguo  que  he  Nabatea  província  da  Arábia  perto  da 
Judéa  (dita  assim  de  Nabatoch,  neto  de  Ismael),  e  dixeram- 
me  físicos,  que  estiveram  em  Jerusalém  e  Galilea  e  nessas 
terras,  que  o  que  se  guastava  em  ellas  vinha  do  Cairo;  e 
pergunteilhe  se  o  avia  no  Cairo,  ou  se  vinha  da  costa  de 
Mascate,  disseram  que  nam  o  sabiam,  mas  que  muitas  ve- 
zes as  ervas  medicinaes  nam  eram  sabidas,  polia  gente  da 
terra  ser  pouquo  curiosa,  e  por  isto  o  nam  sabiam:  e  esta 
foy  a  causa  porque  não  perguntei  se  o  avia  em  Babilónia: 
e  pôde  ser  que  o  aja  nella,  e  pois  Dioscorides  diz  que  o  peor 
he  o  que  nasce  em  Africa,  não  curemos  de  saber  se  o  ha; 
pois  não  diz  em  que  parte  da  Africa  nasce.  E  ao  que  diz 
da  frol,  que  he  o  que  mais  se  usa,  confesso  ser  verdade, 
mas  não  sam  os  médicos  curiosos  pêra  a  mandarem  trazer. 
E  eu  me  culpo  nisso,  porque  por  isto  se  perdeo  o  uso  delia; 
e  bem  sei  que  esquinanto  he  vocábulo  corruto  greguo,  que 
quer  dizer  frol,  e  per  excelência  se  chama  asi  acerca  dos 
Greguos,  como  vós  melhor  sabeis. 

RUANO 

Outros  o  chamam  Jimco  odorato,  ou  casi  todos  os  Gre- 
guos, e  Cornelio  (Zúso  junco  redondo. 

ORTA 

Assi  parece  algum  Xd^nto  junco;  posto  que  não  crece  tam 
alto.  E  chamarlhe  Celso  junco  redondo,  he  por  fazer  dife- 
rença do  junco  triangidar;  e  os  outros  junco  cheiroso,  por 
fazer  deferença  áo  junco  comum,  de  que  usamos.  E  também 
diz  Avicena  que  hum  he  arábico,  e  que  he  de  bom  cheiro, 


3 14  Colóquio  quinquagesimo  segundo 

e  outro  da  terra  de  Agiami,  e  este  he  o  de  Damasco.  E 
porém  não  sei  se  o  ha  nessas  partes,  como  vos  já  disse. 

RUANO 

E  também  diz  Avicena*  que  o  esquinanto  tem  fruto  negro, 
aleguando  a  Dioscorides.  He  falso,  nem  tal  diz  Dioscorides. 

ORTA 

Pode  ser  que  seja  depravado  o  livro,  ou  que  o  Diosco- 
rides, por  onde  o  leo,  estava  errado. 

RUANO      . 

Serapiam  diz**,  aleguando  a  Bonifá,  que  o  esquinanto  he 
huma  erva  que  tem  raizes  debaixo  da  terra,  e  que  tem  muitos 
ramos  delgados  e  duros,  que  he  assi  como  a  raiz  do  chulem, 
senão  que  he  mais  largua,  e  tem  menores  nós,  e  que  tem 
o  fruto  semelhante  ás  flores  das  canas,  e  que  o  mais  sutil 
he  menor;  e  diz  que  poucas  vezes  nasce  só,  que  quando 
virdes  huma  planta  destas  parecem  muytas  ao  redor,  e  que 
nasce  em  ilhas  e  prados;  e  que  quando  se  seca  fica  branco. 

ORTA 

Diguo  que  não  he  planta,  senam  erva*  *  *,  como  elle  mesmo 
diz  mais  abaixo,  nem  nasce  cm  ilhas,  nem  cheira  a  rosa, 
mas  tem  bom  cheiro;  e  isto  quando  he  fresca  a  erva,  senam 
as  cousas  que  cheiram  bem  não  fazem  nellas  a  comparaçam 
muito  certa,  e  mais  parecese  tanto  á  raiz  da  erva  chulem**** 
que  alguns  chamam  asi  ao  esquinanto,  como  acima  disse. 

RUANO 

Mateus  Silvatico  diz  que  se  conserva  por  lo  annos. 


•  Avicena,  Lib.  2,  cap.  5g8  (nota  do  auctor). 

**  Serapio,  i,  cap.  19  (nota  do  auctor). 

***  Orta  toma  a  palavra /«/anía  no  sentido  de  arbusto. 

*»** Ignoro  que  planta  Orta  designa  por  este  nome. 


Do  esqutnanto  3i5 

ORTA 

Diguo  que  nesta  terra,  ao  longuo  do  mar,  dura  pouquo; 
e  porém  nas  outras  terras  pôde  durar  muyto,  por  ser  erva 
que  não  tem  muyta  humidade;  mas  isto  se  entende  nam 
lhe  ficando  o  cheiro. 

RUANO 

António  Musa  diz  que  nasce  na  Apulha. 

ORTA 

Pode  ser  verdade,  se  elle  o  vio. 

RUANO 

Depois  de  falar  em  os  Frades,  em  dizer  que  não  he  frol, 
senam  raiz  e  palha,  e  que  aquella  palha  que  nas  boticas  se 
vende  por  esquinanto  não  o  he  (como  muytos  doutos  o  tem), 
e  que  nam  he  o  de  Dioscorides,  oulhando  os  signaes  que 
delle  põem,  e  que  muytos  crêem  que  a  raiz  do  calamo  aro- 
mático he  a  raiz  do  esquinanto;  e  também  diz  que  outros 
tem  que  a  raiz  da  galanga  he  a  do  esquinanto,  e  que  Junco 
aromático  e  calamo  aromático  não  devem  ser  muito  defe- 
rentes por  a  semelhança  dos  nomes. 

ORTA 

Bem  pode  ser  que  todos  os  sinaes  de  Dioscorides  nam  qua- 
drem ao  esquinanto,  mas  o  esquinanto  he  o  mesmo  que  sem- 
pre foy,  e  asi  lhe  chamam  fisicos  letrados  do  Nizamoxa,  e  á 
frol  foca,  e  confessam  ser  estes  nomes  greguos;  e  asi,  poUos 
nomes  gregos,  o  chamam  esquinanto;  e  estes  homens  sam 
Arábios  de  naçam.  Ora  não  sei  que  mais  prova  quereis;  e 
mais  Dioscorides  não  o  avia  de  conhecer  tam  bem,  como  os 
de  Mascate,  e  isto  porque  Mascate  por  terra  não  he  muito 
longe  de  Meca.  E  ao  que  diz  que  he  calamo  aromático,  bem 
se  parece  esquinanto  hum  com  outro;  porque  este  parece 
junco,  e  o  calamo  aromático  tem  as  folhas  como  lirio,  e  o  ca- 
lamo he  muyto  mais  quente,  c  tem  a  raiz  muyto  maior;  e  o 
esquinanto  nasce  em  Mascate,  e  o  calamo  na  índia,  donde  o 
levam  por  mercadoria  pêra  a  Arábia.  E  dizer  que  he  galanga 
he  pior  dito,  porque  a  galanga  ha  na  China  duas  mil  leguoas 
de  Mascate;  e  as  raizes  e  folhas  sam  muyto  deferentes,  por- 


3i6  Colóquio  qiiinquagesimo  segundo 

que  aqui  ha  em  Goa  galanga  semeada.  E  mais  o  esquinayito 
he  nacido  na  terra  muyto  e  sem  se  semear,  e  a  galanga  e 
calayno  sam  sativos;  ao  menos  sei  dizer  que  os  que  derem 
calamo  e  galanga  por  esquinanto,  que  vão  enguanados  no 
preço,  que  custam  mais  estas  mezinhas  que  o  esquinanto 
duas  mil  vezes.  E  o  que  seria  bem  pêra  curarmos,  á  vontade 
destes  homens  que  escrevem,  era  bem  que  fizessem  huma 
pratica  nova,  por  onde  curasemos,  e  que  não  levasse  ne- 
nhuma mezinha  destas,  em  que  Fuchio*  tem  duvida;  mas  eu 
vejo  que  os  que  escrevem  aguora,  destes  modernos,  usam 
das  mezinhas  na  sua  pratica  dos  Arábios,  pondo  tanta  du- 
vida nellas  (i). 

RUANO 

Não  tomeis  tanta  cólera,  que  os  homens  am  de  dizer  em 
que  duvidam;  e  quando  estam  protervos  e  pertinaces,  dan- 
dolhe  boas  rezões,  entonces  sam  de  culpar.  E  portanto  passai 
avante,  e  falemos  nos  tamarindos,  pois  sam  tanto  medeci- 
naes,  e  ao  guosto  aprazíveis. 


*  Aliás  Fuchsio. 


Nota  (i) 

O  «esquinanto»  é  o  Anclropog-on  lanigei*,  Desf.,  uma 
planta  da  família  das  Graminece,  de  larga  distribuição  geographica, 
pois  se  encontra  espontânea  desde  a  Algéria,  pela  Arábia  e  índia,  até 
ás  alturas  do  Thibet. 

Esta  droga  foi  chamada  cy.iW/  pelos  antigos  gregos,  e  depois  com 
referencia  á  flor,  oyoívwv  ívôo;,  ou  por  contracção  cr/oívavôo;,  donde  fize- 
ram na  baixa  latinidade  squinanthum,  e  herba  squinanthi  ou  schcenan- 
thi;  foi  igualmente  conhecida  pelas  designações  de/cenum  camelorum, 
e  de  juncus  odoratus.  Orta  conhecia  todos  estes  nomes,  ou  parte  d'el- 
les;  e  menciona  também  outros,  de  procedência  oriental,  cuja  identi- 
ficação nem  sempre  é  fácil  fazer. 

— O  nome,  usado  pelos  antigos  escriptores  árabes  de  matéria  me- 
dica, parece  ser  ^.51,  adhkhar,  o  «adhar»  e  «adher»  de  Orta;  mas  mais 
modernamente  cita-se  na  forma  ^á:^!  askher,  ou  i:;khir,  que  deve  ser  o 
«azqchir»  de  Mattheus  Silvatico,  que  o  nosso  escriptor  diz  estar  «cor- 
ruto«. 


Do  esquinanío  317 

—Não  encontrei  propriamente  a  designação  «haxiscaçule»,  appli- 
cada  a  esta  droga;  mas  Scaligero  diz  que  ,J~^  ^A-^,  haschisch 
ghesale,  tem  effectivamente  a  significação  de  «herva  para  lavar»,  herba 
lotoria.  E  no  Makhzan-el-Adwiya  —citado  por  Dymock—  diz-se  que 
a  herva,  reduzida  a  pó,  é  empregada  nos  banhos  para  os  perfumar,  e 
chamada  na  Mecca  ghusúl,  que  é  evidentemente  o  ghesale  de  Scaligero 
e  o  «caçule»  de  Orta. 

—O  persiano  «alaf»,  nem  parece  ser  persiano,  nem  significar  herva; 

mas  é  arábico  ^_^,  'alaf,  e  significa  comida  ou  pabulum,  ligando-se 

pois  ás  conhecidas  designações  de  «pasto  dos  camellos»,  ou  fcemim 

camelorum.  Deixo  esta  ultima  indicação,  assim  como  a  anterior,  sob  a 

.  inteira  responsabilidade  de  Scaligero. 

O  squinanto  era  uma  droga  bastante  conhecida,  relativamente  á 
qual  se  não  haviam  feito  muitas  confusões,  de  modo  que  Orta  teve 
unicamente  de  affirmar,  que  não  era  o  calamo  aromático,  nem  a  ga- 
langa,  drogas  effectivamente  muito  diversas,  das  quaes  elle,  de  resto, 
já  havia  tratado  em  Colóquios  anteriores.  Esta,  de  que  agora  trata- 
mos, tinha  varias  applicações  medicinaes,  sendo  considerada  diurética, 
sudorífica,  expectorante  e  com  varias  outras  propriedades.  Desappare- 
ceu  ha  muito  da  matéria  medica  europêa;  mas  encontra-se  ainda  hoje 
á  venda  em  todos  os  bazares  da  índia. 

^  Posto  que  a  espécie  Andropogon  laniger  exista  espontânea  na  índia, 
não  parece  ser  muito  commum,  nem  muito  conhecida,  de  modo  que 
ainda  modernamente  aquella  droga  vem  para  os  bazares  da  índia  dos 
portos  do  golpho  Pérsico,  como  no  tempo  de  Orta  vinha  dos  da  Arábia. 
Orta  cita  dois  portos  da  costa  de  Oman,  Calaiate  (Kalhat)  e  Mascate, 
ambos  muito  conhecidos,  dizendo  que,  por  terra,  não  ficavam  muito 
longe  da  Mekka,  o  que  era  forçar  bastante  a  geographia. 

Devemos  notar  ainda,  que  o  squinantho,  hoje  correctamente  identi- 
ficado com  o  Andropogon  laniger,  foi  já  no  nosso  século  considerado 
como  sendo  uma  espécie  diversa  do  mesmo  género,  Andropogon  Schce- 
nanthiís,  Linn.,que  d'esta  errada  identificação  derivou  o  seu  nome  scien- 
tifico.  Esta  ultima  espécie  é  hoje  largamente  empregada  na  fabricação 
de  um  óleo  volátil,  chamado  rúsa,  ou  rosa;  mas  não  era  conhecida, 
nem  tinha  applicação  no  tempo  do  nosso  escriptor,  que  naturalmente 
a  não  menciona. 

Varias  outras  espécies  do  mesmo  género  Andropogon  existem  na 
índia,  e  foram  ultimamente  enumeradas  em  uma  interessante  publica- 
ção por  mrs.  Lisboa,  uma  senhora  de  Bombaim,  mas  de  familia  portu- 
gueza. 

(Cf.  Sprengel,  Dioscorides,  11,  354;  Exoticorum,  25o;  Ainslie,  Mat. 
Ind.,  I,  58;  Dymock.  Mat.  med.,  85o;  Mrs.  J.  C.  Lisboa,  Short  notes  on 
the  odoriferous  grasses  r Andropogon)  of  índia  and  Ceylon.) 


COLÓQUIO  QUINQUAGESIMO  TERCEIRO 

DOS  TAMARINDOS* 
INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA,  SERVA 
RUANO 

He  tam  aprazível  ao  guosto  o  tamarindo,  sendo  tam  me- 
decinal,  que  não  tem  preço.  He  bem  que  saibamos  o  nome 
dos  índios  e  dos  Arábios,  e  que  me  diguaes  a  feiçam  do  ar- 
vore, e  como  se  uza  delle  acerca  dos  físicos  Indianos. 

ORTA 

Fruta  medicinal  he  essa  em  que  não  ha  enguano,  por  ser 
muito  conhecida  de  todos,  e  porque  os  ha  em  muitos  cabos; 
e  asi  sam  nacidos  no  monte  os  milhores,  e  os  que  mais  du- 
ram sam  os  mais  chegados  ao  norte,  asi  como  os  de  Cam- 
baiete  e  do  Guzarate;  chamase  no  Maiavar  jt^z/Zz  e  no  Guza- 
rate  ambili,  e  asi  lhe  chama  toda  a  outra  gente  desta  índia; 
e  o  Arábio  lhe  chama  tamarindi,  porque  tamar,  como  vós 
milhor  sabeis,  he  tâmara  (a  que  os  Castelhanos  chamaes  da- 
til) asi  que  tamarindi  sam  tâmaras  da  índia;  e  isto  fo}' 
porque  não  lhe  acham  outro  nome  mais  adequado  os  Ará- 
bios, por  ter  dentro  caroços;  e  nam  porque  o  arvore  o  pa- 
reça, nem  o  fruto  meudo.  E  o  arvore  he  grande  como  freixo 
ou  nogueira,  ou  castanho ;  e  a  madeira  delles  he  rija,  e  nam 
porosa  ou  fofa,  e  he  muito  cheo  de  folha,  e  como  fetos  cre- 
cida  por  todos  os  ramos*  *.  A  corteza  com  que  se  cobre  a  fruta 


*  «Tamarinhos»  na  edição  de  Goa;  mas  como  Orta  escreve  algumas 
vezes  tamarindos,  reduzimos  tudo  a  esta  forma. 

**  Por  muitas  vezes  Orta  compara' as /o/AíT5  compostas  com  -às  fron- 
des dos  fetos;  por  exemplo,  tratando  do  Phyllanthus  Emblica,  e  em 
outras  passagens. 


320  Colóquio  qutnquagesimo  terceiro 

he  verde,  e  des  que  se  seca  he  parda,  e  façil  de  arrincarse; 
tem  dentro  caroços*,  e  deitados  fora,  uzamos  da  medula, 
que  he  apegadiça.  E  sam  estes  tamarindos  a  modo  de  hum 
dedo  feito  á  feição  de  arco;  quando  sam  verdes  sam  mais 
azedos,  mas  não  tanto  que  nam  tenham  bom  sabor.  Eu  uso 
muyto  delles  espurgados,  comendoos  com  açucare,  e  achome 
com  elles  milhor  que  com  xarope  acetoso.  E  também  lhe 
diguo  que  mu3l:as  vezes  xaropo  os  meus  doentes  com  infu- 
sam  dos  tamarindos,  deitando  quatro  onças  em  aguoa  fria 
ou  de  endivia,  e  deitados  ahi  per  três  oras,  feita  expresam 
lhe  tiro  os  tamarindos,  e  lhe  lanço  hum  pouquo  de  açucare, 
e  com  isto  me  acho  muito  bem,  porque  digere  e  evacua  al- 
guma parte  do  humor  colérico,  e  incide  e  corta  o  freimatico. 
E  a  gente  da  terra  toma  purgas  deste  tamarindo  com  azeite 
de  coqiío,  que  é  o  fruto  da. palmeira,  e  certo  que  é  boa  purga, 
e  sem  moléstia  e  trabalho.  E  asi  os  físicos  Indianos  usam 
das  folhas  pisadas  pêra  defensivo  nas  partes  eresipuladas.  E 
nós  usamos  delle  nos  comeres,  em  lugar  de  vinagre;  porque 
he  mais  agradável  azedo,  quando  he  maduro,  e  levam  o  a 
Portugal  com  sal,  e  ás  terras  da  Arábia  e  Pérsia,  e  Tur- 
quia, porque  dizem  que  dura  mais;  mas  eu  o  tenho  em  casa 
mu3'tas  vezes,  com  a  sua  bainha  ou  corteza  e  está  muito 
fresco;  e  comtudo  pôde  ser  que  nam  dure  muyto;  e  por 
isso  a  gente  da  terra  o  conserva  com  sal;  e  fazem  deste  ta- 
marindo  huma  muyto  graciosa  conserva  com  açucare,  e  he 
feita  delle  fresco  e  sem  sal.  E  podeme  crer  que  he  hum  di- 
gistivo  e  purgativo  muyto  bom,  e  mu3'to  aprazível  ao  gosto. 
Moça,  traze  cá  tamarindo  em  conserva. 

RUANO 

Folgarei  muyto  de  o  provar. 

SERVA 

Eis  aqui  o  tamarindo. 


*  As  sementes;  mas  não  impropriamente  chamadas  caroços,  pois 
vem  envolvidas  em  uma  camada  resistente  do  endocarpo. 


Dos  tamarindos  821 

RUANO 

He  muyto  gentil  conserva,  e  sabe  muyto  bem.  Façame 
mercê  de  alguma  pêra  a  levar,  que  quero  antes  que  açucare 
rosado  de  Alexandria.  E  eu  não  averia  por  enconveniente, 
onde  fosse  necessário,  deitarlhe  escomonea  retificada. 

ORTA 

Pode  ser;  porém  em  seu  tempo,  e  com  concelho  de  bom 
físico.  E  mais  eu  mandei  estilar  os  tamarindos,  e  usava  da 
aguoa  estilada,  em  lugar  de  digestivo;  mas  nam  o  faço  tanto 
já,  porque  acho  esta  agoa  doce.  E  perdoaime  se  vos  enfadei 
em  falar  nisto  mais  do  necesario. 

RUANO 

Antes  quizera  que  gastareis  nisto  mais  huma  ora;  e  posto 
que  nenhuma  cousa  pôde  ser  também  dita,  que  aos  ouvin- 
tes nam  ponha  alguma  duvida,  quero  propor  algumas  du- 
vidas para  a  verdade  ser  mais  manifesta.  E  porque  os  an- 
tiguos  Gregos  não  conheceram  esta  mezinha,  examinalaemos 
com  os  Arábios  e  Latinos.  E  o  Mesue,  a  quem  tanto  onram 
os  imitadores  dos  Arábios,  diz  que  sam  de  palmas  silves- 
tres da  índia;  e  Avicena*  nam  fala  em  dizer  que  cousa  he, 
senam  na  eleiçam,  diz  que  milhores  sam  os  novos;  e  Se- 
rapio**,  alegando  a  Bonifá,  diz  que  em  Cesárea,  nas  terras 
do  Amem,  os  ha,  e  que  tem  as  folhas  como  salgueiro;  e 
mais  diz,  por  autoridade  de  Aben  Musuai,  que  o  de  fora 
do  tamarindo,  scilicet,  o  de  que  usamos,  vem  da  índia;  e 
que  sam  frutos  de  cor  vermelha.  Que  sabeis  disto? 

ORTA 

Diguo  que  em  Cesárea  nam  os  ha,  nem  nas  terras  do 
Amem  ou  Jamen,  que  he  nas  terras  da  Siria;  e  o  primeiro 
que  diz,  diz  verdade;  porque  diz  que  o  de  fora  (que  he  a 
polpa)  vem  da  índia;  a  isto  pêra  nos  dizer  que  os  caroços 


*  Avicena,  Lib.  i.,  cap.  699  (nota  do  auctor). 

*  *  Serapio,  cap.  348  (nota  do  auctor). 


21 


322  Colóquio  quinquagesimo  terceiro 

não  sam  em  uso  da  física.  E  o  que  diz  Mesue,  que  sam 
frutos  àe  palmeiras  silvestres,  não  soube  o  que  dizia;  por- 
que em  toda  a  índia  não  ha  fruto  de  palmeiras,  antes  as 
tâmaras  he  mercadoria  da  Arábia  pêra  a  índia;  e  gastamse 
em  muyta  cantidade  estas  tâmaras  secas;  e  as  amasadas, 
sem  caroços,  se  gastam  muito  em  toda  esta  índia,  e  algu- 
mas feitas  da  feiçam  das  que  chamamos  (ia/í7es. Verdade  he 
que  em  Cambaia  vi  eu  já  algumas  palmeiras  bravas;  porém 
sam  muyto  diferentes  dos  tamarinheiros,  quanto  mais  que 
pêra  a  Arábia  se  leva  o  tamarindo  por  mercadoria. 

RUANO 

Dioscorides  porque  nam  falou  nos  tamarindos,  diz  o  La- 
guna (tradutor  no  vulgar  castelhano),  que,  se  damos  fé  ao  vo- 
cábulo arabiguo,  diremos  que  sam  huma  especia  de  datiles 
que  vem  da  índia  oriental:  e  asi  afirma  que  por  esta  rezam 
lhe  parece  que  os  tamarindos  não  differem  dos  datiles  te- 
baicos,  visto  que  os  trazem  de  levante,  e  tem  a  mesma  força 
e  virtude:  e  diz  mais  que,  segundo  alguns  dizem,  o  arvore 
do  tamarindo  he  huma  especia  de  palmas  silvestres,  que 
tem  as  folhas  longas  e  agudas  nas  pontas,  semelhantes  ás 
do  salgueiro,  e  que  ás  vezes  acham  dentro  huns  caroços 
amarelos,  de  diversas  formas;  e  temse  por  perfeitos  aquelles 
que  roxeam,  sendo  tenros,  e  frescos  e  grossos. 

ORTA 

Não  he  espécie  de  datiles,  nem  tem  a  feiçam  de  datiles, 
senam  em  ter  caroços  e  nam  ha  nesta  terra  palmeiras  que 
dêem  fruto  de  datiles;  e  comtudo  em  o  Guzarate  ha  pal- 
meiras bravas,  que  não  dam  fruto  algum  ou  tâmaras,  e  os 
datiles,  como  vos  disse,  sam  mercadoria  pêra  esta  terra.  E 
no  que  diz,  que  parecem  aos  datiles  tebaicos,  nam  me  pa- 
rece que  tem  rezam;  e  pareceme  que,  se  forem  os  veros  ta- 
marindos, que  sam  levados  doesta  terra  pêra  lá:  e  quem  os 
compra  tem  pêra  si  serem  da  terra  donde  os  compra,  asi 
como  acontece  nas  outras  drogas;  que  chamamos  á  canela 
boa,  de  Alepo,  sendo  levada  da  índia.  E  os  Arábios,  que 


Dos  tamarindos  323 

nesta  terra  trataram,  porque  lhe  viram  caroços,  chamaram  os 
tâmaras  da  índia;  e  nam  porque  pareçam  tâmaras,  nem  o 
arvore  que  os  dá  produz  as  folhas  como  elle  diz,  senão  como 
vos  ja  disse;  nem  os  caroços  sam  amarellos,  mas  sam  lú- 
cidos e  cor  de  terra;  nem  sam  de  formas  diversas,  mas  sam 
como  huma  forma  tamanha  como  tremoço,  redonda,  ama- 
sada  por  cima;  nem  amde  ser  frescos  e  tenros  e  grossos, 
senam  como  diguo;  e  nam  porque  façam  ao  caso  pêra  física 
pois  se  não  usa  delles,  senam  porque  os  tamarindos  vem 
amasados,  trazem  poucos  caroços,  e  sam  mal  conhecidos. 

RUANO 

Valério  Codro  faz  adições  sobre  Dioscorides,  diz  que  o 
xiferiix  he  tamarindo,  Qfenico  halano  he  diverso  delle. 

ORTA 

Nisto  pode  ter  rezam,  mas  não  em  dizer  que  os  ha,  senão 
na  índia. 

RUANO 

Os  Frades  dizem  que  poucas  vezes  vem  a  Europa  ver- 
dadeiros; e  que  os  bons  sam  leirom,  segundo  Mesue,  que 
os  escolhe  na  confeiçam  alijíracost. 

ORTA 

Se  vem  sofesticados  os  tamarindos,  he  falsidade  cuja  e 
baixa;  porque  valem  cá  tam  baratos  que  em  Portugal  se 
podem  dar  em  muy to  bom  preço ;  e  os  tamarindos  que  cha- 
ma Mesue  alcairo,  quer  dizer  que  os  do  Cairo  sam  milho- 
res.  A  causa  disto  foy  porque  ao  Cairo  vinham  ter  da  índia; 
e  dahi,  per  a  Alexandria,  vem  a  Veneza;  e  nam  por  os  aver 
no  Cairo  (i). 

RUANO 

Que  nome  tinha  o  Cairo  antiguamente;  e  porque  se  chama 
asi  aguora?  E  pergunto  isto,  não  sendo  física,  porque  he 
muy  to  famosa  e  antigua  esta  cidade. 

ORTA 

O  Cairo  antiguamente  se  chamava  Menfís  dos  Greguos; 
onde  estam  oge  em  dia  aquellas  tam  famosas  pirâmides,  e 


324  Colóquio  quinquagesimo  terceiro 

onde  foy  cativo  José,  e  aguora  parecem  as  abobedas,  donde 
guardou  os  mantimentos;  e  chamase  dos  Mouros  Meçet^a. 
E  porque  huma  rainha  ha  pouco  tempo  que  acrecentou  esta 
cidade  em  huma  parte,  e  esta  rainha  se  chamava  Alcaire, 
por  isto  chamam  a  toda  a  cidade  o  Cairo:  a  qual  cidade, 
com  o  Turco  estar  em  Constantinopla,  sempre  se  despovoou 
em  alguma  maneira  (2).  E  porque  acabemos  os  tamarindos, 
vos  diguo  o  que  diz  António  Musa,  que  será  bem  desare- 
zoado  quem  não  amar  aos  Arábios  por  os  tamarindos.  E 
verdadeiramente  que  tem  rezam^  porque  eu  uzo  delles,  c 
nam  de  canajistola,  nem  manná,  nas  febres  muito  coléricas, 
e  isto  porque  por  serem  doces,  acrecentam  a  cólera,  e  não 
carece  isto  de  auctoridade,  pois  que  Avenrrois  o  manda  asi. 
E  este  preceito  usam  muyto  os  físicos  desta  terra,  que  não 
querem  dar  açucare  nas  febres  ardentes.  E  asi  diz  o  mesmo 
António  Musa,  que  craro  he  nam  ser  o  miraholano  de  Plí- 
nio, e  de  Dioscorides,  tamarindo;  porque  estes  não  tem 
caroços,  e  os  tamarindos  si;  e  também  reprende  Menardo, 
porque  reprende  a  Mesue,  e  diz  que  o  fenico  baiano  tem 
vertude  de  restinguir,  e  o  tamarindo  de  purgar:  e  também 
não  tinha  muita  razam  de  reprender  a  Mesue  em  dizer,  que 
era  frio  no  segundo  gráo,  porque  Avenrrois  o  põe  no  ter- 
ceiro*, porque  isto  podia  ser  erro  do  escritor,  e  também  al- 
guns livros  de  Mesue  dizem  que  he  no  terceiro.  E  com  isto 
diguo  que  ficam  os  tamarindos  com  sua  onra. 

RUANO 

Nam  se  enfade,  se  lhe  perguntar  huma  cousa  que  me  disse 
este  vosso  ortelam. 

ORTA 

Se  disse  que  durmiam  de  noite  acolhidos  com  as  folhas, 
por  causa  do  frio,  dissevos  verdade;  porque  de  noite  eu  os 
vi  ajuntados  e  metidos  dentro  das  folhas;  e  de  dia  se  des- 
encerram  e  abrem,  e  saem  fora  das  folhas  (3). 


*  Avenrois,  5  Coliget  (nota  do  auctor). 


Dos  tamarindos  325 

Nota  (i) 

O  «tamarindo»  ou  tamarindeiro  é  uma  grande  arvore  da  familia  das 
Leguminosce,  Tamariíicivií!»  inclica,,  Linn.,  muito  conhecida 
e  commum  por  toda  a  índia.  É  espontânea  na  Africa,  Kordofan,  Abys- 
sinia  e  outras  regiões;  segundo  parece,  também  em  parte  da  índia 
meridional,  tendo-se  sobretudo  espalhado  depois  pela  cultura  e  plan- 
tação; e  alguns  dizem,  que  igualmente  no  Yemen,  de  modo  que  Orta 
não  tinha  talvez  rasão  em  negar  absolutamente  a  sua  existência  em 
algumas  provindas  da  Syria  e  Palestina.  Os  nomes  vulgares,  citados 
no  Colóquio,  são  exactos  e  de  fácil  identificação : 

—  O  do  Malabar  «puli»,  é  o  nome  tamil /«//,  o\i  poolie,  como  es- 
creve Ainslie  na  sua  orthographia  ingleza. 

— O  guzerate  «ambili,»  corresponde  ás  designações  modernas  am- 
blie  ou  atnli,  e  vem  do  sanskrito  ^f^^TT,  amlikã. 

— O  árabe  «tamarindi»,  ^^^JJJSj^sJ',  tamar-hindi,  significa  effectiva- 
mente  tâmara  da  índia,  sendo  uma  das  designações  mais  geralmente 
usadas  no  Oriente,  e  da  qual  veio  a  palavra  tamarindo. 

Este  nome  de  tâmara  da  índia,  dado  áquelle  fructo  pelos  árabes, 
sem  grande  rasão,  e  por  uma  similhança  remota  da  polpa  dos  dois 
fructos,  foi  depois  a  origem  de  todas  as  confusões,  a  que  se  refere  o 
nosso  escriptor.  Não  conhecendo  a  arvore,  e  guiados  unicamente  pelo 
nome  árabe,  os  auctores  de  matéria  medica,  anteriores  a  Orta,  admit- 
tiram  gratuitamente  que  o  fructo  fosse  produzido  por  uma  espécie  de 
palmeira  brava  da  índia.  Os  nomes  usados  então,  por  exemplo,  os  dos 
livros  da  escola  de  Salerno,  oÇutpoívua,  ou  dactyli  acetosi,  traduzem  esta 
idéa,  com  a  indicação  naturalmente  de  que  a  polpa  do  tamarindo  era 
mais  acida  que  a  das  tâmaras.  Não  foi  difficil  a  Orta  explicar:  primeiro 
que  o  Tamarindus  indica  differia  totó  ccelo  de  qualquer  espécie  de  pal- 
meira; depois,  para  reforçar  o  seu  dito,  que  as  espécies  de  Phcenix  da 
índia  não  produziam  fructo  comestivel,  e  as  tâmaras  da  Phoenix  dacty- 
lifera  eram  ali  importadas  em  notável  quantidade  da  Arábia  e  da  Me- 
sopotâmia. Como  nota  Dymock,  a  correcta  descripção  de  Garcia  da 
Orta  veiu  desfazer  aquelle  erro,  em  que  tinham  laborado  durante  toda 
a  idade  media. 

A  polpa  dos  tamarindos  é  extremamente  apreciada  nas  regiões  quen- 
tes, para  preparar  conservas  e  também  bebidas  refrigerantes.  Tem,  alem 
d'is50,  todos  os  empregos  medicinaes,  mencionados  pelo  nosso  medico, 
sendo  considerada  digestiva  e  laxante,  ou,  segundo  dizem  os  mahome- 
tanos,  boa  para  «purgar  o  systema  de  bilis  e  humores  adustos»,  o  que 
lembra  a  phrase  de  Orta :  «digere  e  evacua  o  humor  colérico,  e  in- 
cide e  corta  o  freimatico-).  E  igualmente  conhecida  ainda  hoje  na  índia 
a  applicação  externa  dos  emplastros  das  folhas  d'esta  arvore  no  tra- 


326     Colóquio  qiiinquagesimo  terceiro  dos  tamarindos 

tamento  das  dores  e  inflammações.  É,  pois,  muito  completa  e  muito 
exacta  a  therapeutica  do  tamarindo  do  nosso  escriptor,  e  unicamente 
omittiu  alguns  usos  medicinaes  das  sementes,  de  resto  pouco  impor- 
tantes. 

Muitos  annos  antes  de  Orta,  o  portuguez  Thomé  Pires  havia  men- 
cionado a  abundância  de  tamarindos  n'aquellas  partes  orientaes,  e  o 

seu  baixo  preço :  « he  mercadoria  nestas  partes,  usa-se  em  lugar 

de  vinagre;  valem  casy  de  graça». 

(Cf.  Pharmac,  197;  Dymock,  Mat.  med.,  270;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i, 
425;  Thomé  Pires,  Carta,  na  Ga^.  de  Pharmacia,  40.) 


Nota  (2) 

A  pequena  digressão  histórica  do  nosso  escriptor  é  bastante  exacta. 
A  celebre  Memphis,  sobre  cuja  exacta  situação  se  disputou  largamente, 
não  ficava  em  todo  o  caso  longe  do  Cairo,  e  não  muito  distante  tam- 
bém das  pyramides.  O  antigo  Cairo  tinha  o  nome  de  «Meçera»  ou  an- 
tes Missr  ou  iMiçr,  que  se  applicava  igualmente  ao  Eg)'pto  em  geral, 
e  Edrisi  deriva  do  nome  de  Miçraim,  filho  de  Cham,  fiJho  de  Noé. 
Chamava-se  também  aquella  cidade  el-Fostat,  ou  a  tenda,  porque  se 
dizia  construída  em  volta  da  tenda  de  campanha,  que  ali  plantou  um 
dos  primeiros  conquistadores  mussulmanos,  Amr-ibn-el-Aci.  Quanto 
ao  novo  Cairo,  fundado  muito  depois  junto  de  Miçr,  datava  do  tempo 
do  quarto  Khalifa  fatimita,  e  o  seu  nome  não  se  prende  ao  de  uma 
rainha,  mas  parece  ser  simplesmente  El-Kahirah,  a  victoriosa. 

O  «Turco»  não  havia  passado  para  Constantinopla;  mas  o  Egypto 
independente  dos  Mameluks  fora  sujeito  ao  império  Ottomano,  cuja 
capital  era  Constantinopla,  uns  quarenta  e  tantos  annos  antes  de  Orta 
escrever;  e  isto  naturalmente  diminuíra  a  importância  do  Cairo. 

(Cf.  Niebuhr,  Voyage  en  Arabie,  i,  82;  Edrisi,  Géogr.,  i,  Soo;  Noel 
des  Vergers,  Arabie,  462.) 

Nota  (3) 

Orta  refere-se  aos  movimentos  de  somno  e  vigilia  das  folhas  com- 
postas do  Tatnarindus  indica,  como  já,  em  um  dos  Colóquios  anteriores, 
se  havia  referido  aos  movimentos  provocados  das  folhas  do  Biophy- 
tum  sensitiyum. 


COLÓQUIO  QUINQUAGESIMO  QUARTO 

DO  TURBIT  • 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA,  MALUPA  FÍSICO  DE  GOA 

RUANO 

O  quantas  vezes  ouvi  dizer,  em  cidades  muyto  notáveis 
de  Espanha,  que  deixavam  de  fazer  diafinicam  e  outras  con- 
feições por  falta  de  turbit;  outros  diziam  que  nam  era  ver- 
dadein,  por  ser  negro  e  nam  gomoso;  outros  diziam  que 
o  tiirbii  dos  Arábios  he  hum,  e  o  dos  Gregos  outro;  e  que 
o  dos  Arábios  se  chamava  tiirbit  e  o  dos  Gregos  tripolio. 
E  estes  r.omes  dizem  que  os  tiram  de  Dioscorides;  e  pêra 
fazer  a  sua  boa,  emmendam  os  textos  antiguos,  castigam  a 
Plinio,  e  dam  a  culpa  destes  errores  a  Teodoro  Guaza*.  E 
certo  que  he  huma  piedade  ver  quanto  trabalho  levou  Lioni- 
ceno  doutíssimo,  e  Menardo  e  outros  em  achar  este  turbit 
em  Dioscorides,  ou  Plinio,  o  qual  se  não  pode  achar  senão 
quando  se  achar  o  corno  de  Amaltea,  ou  a  cidade  de  Pla- 
tam**.  Outros  mais  modernos  querem  concertar  os  Gregos 
com  os  Arábios,  desejando  elles  mesmos  serem  entre  si  de- 
ferentes. Peçovos  muito  por  mercê  que  me  tireis  deste  tra- 
balho, dizendome  os  nomes  arábios,  e  os  desta  terra  onde 
a  planta  nasce.  E  se  puder  ser  que  o  eu  veja,  seria  pêra  mim 
cousa  de  grande  preço.  E  asi  me  aveis  de  dizer  quanto  se 
aproveitam  delle  os  físicos  desta  terra,  e  se  usam  muyto  ou 
pouquo  delle. 

ORTA 

Dizervosei,  senhor,  tudo  o  que  sei,  porque  conheço  muito 
bem  este  simple,  e  vi  a  frutice  que  o  dá,  quando  he  verde. 


*  Theodoro  Gaza,  o  antigo  traductor  de  Theophrasto. 

**  Porque  as  cousas  que  se  não  podem  achar  são  estas  que  diguo, 
porque  nunç.a  as  vio  pessoa  alguma  (nota  do  auctor). 


328  Colóquio  quinquagesimo  quarto 

c  as  flores  •,  e  por  aqui  vereis  vós  mesmo  o  que  aveis  de 
responder  a  estes  modernos  escritores,  ou  a  quem  vos  com 
elles  aleguar,  se  he  este  o  turbit  dos  Gregos  ou  nam.  E  diguo 
que  ao  que  nós  chamamos  turbit,  chamam  com  o  mesmo 
nome  os  Arábios,  e  Persas  e  Turcos;  posto  que  Andreas 
Belunense,  no  texto  emmendado,  o  chama  terbet;  porém  os 
físicos  letrados  destas  nações  todos  os  mais  chamam  turbif, 
e  nam  terbet.  E  os  Guzarates,  onde  ha  o  mais,  o  chamam 
barcamarn.  E  os  Canarins  destas  terras  de  Goa  o  charram 
tiguar.  E  nasce  na  frol  da  terra,  quero  dizer  que  não  tem 
a  raiz  profunda,  e  he  pequena,  e  o  tronquo  delia  he  jomo 
hum  dedo  de  comprido,  e  ás  vezes  mais  grosso,  e  Jaz  jlo  lon- 
guo  da  terra  deitado  como  era*;  porque  o  principio  do  tron- 
quo ou  ramo  he  o  bom;  e  como  se  vai  adelgaçando  e  se 
enche  de  folhas  não  tem  a  feiçam  de  turbit,  nem  he  bom, 
nem  faz  a  guoma  senam  perto  da  raiz,  que  he  o  próprio  páo, 
e  esta  raiz  vem  ás  vezes  com  o  mesmo  turbit.  E  as  folhas 
e  flores  sam  como  de  malva  francesa;  e  não  se  mudam  as 
flores  três  vezes  no  dia,  como  alguns  dixeram.  O  sabor  do 
tronquo,  e  ramo  e  folhas  he  insípido,  quando  se  colhe;  e 
nasce  nas  terras  marítimas,  mas  não  mu3^to  perto  do  mar. 
Eu  o  vi  duas  legoas  do  mar  e  três,  em  cabo  onde  a  maré 
chea  lhe  não  chegua,  como  alguns  dixeram  que  lhe  avia  de 
cheguar.  O  mais  delle  nasce  em  Cambaiete,  e  Çurrate  e  Dio, 
e  Baçaim  com  suas  comarcas.  Também  ha  algum  em  Goa, 
mas  não  o  tem  os  físicos  da  terra  por  bom,  nem  querem 
usar  delle,  senam  do  Guzarate.  E  dali  o  levam  em  muyta 
cantidade  pêra  a  Pérsia,  e  Arábia  e  Turquia,  e  pêra  Por- 
tugal alguma  cantidade  pouca;  posto  que  eu  mandei  40  quin- 
taes,  quando  fíz  as  droguas  pêra  elrey,  e  ouvese  por  muyta 
cantidade.  E  também  mo  pediram  no  Balagate  os  físicos  do 
Nizamoxa,  que  he  sinal  de  o  não  aver  nessa  terra,  ou  de 
não  ser  bom.  E  já  pode  ser  que  em  outras  partes  da  índia 
o  aja,  porque  se  não  semea,  e  nasce  per  si;  e  pôde  ser  que 


*  Isto  é,  como  a  Hera. 


Do  turbit  329 

se  a  gente  da  terra  fosse  mais  curiosa,  que  o  acharia.  E  al- 
gumas pessoas  me  dixeram  que  o  liavia  em  Bisnaguer  (que 
he  do  Guzarate  cemo  e  cincoenta  legoas);  mas  os  físicos 
daqui  de  Goa  me  dixeram  huns  que  o  levavam  a  Bisnaguer 
do  Guzarate,  e  outros  me  dixeram  que  o  avia  em  Bisnaguer, 
porém  que  não  era  tam  bom,  posto  que  o  avia,  e  que  também 
o  avia  em  Goa,  mas  que  não  era  bom,  nem  se  usava,  nem 
praticava  acerca  delles,  senão  o  de  Guzarate.  He  verdade 
que  o  que  viram  Mesue  e  Sarapio  e  Avicena  era  do  Guza- 
rate; porque  sempre  as  náos  que  vam  pêra  o  ponente  o  le- 
varam por  mercadoria.  E  vos  diguo  que  não  tem  o  ramo 
diviso  na  parte  alta,  senam  todo  he  cheo  de  folhas  e  flores, 
da  maneira  que  vos  dixe. 

RUANO 

Antes  que  vos  tragua  os  ditos  dos  escritores  Gregos,  e  La- 
tinos modernos,  quero  que  me  diguaes  como  soubestes  isto 
que  me  dizeis;  e  não  porque  eu  não  dê  inteira  fé  a  vossos 
ditos,  senão  porque  saiba  dar  rezam  de  mim  a  quem  vos 
não  conhecer. 

ORTA 

Tendes  rezam  no  que  dizeis ;  mas  sabei  que  quando  aquelle 
invencível  capitam  Martim  Afonso  de  Sousa  foy  com  40  ho- 
mens a  Dio,  por  mandado  do  soldam  Bhadur  (que  era  o 
mais  poderoso  rey  da  Mourama)  e  lhe  deu  com  tanto  risquo 
e  esforço,  e  saber  seu  a  cidade  de  Dio,  tam  nomeada  por 
todo  o  mundo,  eu  estava  com  elle;  e  desque  tivemos  o  pra^- 
me  de  elrey  de  fazer  a  fortaleza,  andava  eu  oucioso,  vendo 
a  opulência  e  trato  dessa  cidade;  e  estando  huma  tarde  no 
baiar  (a  que  nós  chamamos  praça  ou  feira)  asentado  á  porta 
de  hum  mercador  (aos  quaes  elles  chamam  Baneanes)  pasou 
por  sua  porta  huma  molher  com  hum  saco  de  tiirbit  já  seco, 
e  lho  vendia;  e  eu  como  conhecia  a  mezinha,  e  avia  ouvido 
dizer  que  dali  o  levavam  pêra  as  nossas  náos,  preguntei  ao 
Baneane  que  era  aquilo,  e  elle  me  dixe  que  era  te7~umbu,  e 
que  nós  e  os  Mouros  lhe  chamávamos  asi;  mas  que  os  Ma- 
ratas  (que  sam  os  Gentios)  lhe  chamavam  barcaman.  Eu 
lhe  preguntei  pêra  que  o  comprava,  e  pêra  que  aproveitava: 


33o  Colóquio  quinqitagesimo  quarto 

dixeme  que  aproveitava  pêra  purguar  o  ventre,  e  que  era 
ávido  por  boa  mezinha,  a  qual  levavam  pêra  a  Arábia,  e 
pêra  Ormuz  os  mercadores  nas  suas  náos.  E  elle  me  pre- 
guntou  se  lho  queria  comprar,  e  louvava  o  muyto,  dizendo 
que  o  oulhase,  e  com  isto  me  mostrava  a  guomosidade  delle, 
e  a  brancura.  E,  porque  eu  sabia  que  os  nossos  o  compra- 
vam, lho  comprei  eu,  scilicet,  cada  mão  por  huma  tangua, 
que  sam  6o  reais,  e  huma  mão  27  arráteis.  E  elle  paguou 
á  molher  muito  pouquo;  segundo  que  eu  despois  soube  de 
huns  Baneanes,  certo  que  dobrou  duas  vezes  comiguo  o  di- 
nheiro*. 

RUANO 

Eu  sam  contente  de  ser  esse  o  turbit  que  usamos,  e  cha- 
maremlhe  asi;  mas  como  soubestes  delles  que  os  signaes 
da  sua  bondade  era  ser  branco  e  guomoso,  senam  se  o 
soubestes  pelos  livros  nossos? 

ORTA 

Diguo  que,  pollos  nossos  livros,  soube  aquilo,  mas  nam  por 
mo  dizer  o  Baneane;  mas  falando  convosquo  a  verdade  vos 
afirmo,  que  não  sam  estes  signaes,  senão  de  ser  turbit,  e  não 
porque  nam  possa  ser  o  turbit  sem  guoma  tam  bom  como  o 
guomoso,  porque  a  guoma  se  causa,  porque  o  retorcem  ou  o 
picam  os  que  o  colhem,  quando  he  verde,  pêra  que  guome- 
fique  ou  lance  goma;  porque  sabem  que  he  sinal  por  onde 
distinguimos  o  bom  do  mao.  E  isto  soube  eu  despois;  porque 
tinha  um  parente  físico  em  Baçaim  cidade  nossa,  que  dista 
de  Dio  por  5o  léguas  por  mar,  e  disseme  que  o  fora  colher 
com  os  Indianos  muitas  vezes,  e  que  elles  no  principio  o 
torciam  ou  cortavam  ou  picavam,  e  que  dahi  a  alguns  dias 
o  colhiam,  e  o  achavam  cheo  de  guoma,  e  que  elle  fez  que 
nam  torcessem  nem  cortassem  algum  outro,  e  que  despois 


•  Sobre  as  causas  que  levaram  a  Dio  Martim  AfFonso  de  Sousa  e 
Garcia  da  Orta,  pôde  ver-se,  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  pag.  92 
e  seguintes. 


Do  turbtt  33 1 

não  o  achava  com  guoma,  e  que  a  algum  destes  achava 
muito  pouca. 

RUANO  ♦ 

Loguo  tam  bom  he  o  guomoso,  como  o  outro;  pois  he 
huma  mesma  pranta? 

ORTA 

Tendes  nisso  muita  rezam;  porque  a  goma  lhe  fica  dentro; 
e  também  vos  diguo  que  algum  turbit  será  guomoso  sem 
lhe  fazer  as  torceduras  ou  golpes  nelle;  mas  gomefica  mais 
facilmente;  e  mais  a  nossa  eleiçam  que  nelle  fazemos,  deu 
aos  Indianos  ocasiam  pêra  o  torcer;  e  isto  sem  duvida  he 
verdade. 

RUANO 

E  como  he  o  preto  ruin  e  o  branco  bom,  que  he  huma 
das  condições  da  sua  bondade? 

ORTA 

He  costume  dos  boticairos  da  índia  (a  quem  chamam  os 
índios  guandis)  secálo  ao  sol,  dizem  que  secálo  á  sombra 
o  faz  preto.  E  dahi  o  tomaram  os  nossos  boticairos,  e  por 
experiência  se  acha  isto  do  modo  de  secar  esta  mezinha.  E  já 
pode  ser  que  o  que  for  preto  por  ser  seco  com  a  sombra 
seja  milhor,  mas  até  o  presente  não  o  esprementei. 

RUANO 

E  usam  os  físicos  Indianos  deste  turbit  pêra  purguar  a 
freima  ? 

ORTA 

Senhor,  si;  e  pêra  isto  quero  chamar  o  físico  que  nesta 
terra  me  parece  milhor,  pêra  diante  de  vossa  mercê  lho  per- 
guntar. Moça,  chama  a  Malupa*. 

SERVA 

Aqui  vem  todos  as  manhans  a  curar  estas  negras :  e  eilo 
sobe. 


*  Sobre  os  «íisicos  indianos»,  veja-se  a  nota  ao  Colóquio  36  (ii,  146). 


332  Colóquio  quinquagesimo  quarto 

ORTA 

Malupa,  dizei  aqui  ao  senhor  doutor,  se  usaes  nestas  terras 
do  turbit;  e  pêra  que;  e  se  lhe  mesturaes  gengm^e;  e  de  qual 
terra  he  milhor. 

MALUPA 

Si:  usamos  delle  pêra  purguar  a  freima  e  o  gengivre  ás 
vezes  lho  mesturamos;  e  he  quando  não  ha  febre;  e  isto  do 
mesturar  do  gengivre  também  o  mesturamos  em  outras  me- 
zinhas purgativas,  mas  outras  vezes  o  damos  sem  o  gen- 
givre. E  o  milhor  turbit  he  o  de  Cambaia,  e  de  Cambaia 
o  levam  a  algumas  partes  da  índia.  E  já  eu  mostrei  o  turbit 
desta  terra  ao  senhor  doutor,  que  presente  está:  mas  di- 
guovos  que  nós  ás  vezes  curamos  com  o  de  Goa,  e  mais 
não  o  ha  senão  perto  do  mar;  posto  que  já  me  dixeram  que 
o  avia  em  Bisnaguer,  mas  que  nam  fazia  boa  obra. 

ORTA 

Dizvos  mu3^ta  verdade ;  porque  o  Nizamoxa  me  pedia  este 
turbit  de  Cambaia,  e  eu  lho  mandava  do  que  de  lá  vinha; 
e  comtudo  pôde  ser  que  o  aja  dentro  no  sertam,  e  que  se 
não  ache  polia  pouqua  curiosidade  da  gente,  que  a  lingoa 
de  vaca  (de  que  carecemos),  e  o  fumus  terras,  vi  eu  já  em 
o  Balagate.  E  vós  ivos  com  Deos,  Malupa,  e  dizei  a  este  se- 
nhor daqui  em  diante  o  que  sabeis  destas  mezinhas. 

MALUPA 

O  doutor  Orta  as  sabe  milhor  que  nós  todos,  porque  nós 
sabemos  as  dos  Gentios  somente,  e  elle  sabe  as  dos  Cristãos 
e  Mouros,  e  Gentios  milhor  que  nós  todos.  E  beijo  as  mãos 
de  vossa  mercê. 

ORTA 

Este  índio  vos  diz  na  retificaçam  verdade;  porque  Rasis* 
não  o  retifica  com  gengivre,  senam  com  óleo  de  amêndoas 
doces,  por  temor  da  escoriaçam  que  pode  fazer. 


*  Rasis,  8,  ad  Almansorem  (nota  do  auctor). 


Do  tiirbit  333 

RUANO 

Aguora  venhamos  á  examinaçam  dos  escriptores.  E  co- 
meçando por  os  Arábios,  pois  nisto  falaram  mais  certo, 
como  vós  dizeis,  tendo  os  Greguos  a  sabedoria  e  a  inven- 
çam  das  boas  letras. 

ORTA 

Nam  vades  mais  avante,  porque  não  diguo  mal  dos  Gre- 
guos, por  serem  inventores  das  boas  letras,  como  dizeis; 
mas  também  sam  inventores  de  muytas  mentiras,  e  muito 
mal  acustumados,  e  efeminados  em  seus  costumes:  e  Roma 
desque  os  recebeo  em  si,  recebeo  muytas  más  cousas.  E 
comtudo  não  diguo  eu  mal  delles,  no  que  escreveram  que 
avia  em  suas  terras,  senão  o  que  escreviam  das  ignotas  a 
elles",  porque  ali  encheram  os  livros  á  sua  vontade;  como 
se  pode  exemplificar  nas  cousas  que  da  índia  escreveram, 
tam  fabulosas;  mas  afirmovos  que,  nestas  terras  da  índia, 
souberam  mais  os  Arábios;  e,  por  milhor  dizer,  erraram 
menos  que  os  Greguos.  E  ora  vinde  com  vossas  contradi- 
ções^ pêra  que  milhor  se  examine  a  verdade. 

RUANO 

Mesue  diz  que  tem  as  folhas  semelhantes  ás  da  fabula, 
excepto  que  sam  mais  pequenas,  e  que  he  das  plantas  que 
tem  leite;  e  que  o  ha  domestico  e  silvestre,  grande  e  pe- 
queno, e  branco  e  preto,  e  citrino;  e  que  nasce  nos  luguares 
mais  secos  por  a  grossura  do  seu  leite;  e  que  tem  sete  pro- 
priedades, branco,  e  vácuo,  arundinoso,  ou  semelhante  á 
cana,  gomoso,  e  que  tem  a  corteza  cor  de  cinza,  e  que  he 
plano,  e  que  facilmente  se  quebra,  scilicet,  novo,  e  que  o 
grosso  nam  he  bom. 

ORTA 

O  senhor  Mesue  falou  o  melhor  que  lhe  pareceo,  e  foy 
de  ouvida;  e  por  isto  não  acertou  em  tudo;  porque  as  fo- 
lhas não  sam  semelhantes  ás  áa ferida,  senão  ás  da  bismaha 
(a  que  chamam  os  Portuguezes  malva  francesa)  nem  tem 
leite;  nem  o  ha  domestico,  senam  todo  he  silvestre;  ha  o 
grande  e  pequeno,  como  diz;  branco  e  amarelo  e  preto, 


334  Colóquio  quinquagesimo  quarto 

mas  não  que  o  seja  asi  do  seu  nacimento,  senão  o  que  he 
mal  curado  não  he  branco,  e  nasce  em  cabos  húmidos  e 
secos,  e  mais  húmidos  que  secos;  e  não  em  secos,  como  elle 
diz  por  causa  do  seu  leite;  e  por  ser  branco  e  guomoso  nam 
he  milhor,  como  antes  vos  dixe;  nem  he  feito  como  cana; 
nem  a  corteza  he  cinzenta,  nem  muyto  plana,  senão  encres- 
pada ou  franzida  e  parda;  e  o  novo  he  bom,  mas  nam  he 
frangibil,  senão  depois  de  seco;  e  também  diz  que  o  grosso 
nam  he  bom,  e  isto  he  dito  sem  rezam;  antes  parece  que 
terá  mais  vertude,  se  não  for  podre. 

RUANO 

E  que  vos  parece  Avicena*,  que  diz  que  a  sua  reitificaçam 
toda  que  he  esfregandolhe  a  corteza  pêra  que  não  fique  cin- 
zenta, senam  branca? 

ORTA 

Diguo  que  isso  he  bom  pêra  o  vender  somente,  e  não 
pêra  mais. 

RUANO 

Serapio**  diz,  por  autoridade  de  Dioscorides  e  de  outros 
mu3'tos,  algumas  cousas,  scilicet,  que  nasce  na  praia  e  nos 
lugares  que  o  mar  cobre  com  a  maré  chea  somente,  e  nam 
com  a  vazia,  que  com  ella  baixa  nam  he  tocado,  e  que  tem 
a  folha  semelhante  á  planta  chamada  arasidis,  e  sam  mais 
grossas  as  folhas,  e  diz  que  tem  o  tronco  longuo  dous  pal- 
mos, e  que  se  divide  no  mais  alto,  e  que  muda  a  frol  três 
vezes  no  dia,  scilicet,  de  manhan  he  branca,  e  ao  meo  dia 
roxa,  e  á  noite  vermelha;  e  que  a  raiz  he  odorífera,  e  que 
quando  se  mastigua  esquenta  a  linguoa,  e  que  aproveita 
contra  a  peçonha,  assi  como  qualquer  mezinha  outra  be:[e- 
darica.  Destas  cousas  e  outras  traz  autorisadas  por  Galeno, 
trasladado  por  Albataric  e  por  outros  Arábios  muytos. 


*  Avicena,  2,  cap.  709  (nota  do  auctor);  aliás  71 1  da  edição  de  Rinio. 
**  Serapio,  cap.  33o  (nota  do  auctor). 


Do  tiirbit  335 

ORTA 

Já  VOS  disse  que  o  tiirbit,  eu  o  vi  nascer  perto  do  mar;  mas 
não  tam  perto  que  o  toque  o  mar  com  maré  vazia  nem  chea, 
porque  nasce  ás  vezes  duas  leguoas  do  mar,  onde  nam  es- 
praia o  mar;  nem  tem  a  folha  semelhante  á  folha  da  pranta 
dita  arasentis,  nem  a  ahisatis  dita  como  emenda;  e  hum  mo- 
derno diz  como  bismalva,  nem  porque*  he  como  a  dos  muv- 
tmhos  (como  diz  Lioniceno);  pois  sam  tam  deferentes  da 
bismalva.  E  o  tronco,  como  diz,  he  de  dous  palmos,  porém 
ás  vezes  menor,  e  outros  ha  de  oito  e  de  dez  palmos;  e 
porém  a  frol  nam  se  muda  três  vezes  no  dia,  senam  sempre 
he  mesturada  de  branca  e  roxa,  e  ás  vezes  branca;  e  a  raiz 
não  he  odorífera;  nem  mordica  a  linguoa;  nem  nós  usamos 
da  raiz,  senam  do  páo  que  está  com  as  folhas  estendidas 
no  cham,  como  a  era;  nem  a  vi  em  algum  tempo  usar  contra 
o  veneno;  nem  eu  o  experimentei,  e  o  que  vos  disse  vi  com 
os  olhos. 

RUANO 

Dioscorides  diz**,  íd\3.náo  áo.  pitiusa,  que  he  huma  especia 
dos  laticínios,  ou  de  ervas  que  deitam  leite,  que  parece 
que  he  tin^bit.  E  assi  o  sentem  alguns  modernos;  e  também 
dizem  que  he  tripolio,  do  qual  fala  Dioscorides***,  e  he  tres- 
ladado  ao  pé  da  letra  de  Serapio.  E  Autuario,  doutor  grego 
e  de  autoridade,  diz  também  <\mq.  pitiusa  he  tiirbit,  scilicet, 
que  o  ha  branco  e  preto;  e  diz  que  falsamente  usam  alguns, 
por  hesula,  tiirbit preto,  e  também  he  deste  parecer  Mateolo 
Senense.  Asi  diz  o  mesmo  que  alipium  he  tiirbit,  e  alipia 


*  Esta  palavra  deve  estar  a  mais,  e,  supprimindo-a,  a  phrase  fica  mais 
clara. 

*  *  Dioscorides,  Lib.  4,  cap.  148  (nota  do  auctor) ;  aliás  cap.  i63,  edição 
Sprengel.  Diz  eíFectivamente,  que  á  raiz  da  pytiusa  chamam  toúçwtít; 
mas  esta  phrase,  que  só  se  encontra  na  edição  Aldina,  parece  a  Spren- 
gel suspeita  de  intercalação  posterior. 

***  Dioscorides,  Lib.  4,  cap.  124  (nota  do  auctor);  aliás  i33  da  edi- 
ção Sprengel. 


336  Colóquio  quinqiiagesimo  quarto 

he  a  semente  delle;  e  que  isto  elle  Mateolo  nam  o  crê,  por- 
que não  tem  semente  o  turhit;  e  mais  porque  purgua  a  me- 
lancolia, e  o  turbit  purgua  a  freima.  E  os  Frades  dizem  o  mes- 
mo que  os  modernos  e  António  Musa;  e  teem  porém  que  he 
verdade  o  que  dizem  do  tripolio  Dioscorides  e  Galeno,  e 
Plinio*:  e  dizem  que  tem  o  turbit  de  Serapiam;  e  por  isto  que 
parece  ser  tudo  hum**.  E  afirmam  mais  estes  reverendos  Pa- 
dres, que  o  turbit  que  nas  boticas  se  vende,  nam  he  o  turbit 
de  Mesue;  e  que,  os  que  o  colheram  com  suas  próprias  mãos 
lho  dixeram,  porque  nam  tinha  as  folhas  das  beldroegas. 
E  também  concede  que  o  turbit  de  Mesue  nam  he  tapsia, 
e  que,  com  seu  dano  o  esprementou,  porque  alimpandoo  e 
escarvandoo  se  lhe  incharam  as  mãos  e  a  face.  E  portanto 
que  não  se  ha  de  deitar  por  turbit;  e  mais  também  diz  que 
o  turbit  que  se  traz  de  Apulha  he  a  verdadeira  tapsia,  e  tem 
grandes  raizes;  e  que  se  não  ha  de  administrar,  senam  seis 
mezes  despois  de  colhido,  nem  quando  he  comido  do  bicho. 
Estes  cousas  e  outras  muytas,  que  nam  fazem  ao  meu  pre- 
posito,  dizem  muytos  escritores  modernos,  e  bem  ornadas: 
ás  quaes,  pois  as  ouvistes,  respondei  o  que  vos  parecer; 
pois  que  he  bem  darvos  fé,  como  a  quem  he  testemunha 
de  vista.  ^ 

ORTA 

Todas  essas  cousas  que  dizeis,  e  outras  muitas  li  já;  e 
o  que  a  isso  vos  respondo  he,  que  as  ervas  e  plantas  lati- 
cinaes  sam  muytas,  e  todas  as  mais  sam  venenosas.  E  das 
nossas  e  desoutras  muytas  he  chea  esta  terra  da  índia  e  a 
da  Europa.  E  quis  Deus  que  a  terra,  por  o  pecado  do  pri- 
meiro padre,  as  desse,  e  comtudo,  por  a  misericórdia  di- 
vina, ainda  que  sejam  venenosas,  aproveitam  pêra  alguma 
cousa  algumas,  e  outras  sam  puro  veneno,  sem  lhe  sabermos 
o  pêra  que  aproveita.  E  eu  daria  exemplo  em  muytas  nesta 


»  Plínio,  Lib.  26,  cap.  7  (nota  do  auctor) ;  aliás  cap.  22,  edição  Littré. 

*  *  Assim  se  pode  talvez  reconstruir  a  phrase  da  edição  de  Goa,  que 
está  extremamente  errada  e  incorrecta. 


Do  turbit  337 

terra,  e  em  Portugal;  e  a  que  chamam  esula*  ou  alfebr^an 
os  Arábios  e  nós  esula  he  poçonhenta,  que  onde  cáe  ou  seu 
çumo  ou  leite,  incha  muyto,  como  eu  vi  já  muytas  vezes 
em  Portugal.  E  cá  nestas  partes  ha  humas  plantas  com  que 
tapam  e  valam  as  ortas,  que  fazem  o  mesmo  deitando  leite 
de  si;  e  o  mesmo  fazem  huma  especia  de  tnangas  bicavas  (i). 
E  por  esta  rezam  os  antigos  escreveram  sete  especias  de 
laticínios,  e  afora  estas  avia  outras  mu3^tas  ignotas.  Cá  na 
índia  ha  outras  muytas,  com  que  purgam  os  físicos  da  terra 
e  curam  algumas  enfermidades;  e  huma  destas  he  o  turbit, 
pois  não  tem  leite,  e  se  tem  algum,  he  muyto  pouco,  e  não 
he  mezinha  venenosa,  e  purga  sem  moléstia  nem  trabalho; 
e  tomam  o  cá  os  índios  em  caldo  de  frangão,  ou  em  aguoa 
em  maior  cantidade  do  que  o  nós  tomamos,  nem  em  Por- 
tugal nem  cá,  e  não  incha  as  mãos  e  o  rosto,  tocando  o 
como  fez  o  turbit,  que,  por  autoridade  dos  Frades  disestes; 
se  não  seria  essa  especia  de  laticinio,  como  esula,  e  daqui 
tomareis  que  não  he  esula  este  turbit,  nem  tripolio,  nem 
pitiusa^  nem  hisiatis,  nem  alipium,  nem  alipia  sua  semente, 
pois  o  turbit  não  tem  semente ;  e  porque  nam  tem  as  folhas 
semelhantes  á  ferula,  nem  á  beldroega,  nem  ao  inurtinho, 
nem  nasce  tam  perto  do  mar,  que  o  cubra  a  onda,  nem 
muda  a  frol  e  a  cor  três  vezes  no  dia,  como  dizem  esses 
Greguos.  Assi  que  por  essas  e  por  outras  muytas  causas, 
não  he  turbit  dos  Greguos,  nem  o  dos  Arábios  propriamente ; 
senão  estes  Arábios  viram  usar  de  turbit  á  sua  gente,  tra- 
zido da  índia,  e  quiseram  buscar  em  os  Greguos  alguma 
mezinha  que  se  lhe  parecese,  porque  davam  tanta  autori- 
dade aos  escritores  Greguos  como  isso;  e  a  causa  era  por 
serem  os  primeiros  escritores  nas  cousas  humanas,  porque 
nas  divinas  primeiro  escreveram  os  Hebreos.  Esta,  que  digo, 
foy  a  causa  por  onde  Serapiam  treladou  ao  pé  da  letra  o 
capitulo  de  tripolio  de  Dioscorides,  porque  lhe  pareceo  que 


*  Ésula,  nome  dado  a  varias  espécies  de  Euphorbia,  não  só  á  E. 
Esula,  como  a  outros.  / 


22 


338  Colóquio  quinqiiagesimo  quarto 

não  pudia  aver  mezinha  que  a  deixassem  de  escrever  os  Gre- 
guos;  e  certo  que  milhor  fizera  elle  de  me  fazer  um  capitulo 
do  que  delle  sabia  somente,  e  o  demais  o  tempo  o  fora  des- 
cubrindo,  como  aguora  o  faz,  mostrando  ser  mezinha  pró- 
pria desta  terra.  E  elle  dixera  que  o  tripolio  e  as  outras 
mezinhas  era  huma  especia  de  laticínio  a  elle  nam  conhe- 
cida, ou  conhecida,  se  a  sabia;  porque  nem  Dioscorides 
soube  tudo,  porque  elle  diz  muitas  vezes,  como  lie  fama. 

RUANO 

O  Laguna  tem  que  pitiusa  he  turbit  preto,  e  aliptum  he 
tm^bit  branco  e  bom. 

ORTA 

Já  vos  dixe  que  nenhuma  destas  mezinhas  he  turbit  branco 
nem  preto;  nem  he  esula,  porque  he  muyto  forte  laxativo, 
o  que  o  turbit  não  he;  nem  he  alipiwji,  porque  alipium  pur- 
gua  melancolia,  e  o  turbit  purga  somente  a  freima;  nem  he 
raiz  cheirosa,  nem  mordica  a  linguoa  o  turbit,  nem  he  se- 
melhante áferula,  nem  á  beldroega,  nem  ao  tnurtinho^  nem 
se  levanta  do  cham  covado  e  meo,  senão  está  ao  longo  da 
terra  estendido,  como  era;  asi  que  por  estas  razões  e  outras 
muytas  não  he  nenhuma  destas  mezinhas  apontadas  pollos 
modernos. 

RUANO 

E  O  turbit  que  se  traz  de  Apulha  não  he  turbit? 

ORTA 

Nam,  senão  algum  laticínio;  e  alguns  dizem  ser  a  verda- 
deira tapsia,  porque  tem  raizes  grandes;  e  o  turbit,  que 
usamos  nestas  terras,  tem  as  raizes  muito  pequenas,  e  do 
páo  usamos  somente. 

RUANO 

Dizem  estes  reverendos  Padres  boticairos,  que  se  não 
ha  de  usar,  senam  seis  mezes  depois  de  colhido,  e  também 
que  se  não  ha  de  usar  quando  está  comido  da  traça  ou 
bicho. 


Do  turbit  339 

RUANO 

O  derradeiro  he  craro  ser  verdade,  porque  esta  terra  he 
sujeita  á  putrefaçam  em  tanta  maneira,  que  não  se  pode 
o  ruibarbo  nem  outras  mezinhas  soster  os  quatro  mezes  do 
anno,  que  he  inverno,  que  sam  junho,  julho,  aguosto,  e  se- 
tembro. No  outro  que  diz  que  ha  de  estar  seis  mezes  sem 
se  usar  delle,  não  diz  bem,  porque  elle  colhese  em  novem- 
bro, dezembro  e  janeiro;  e,  se  estivesse  mais  de  seis  mezes, 
corromperseia.  Verdade  he  que  nas  terras  que  estam  dentro 
no  sertam,  não  se  corrompem  as  mezinhas,  como  nestas  que 
estam  na  fralda  do  mar.  E  levai  deste  simple  pêra  vós  que 
os  Gregos  totalmente  o  nam  conheceram,  e  que  nem  delle 
diseram  menos  mal,  ou  erraram  menos  que  os  modernos, 
que  dizem  que  não  sabem  conhecer  a  raiz,  que  em  nossos 
tempos  se  vende  por  tiirbit;  posto  que  isto  em  parte  he  ver- 
dade; porque  não  he  raiz  senam  páo;  e  daqui  em  diante 
não  lhe  chamamos  turpetum,  senam  turbit,  ainda  que  lhe 
chameis  bárbaro,  porque  o  turbit  com  seu  nome  próprio  se 
contenta.  E  cavalguemos,  que  he  oge  sábado,  e  hemos  de 
hir  à  Madre  de  Deos  (2). 

RUAIsO 

Muytas  cousas  me  leixaes  de  dizer,  por  serem  muyto  no- 
tas; e,  se  fossem  contadas  em  minha  terra,  seriam  aprazíveis 
pêra  as  ouvir:  por  isso  dessas  cidades  e  terras,  donde  nasce 
o  turbit  me  dizei,  scilicet,  de  Baçaim  e  Dio,  pois  sam  terras 
de  elrey  de  Portugal. 

ORTA 

Dio  he  huma  ilha,  que  em  si  contem  huma  cidade  de  hum 
bom  porto,  e  muito  fermoso  e  de  grande  trato,  e  concurso 
de  muytos  homens  mercadores.  Venezianos  e  Gregos,  e  Ru- 
mes e  Pérsios,  e  Turcos  e  Arábios,  a  qual  deu  o  gram  sol- 
dam Bhadur  a  Martim  Afonso  de  Sousa,  sendo  capitão  mór 
do  mar  da  índia;  e  ouve  delle  que  fizesse  ali  fortaleza  em 
huma  parte  de  Dio,  qual  elle  quizesse,  a  qual  elle  fez,  ou 
acentou  em  parte  que  estivesse  fortificada  por  mar  e  por 
terra.  E  depois,  per  muytas  traições  que  nos  fizeram,  per- 


340  Colóquio  quinquagesimo  quarto 

deram  a  cidade  e  a  ilha  toda,  da  qual  estamos  de  posse, 
muytos  annos  ha.  He  muito  grande  escala  e  forte  cidade, 
a  qual  defendemos  do  poder  do  gram  Turquo,  no  anno  de 
1539,  com  grande  esforço  de  pouquos,  que  estavam  dentro 
cercados.  E  depois,  no  anno  de  1546,  estando  de  cerquo 
sete  ou  oito  mezes,  e  sendo  arrasados  os  muros,  e  muyto 
pouquos  Portuguezes  dentro  e  doentes,  a  defenderem  ani- 
mosamente, até  que  o  governador  Dom  Joam  de  Crasto 
veo,  e  entrou  a  ilha  e  cidade,  e  deitou  fora  todos  os  Mouros, 
matando  grande  numero  delles  e  tornou  a  edeficar  outra 
maior  fortaleza.  E  porque  as  cousas  que  neste  cerquo  acon- 
teceram sam  muyto  bem  escritas  em  latim  e  em  portuguez, 
não  escrevo  mais  delias,  porque,  como  diguo,  sam  escritas 
em  melhor  estilo.  Huma  só  coisa  direi:  que  Dom  Joam  Maz- 
carenhas,  que  era  capitam  desta  fortaleza,  fez, neste  cerquo 
cousas  de  muyto  esforçado  capitam,  e  usou  de  muyta  in- 
dustria, e  saber  e  esforço,  e  manhas,  tendo  paciência  onde 
foy  necessário;  e  merece  tanto  ser  louvado,  que  eu  não  me 
estrevo  a  falar  nesta  matéria  mais*. 

RUANO 

Falai  de  Baçaim,  pois  he  cousa  mais  grossa,  ainda  que 
nam  he  tam  nomeada. 

ORTA 

He  Baçaim  huma  cidade  muito  grande,  e  debaxo  de  seu 
senhorio  contem  muytas  terras  e  cidades,  e  rende  a  elrey 
mais  de  100  e  sesenta  mil  cruzados  com  humas  terras  e  for- 
talezas, que  deram  depois  a  Francisco  Barreto,  as  quaes 
terras  chamam  Manorá**. 

Tem  em  huma  parte  huma  ilha  chamada  Salsete,  onde 
estam  dous  pagodes  ou  casas  de  idolatria  debaxo  da  terra; 


»  Os  successos  dos  dois  cercos  de  Diu  são  demasiado  conhecidos 
para  que  exijam  qualquer  palavra  de  elucidação. 

**  Sobre  as  terras  e  rendas  de  Baçaim,  veja-se  o  que  disse  em  Gar- 
cia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  pag.  259  a  276. 


Do  tiirbit  341 

hum  delles  está  debaxo  de  huma  serra  muyto  alta  de  pedra, 
e  será  maior  cantidade  que  a  fortaleza  de  Dio,  a  qual  se 
pôde  comparar  em  Portugal  a  huma  villa  de  quatro  centos 
vizinhos  cercados  i  tem  esta  serra  huma  subida  grande,  e 
chegando  á  serra  está  huma  casa  grande  de  pagode,  feita 
e  talhada  dentro  na  pedra,  onde  depois  edificaram  os  frades 
de  Sam  Francisco  huma  igreja,  chamada  de  Sam  Miguel. 
Ha  muytos  pagodes  de  pedra,  subindo  pêra  a  serra;  e  su- 
bindo mais  acima  tem  outras  casas  feitas  de  pedra,  e  dentro 
com  suas  camarás;  e  subindo  mais  acima  tem  outra  ordem 
de  cazas  feitas  dentro  na  pedra,  e  nessas  casas  tem  hum  tan- 
que ou  cisterna  da  agoa,  e  tem  canos  por  onde  lhe  vem 
agoa  da  chuiva,  e  mais  acima  vai  outra  ordem  de  casas  polia 
mesma  maneira  feitas,  Seram  por  todas  até  trezentas  casas, 
todas  tem  Ídolos  esculpidos  nas  pedras;  com  tudo  isso  sam 
mui  carregadas,  e  mal  asombradas,  como  cousas  que  foram 
feitas  pêra  o  diabo  ser  venerado  (3). 

Tem  outro  pagode  em  huma  parte  da  ilha,  que  chamam 
Maljaz;  a  qual  he  huma  casa  muyto  grande,  também  feita 
dentro  na  pedra;  e  tem  dentro  muytos  pagodes,  e  muyto 
mal  asombrados;  e  todos  os  que  entram  nestas  casas  dizem 
que  se  lhe  arepiam  as  carnes,  que  sam  muyto  medonhas  (4). 

Outro  pagode  milhor  que  todos  ha  em  huma  ilha  cha- 
mada Pori,  que  nós  chamamos  a  ilha  do  Elefante,  e  está  nella 
huma  serra,  e  no  mais  alto  delia  tem  huma  casa  debaixo  da 
terra,  lavrada  em  huma  pedra  viva,  e  a  casa  he  tam  grande 
como  hum  moesteiro,  e  dentro  tem  pateos  e  cisternas  de 
muyta  agoa  muyto  boa,  e  polias  paredes  ao  redor  ha  grandes 
imagens  esculpidas  de  elefantes,  e  leões,  e  tigres,  e  outras 
muytas  imagens  humanas,  asi  como  sam  amazonas,  e  de 
outras  muytas  feições  bem  figuradas.  E  certo  que  he  cousa 
muyto  de  ver  e  parece  que  o  diabo  pos  ahi  todas  suas  forças 
e  saber,  pêra  enguanar  a  gentilidade  com  sua  adoraçam.  E 
alguns  dizem  que  fizeram  isto  os  Chins,  quando  navegavam 
por  esta  terra.  E  bem  pôde  isto  ser  verdade,  segundo  vai 
tam  bem  fabricado,  e  segundo  os  Chins  sam  sutis.  Verdade 
he  que  aguora  está  muyto  danificado  este  pagode  com  gado 


342  Colóquio  quinqiiagesimo  quarto 

que  lhe  entra  dentro,  e  no  anno  de  trinta  e  quatro,  que  eu 
vim  de  Portugal,  estava  cousa  muyto  pêra  ver;  e  eu  o  vi, 
estando  Baçaim  de  guerra  comnosquo,  e  loguo  o  deu  elrey 
de  Cambaia  a  Nuno  da  Cunha  (5). 

RUANO 

De  que  pessoas  he  abitada  essa  terra  de  Baçaim? 

ORTA 

Os  Mouros  a  senhoreavam  primeiro,  e  aguora  ha  poucos 
nella,  somente  alguns  que  tratam  pollo  mar,  chamados  nai- 
tias,  como  se  dixesemos  mestiços  e  feitos  primeiramente  de 
Mouros,  que  vieram  de  fora,  e  se  mesturaram  com  os  Gen- 
tios desta  terra.  E  os  Gentios  sam  de  muytas  maneiras, 
scilicet:  os  que  lavram  e  semeam  a  terra  pêra  o  arroz  e 
outros  legumes;  estes  chamam  elles  curwnbins  e  nós  lavra- 
dores: e  os  que  nós  chamamos  ortelãos,  que  sam  os  que  cul- 
tivam as  ortas  e  pomares,  chamam  elles  malis:  ha  outros 
escrivães  e  contadores  (a  que  elles  chamam  parus)  que  re- 
cadam  as  rendas  de  elre}',  e  de  homens,  e  das  fazendas,  e  sam 
grandes  negociadores:  ha  outros  piães  de  armas:  ha  outros 
a  que  chamam  Baneanes,  que  sam  os  que  guardam  o  cus- 
tume  de  Pitágoras  mui  inteiramente.  E  ha  em  cada  povoa- 
çam  huma  gente  desprezada  e  avorrecida  de  todos,  e  não 
se  tocam  com  outros;  estes  comem  tudo,  e  as  cousas  mor- 
tas: a  estes  dá  de  comer  cada  povoaçam  do  comum,  sem 
se  tocar  com  elles;  o  seu  cuidado  he  limpar  as  çugidades 
das  casas  e  ruas;  estes  sam  chamados  deres  ou  fara:[es,  e 
servem  também  estes  de  algozes.  Ha  outros  mercadores  de 
buticas,  que  por  nome  sam  chamados  coareis,  e  no  reino 
de  Cambaiete  lhe  chamam  esparcis,  e  nós  os  Portuguezes 
lhe  chamamos  Judeus,  mas  não  sam,  senão  Gentios  que 
vieram  da  Pérsia,  e  tem  própria  letra  sua,  e  tem  muytas 
suprestições  vãas,  que  quando  morrem  os  tiram  por  outra 
porta,  e  nam  polia  que  se  servem;  tem  jaziguos,  onde  se 
deitam  quando  morrem,  e  nelles  estam  asentados  até  que 


Do  tiirbit  343 

se  desfazem;  olham  pêra  o  levame;  nam  se  circoncidam, 
nen  lhe  he  vedado  comer  porco,  e  helhe  vedado  comer 
vacc.  E  por  estas  causas  vereis  que  não  sam  Judeus.  Nem 
os  Judeus,  que  ha  nas  terras  do  Nizamaluco  que  confinam 
com  enas,  os  tem  por  Judeus;  fazem  estranhos  juramentos, 
que,  pcrque  não  fazem  ao  caso,  vos  não  conto. 

RUANO 

Não  me  leixeis  sospenso,  e  dizeimo  brevemente. 

ORTA 

Toma  huna  vaca  o  que  faz  juramento,  e  põe  no  cham 
de  huma  banda  da  vaca  aguoa,  e  da  outra  foguo,  e  toma 
hum  cotelo  na  mão,  e  diz  certas  palavras,  que  querem  dizer, 
que  asi  como  e;le  mata  aquella  vaca  com  ferro,  e  está  cer- 
cado de  agoa  e  foguo,  asi  este  elle,  e  asi  padeça,  se  jura 
falso.  Huma  cousa  ha  de  notar,  asi  nestes  homens  como 
em  outros,  que  nenhum  muda  o  officio  de  seu  pai,  e  todos 
os  da  casta  de  çapateiros  o  sam  .(6). 


Nota  (i) 


A  planta  leitosa,  com  que  habitualmente  na  índia  «tapam  e  valam  as 
ortas»,  é  a  Eiiplioi*t>ia,  Tivixealli,  Willd.,  tão  vulgarmente 
empregada  em  formar  sebes  vivas,  e  tão  conhecida  também  pela  abun- 
dância do  seu  látex,  que,  por  estas  duas  circumstancias,  os  inglezes 
lhe  dão  ali  o  nome  de  milk  hedge.  Esta  planta  é  igualmente  vulgar 
em  Angola,  pelo  menos  eu  creio  que  a  cassoneira,  empregada  ali  na 
formação  de  sebes  divisórias,  é  esta  mesma  espécie.  Julguei  esta  espé- 
cie africana,  e  introduzida  na  índia  pelos  portuguezes;  mas  a  passa- 
gem de  Orta,  indicando-nos  ser  ella  já  tão  commum  e  conhecida  no 
século  XVI,  lança  alguma  duvida  sobre  a  questão  (cf  Drury,  Use/ul 
plants  of  índia,  206;  Roxburgh,  Flora  Indica,  11,  470;  Plantas  úteis  da 
Africa  portuguesa,  248). 

Os  inglezes  chamam  hoje  rvild  mango  ao  fructo  da  Spondias 
janangrif er^7  Willd. ;  e  é  provável  que  fosse  já  a  manga  brava  dos 


344  Colóquio  quinquagestmo  quarto 

portuguezes.  A  planta  não  tem  propriamente  látex,  mas  um  sueco  re- 
sinoso amarellado.  / 

O  que  Orta  diz,  que  ali  existiam  muitos  «laticínios»,  é  perfeitarrente 
exacto,  e  a  índia  abunda  em  plantas  laticiferas  das  familias  day  Mo- 
rece,  Apocynecc,  Asdepidece  e  outras  (cf.  Drury,  1.  c,  408 ;  RosOurgh, 
1.  c,  45 1). 

Nota  (2) 

O  «turbit»  procede  da  Ipomaafi  Tixrpetliixm,  R.  Brown, 
uma  planta  rasteira,  scandente  ou  prostrada,  da  familia  dis  Convolvu- 
lacece,  bastante  frequente  em  parte  da  índia. 

Sob  o  nome  de  \7^^6\  triputã  e  vários  outros,  foi  esca  droga  men- 

cionada  pelos  escriptores  sanskriticos,  os  quaes  — secundo  diz  Dy- 
mock —  conheciam  já  duas  qualidades,  branca  e  prela,  isto  é,  sveta- 
triputa  e  krishna-triputa.  A  primeira  qualidade  era  a  única  aproveitá- 
vel; a  segunda  era  reputada  venenosa.  Parece  que  o  conhecimento  da 
droga  passou  da  índia  para  os  árabes,  assim  como  o  nome,  natural- 
mente muito  alterado  — o  que  succedeu  a  quasi  todos —  tomando  a 
forma  jo  ^  turbedh,  ás  vezes  transcripto  nos  livros  modernos  turbad 
ou  turbud.  Do  mesmo  modo  que  os  sanskriticos,  os  escriptores  arábi- 
cos distinguiam  também  uma  variedade  branca  e  outra  preta.  Se  esta 
distincção  resultava  unicamente  do  modo  de  preparar  a  raiz  e  caule, 
como  explica  o  nosso  escriptor,  ou  se  nos  tempos  antigos  se  designa- 
vam assim  drogas  de  procedência  diversa,  é  o  que  não  saberei  dizer. 
Do  arábico  veiu  o  nome  hoje  mais  vulgar  turbit,  ou  turbith,  latinisado 
em  turpethum.  Alem  d'isso,  a  droga  tem  na  índia  muitos  outros  no- 
mes, entre  os  quaes  não  encontro  cousa  parecida  com  o  «barcamam» 
e  o  «tiguar»  de  Orta,  que  ou  se  enganou,  ou  transcreveu  de  ouvido 
com  muita  incorrecção. 

A  planta,  é,  como  dissemos,  rasteira  ou  scandente,  com  o  porte  ca- 
racterístico de  quasi  toda  a  familia,  e  tem  folhas  de  forma  um  tanto 
variada,  mas  sempre  lobadas,  não  muito  mal  comparadas  ás  da  «malva 
franceza».  As  suas  flores  são  bastante  grandes,  e  muito  naturalmente 
não  mudam  de  côr  três  vezes  por  dia.  Esta  circumstancia  da  mudança 
de  côr  havia  sido  mencionada  por  Dioscorides  em  uma  planta,  muito 
diversa  d'esta  Ipomaea,  e  na  qual,  de  resto,  também  não  era  exacta, 
a  não  ser  talvez  em  algum  leve  cambiante,  que  ás  vezes  se  pode  dar 
da  manhã  para  a  tarde.  A  droga  consiste  na  raiz  e  parte  inferior  do 
caule,  cortados  em  bocados,  de  uma  côr  acinzentada  por  fora,  e  de 
um  branco  sujo  na  secção,  que  está  cheia  de  resina  pallida,  um  tanto 
amarellada.  Estas  qualidades  variam  um  pouco,  e  o  turbith  é  mais  ou 
menos  «branco»  e  «gomoso»  —  aquellas  circumstancias  em  que  tanto 
insiste  o  nosso  escriptor. 


Do  tiirbit  346 

O  tiirbith  é  considerado  pelos  médicos  indianos,  tanto  pelos  hakims 
mussulmanos  como  pelos  vydias  gentios,  como  sendo  um  dos  seus 
mais  poderosos  catharticos  ou  drásticos,  purgando  sobretudo  a  bilis  e 
o  humor  phleugmatico.  Costumam  juntar-lhe  algumas  substancias,  en- 
tre outras,  gengibre,  o  que  era  já  no  xvi  século  a  receita  do  Malupa 
do  Colóquio.  Ainda  hoje  o  turbith  parece  ser  muito  empregado  na  ín- 
dia; mas  não  foi  adoptado  em  geral  pelos  médicos  inglezes,  como 
succedeu  com  outras  drogas  indianas,  nem  tem  logar  official  na  Phar- 
macopoeia  of  índia.  Na  Europa  desappareceu  ha  muito  da  matéria  me- 
dica, na  qual  continuam  a  figurar,  como  catharticos  activos,  duas  drogas 
análogas  e  procedentes  da  mesma  familia  vegetal,  mas  de  qualidades 
superiores,  a  scammonea  e  a.  j alapa. 

Não  succedia  assim  no  tempo  de  Orta,  em  que  a  matéria  medica 
se  regia  pelos  preceitos  dos  árabes  e  pelas  formulas  de  Mesué;  e  o 
turbith  tinha  ali  um  logar  importantíssimo.  D'aqui  resulta  em  parte  o 
desenvolvimento  do  Colóquio,  pois  o  nosso  escriptor  quiz  tratar  com 
toda  a  largueza  de  um  medicamento  de  tão  grande  reputação.  Mas 
resulta  também  das  duvidas,  que  havia  em  relação  á  historia  da  droga, 
e  elle  quiz  esclarecer.  O  turbith  foi  absolutamente  desconhecido  dos 
gregos  e  dos  latinos;  mas  os  escriptores  ainda  do  tempo  de  Orta,  es- 
forçavam-se  á  porfia  pelo  encontrar  em  Galeno  e  Dioscorides,  enten- 
dendo que  isto  lhe  dava  auctoridade.  A  voga  que  hoje  tem  um  medi- 
camento por  ser  novo,  tinha-a  então  por  ser  velho. 

Orta,  que  devia  estar  de  bom  humor  ao  escrever  este  Colóquio, 
diverte-se  positivamente  á  custa  do  «doutíssimo  Lioniceno»,  e  dos  «re- 
verendos Frades  boticairos»;  e  toda  a  sua  discussão  abunda  em  boa 
critica  e  reflexões  judiciosas.  A  questão  é,  de  feito,  um  exemplo  ty- 
pico  das  discussões  de  textos  e  minúcias  em  que  se  compraziam  os 
commentadores  do  tempo.  Queriam,  por  exemplo,  que  a  pityusa  de 
Dioscorides  (uma  Euphorbia  da  Europa)  fosse  o  turbith,  unicamente 
porque  a  raiz  era  purgante,  e  em  uma  edição  se  achavam  intercala- 
das as  palavras  ív  )c«Xojci  ■:o^^r.i-.  A  identificação  com  o  tripolio  (tam- 
bém uma  planta  da  Europa)  ainda  é  mais  singular,  e  parece  assentar 
unicamente  sobre  o  erro  de  um  copista,  que  na  traducção  de  Serapio, 
em  logar  de  Jj  J,  tribol,  forma  arábica  de  tripolio,  escreveu  Joy ,  que 
se  leu  terbed;  d'ahi  a  passagem  para  o  turbith  de  todos  os  caracteres 
do  tripolio  — caracteres  falsos  também  para  esta  planta,  qualquer  que 
ella  fosse —  isto  é,  que  a  sua  flor  mudava  de  tom  três  vezes  ao  dia,  e 
outros.  No  meio  d'estas  discussões,  intervinham  argumentos,  como  o 
de  Matthioli  — citado  por  Orta —  dizendo  que  o  alipio  não  podia  ser 
o  turbith,  porque  um  purgava  a  melancolia  e  outro  purgava  a  freima, 
como  sq  fosse  fácil  e  pratica  esta  distincção. 

E  claro,  que  tudo  isto  deixava  frio  Garcia  da  Orta,  o  qual  se  con- 
tentava com  conhecer  perfeitamente  o  turbith  dos  bazares  da  índia; 


346  Colóquio  quinquagesimo  quarto 

mas  é  claro  também,  que  elle  se  não  podia  desinteressar  absoluta- 
mente d'estas  discussões,  que,  em  ultima  analyse,  constituíam  a  scien- 
cia  do  seu  tempo. 

(Cf.  Roxburgh,  Fl.  Indica,  i,  470;  Dymock,  Mat.  med.,  356;  Ainslie, 
Mat.  liid.,  ii,  382;  Sprengel,  Dioscorides,  i,  614,  656). 


Nota  (3) 

O  primeiro  pagode,  mencionado  por  Orta,  é  o  antigo  vihára  ou  con- 
vento buddhista  da  ilha  de  Salsette,  muito  conhecido  pelo  nome  de 
Kânheri,  cujas  excavaçóes  diversas  datam  de  epochas  differentes,  mas 
na  maior  parte,  ao  que  parece,  do  11  ao  iv  século  da  nossa  era. 

O  vihára,  talhado  na  rocha  vulcânica,  na  encosta  da  montanha,  con- 
siste em  excavaçóes  distinctas.  A  primeira  que  se  encontra  — como  diz 
Orta —  é  o  c/^T/Zia  ou  templo,  que  era  effectivamente  «uma  casa  grande >;, 
pois  mede  perto  de  90  pés,  por  perto  de  40,  sendo  ornamentado  nas 
paredes  de  esculpturas,  e  tendo  á  roda  numerosos  pillares,  esculpidos 
também.  Seguem-se  pela  montanha  acima,  as  excavaçóes  do  vihára 
propriamente  dito  com  as  suas  camarás,  ornadas  igualmente  com  ima- 
gens de  Buddha  e  outras.  Estas  camarás  são  em  numero  considerável, 
não  inferior  de  certo  ao  que  Orta  indica,  e  dispostas  em  andares  so- 
brepostos, como  elle  também  diz.  Junto  de  muitas  d'estas  camarás, 
encontram-se  cisternas  ou  pôndhis,  com  um  systema  completo  de  ca- 
nalisação,  destinado  a  receber  as  aguas  da  chuva,  e  a  alimentar  depois 
as  diversas  partes  do  convento,  circumstancia  apontada  também  pelo 
nosso  escriptor.  Garcia  da  Orta  foi  sem  duvida  alguma  o  primeiro  eu- 
ropeu, que  fallou  d'este  celebre  vihára  de  Kânheri,  descripto  depois 
por  Diogo  do  Couto;  e  do  qual  os  viajantes  de  outras  nações  só  co- 
meçaram a  ter  conhecimento  d'ali  a  um  século  ou  mais. 

F'elo  anno  dei 535  foi  estabelecer-se  em  Baçaim  o  franciscano  portu- 
guez,  fr.  António  do  Porto,  acompanhado  por  outros  religiosos  da  sua 
ordem,  e  que  se  pôde  considerar  o  apostolo  do  norte  da  índia,  como 
mais  tarde  S.  Francisco  Xavier  foi  o  apostolo  da  costa  da  Pescaria  e 
outras  terras  do  sul.  Fr.  António  fez  em  Baçaim  e  Salsette  numerosas 
conversões,  entre  outras  as  áosyogis,  que  encontrou  em  Kânheri;  mas 
não  eram  já  propriamente  habitantes  do  vihára,  abandonado  havia  sé- 
culos, e  unicamente  alguns  mendicantes  hindus,  que  occasionalmente 
aproveitavam  o  refugio  das  camarás,  talhadas  na  rocha.  Diz-se,  que 
fr.  António  quiz  explorar  as  excavaçóes,  andando  por  ellas  sete  dias 
sem  chegar  ao  fim,  no  que  ha  uma  grande  exageração;  e  conta-se  tam- 
bém como  lhe  disseram,  que  os  caminhos  subterrâneos  chegavam  ao 
interior  da  índia,  até  Agra.  Deixando  de  parte  estas  phantasticas  in- 
formações, o  certo  é,  que  fr.  António  do  Porto  consagrou,  então  ao 


Do  tiirbit  347 

culto  catholico  o  chaytia  do  vihára  buddhico  de  Kânheri,  dando  á 
nova  igreja  a  invocação  de  S.  Miguel. 

(Cf.  Fergusson  and  Burgess,  Cave  temples  of  índia,  London,  1 880, 
pag.  348  a  36o;  Couto,  Ásia,  vii,  i,  10;  Gerson  da  Cunha,  Hist.  and 
antiqiiities  of  Chaul  and  Bassein,  Bombay,  1876,  pag.  190;  Garcia  da 
Orta  e  o  seu  tempo,  25o  e  seguintes.) 


Nota  (4) 

«Maljaz»,  nome  que  não  sei  bem  explicar,  é  o  pagode,  chamado  ha- 
bitualmente pelos  portuguezes  Monpacer  e  Manapazer,  correctamente 
Mandapesvara.  Era  um  templo  brahmanico  de  Síva,  que  foi  também 
convertido  em  igreja  por  fr.  António  do  Porto.  Para  isso,  a  entrada  fe- 
chou-se  com  um  muro,  corrido  diante  dos  pillares,  e  cobriram-se  as 
esculpturas  da  parede  com  alvenaria,  sem  comtudo  as  destruir.  A  in- 
vocação da  igreja  era  Nossa  Senhora  da  Misericórdia,  segundo  Fer- 
gusson, Nossa  Senhora  da  Piedade,  segundo  Diogo  do  Couto,  e  Nossa 
Senhora  da  Conceição,  segundo  o  sr.  Gerson  da  Cunha,  que  julgo 
o  mais  bem  informado  dos  três.  Ona,  que  evidentemente  nunca  visi- 
tou este  templo,  parece  dar  uma  noticia,  anterior  á  transformação  em 
igreja,  quando  o  pagode  de  Síva  estava  ainda  muito  «mal  assombrado». 

(Cf.  Fergusson  aad  Burgess,  1.  c;  481 ;  Couto  1.  c;  Gerson  da  Cunha, 
1.  c,  192.) 

Nota  (5) 

Este  ultimo  pagode,  o  mais  conhecido  de  todos,  estava  situado  na 
pequena  ilha  de  «Pori«,  ou  Ghãrãpurl,  que  os  portuguezes  começaram 
a  chamar  a  ilha  do  Elephante,  por  causa  de  uma  grande  figura  d'este 
animal,  que  ali  se  via  talhada  na  rocha.  Foi  depois  geralmente  desi- 
gnado, ilha  e  pagode,  pelo  nome  de  Elephanta.  Era  um  templo  brah- 
manico, relativamente  moderno,  do  vii  ou  viii  século,  tão  celebrado 
e  tantas  vezes  descripto,  que  não  nos  devemos  demorar  em  indica- 
ções, correntes  e  sabidas.  Unicamente  recordaremos  muito  brevemente, 
quanto  é  exacta  a  curta  descrição  de  Orta.  O  templo  media  i3o  pés  de 
norte  a  sul,  e  proximamente  o  mesmo  de  leste  a  oeste,  podendo-se,  pois, 
dizer,  que  era  «grande  como  um  mosteiro».  Aos  lados  havia  dois  pa- 
teos,  e,  em  um  d'elies,  uma  grande  cisterna.  Todo  o  interior  estava  or- 
nado de  figuras,  ficando  ao  centro  o  colossal  Trimurti,  e  dos  lados 
varias  outras,  entre  ellas  Arddhanari,  de  sexo  duplo,  representado 
unicamente  com  o  seio  esquerdo,  e  que  por  isso  o  nosso  Orta  tomou 
por  uma  amazona.  Diversos  animaes  estavam  esculpidos  nas  paredes 
—  como  Orta  diz—;  e,  Arddhanari,  por  exemplo,  encosta-se  á  cabeça 


348  Colóquio  qiiinquagesimo  quarto 

do  boi  Nandi,  tendo  logo  atrás  a  representação  de  um  elephante,  pro- 
vavelmente o  elephante  celeste  Airãvati. 

Orta  visitou  este  pagode  logo  á  chegada  de  Portugal,  quando  foi 
com  Martim  AfFonso  de  Sousa  assistir  ás  pazes  de  Baçaim,  e  á  entrega 
d'aquellas  terras,  como  contámos  na  sua  Vida.  Wiu-o,  pois,  em  i534,  e 
deu  noticia  d'elle  em  um  livro  publicado  em  i563,  sendo,  por  muito, 
o  primeiro  europeu  que  d'elle  fallou,  mais  de  vinte  annos  antes  de 
Linschoten,  e  quarenta  antes  de  Diogo  do  Couto. 

Sobre  as  opiniões  de  Garcia  da  Orta,  quanto  á  intervenção  dos  chins 
na  construcção  do  templo  de  Elephanta,  devemos  remetter  o  leitor 
para  o  que  dissemos  já  na  sua  Vida,  abaixo  citada,  e  mesmo  nas  notas 
aos  Colóquios,  no  vol.  i.,  pag.  222. 

(Cf.  Fergusson  and  Burgess,  1.  c,  465  e  seguintes;  Niebuhr,  Voyage 
en  Arabie,  11,  25  e  seguintes;  Gerson  da  Cunha,  1.  c,  204;  Couto, 
Ásia,  VII,  III,  II,  Garcia  da  Orta  e  o  seu  tempo,  255  a  259.) 


Nota  (6) 

Esta  enumeração  de  castas  é  extremamente  deficiente,  ou  antes 
Orta  dá  apenas  alguns  exemplos,  pois  elle  conhecia  sem  duvida  muitas 
outras  castas  e  muitos  outros  nomes. 

Curinnbins  foi  uma  designação  que  os  portuguezes  davam  aos  cul- 
tivadores do  campo  ou  lavradores,  e  parece  derivada  da  palavra  Ku- 
mari,  que  os  inglezes  hoje  escrevem  Cootnry,  e  designava  um  systema 
de  cultura  seguido  na  índia  meridional :  mas  é  bem  possível  que  tenha 
outra  origem,  pois  não  estou  nada  seguro  n'esta  derivação. 

Malis  ou  mãlís  era  e  é  eífectivamente  o  nome  dos  jardineiros. 

Paru  está  mal  escripto,  e  encontra-se  no  Tombo  da  índia  na  forma 
mais  correcta /"arvM,  modernamente  entre  os  inglezes  jcarvoe.  Deriva-se 
do  sanskrito  prabhu,  e  era  um  titulo  honorifico,  tomado  pela  casta  já 
mais  elevada  dos  escrivães. 

Dos  Baneanes  tratámos  já  em  uma  nota  antecedente. 

Deres  Qfara:;es;  a  casta  inferior,  á  qual  é  de  notar  Orta  não  dá  o 
nome  de  parias  — que  se  usou  geralmente  mais  tarde,  e  não  é  muito 
correcto —  a  casta  inferior  áos  paruaris  subdividia-se  em  varias,  entre 
as  quaes  os  mehters  tinham  o  emprego  de  varredores  de  ruas  e  immun- 
dicias.  Estes  devem  ser  os  deres  de  Orta.  A  palavra /ara;^  parece  ser 
de  origem  árabe,  e  applicava-se  aos  creados  inferiores;  muitas  vezes, 
entre  os  nossos  portuguezes,  aos  creados  de  cavallariça. 

Esparcis  são  os  conhecidos  Parsis,  uma  colónia  de  origem  persiana, 
e  conservando  na  índia  a  sua  religião.  Muitos  viajantes  notaram,  como 
Orta,  os  seus  hábitos  de  não  queimarem  nem  enterrarem  os  mortos,  e 
de  os  exporem  em  torres,  expressamente  construídas  para  aquelle  fim. 


Do  tiirbit  349 

Os  portuguezes  deram  o  nome  portuguez  de  castas  áquellas  divi- 
sões e  subdivisões  da  sociedade  hindu,  e  este  nome  foi  depois  recebido 
n'aquella  accepção  especial  por  francezes,  inglezes  e  outros.  Não  é  Orta 
o  único  que  nota  o  rigor  com  que  os  hindus  permaneciam  fieis  ás  suas 
castas  e  profissões,  sendo  — como  elle  diz —  sapateiros  todos  os  filhos 
dos  sapateiros.  Vários  portuguezes,  dos  que  foram  á  índia,  faliam  n'isso, 
e  mesmo  os  que  lá  não  foram,  como  Garcia  de  Rezende : 

4  Todos  os  officiaes 

nunca  deixam  seus  officios, 
nem  hã  de  sobir  jamais 
que  seus  avós  e  seus  pães, 
nem  ter  mores  beneficios. 

(Cf.  Yule  e  Burnell,  Glossary,  v.  Coomry  Parvoe,  Parsee;  Simão 
Botelho,  Tombo  do  Estado  da  Índia,  iSy,  211,  nos  Subsidias;  Sinclair 
Notes  on  castes  on  the  Dekhan,  em  Tlie  Indian  Antiquary,  m  (1874) 
março,  abril  e  maio.) 


COLÓQUIO  QUINQUAGESIMO  QUINTO 

DO  THURE  QUE  HE  ENCENÇO,  E  DA  MIRRA 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

^  RUANO 

O 

Porque  escrevem  que  ha  duas  maneiras  de  encenço,  sci- 
licet,  huma  da  Arábia  e  outra  da  índia;  he  necesario  sa- 
bermos da  arvore  delles,  como  se  chama  nas  terras  donde 
o  ha,  e  saber  se  he  mezinha  usada  n'esta  terra. 

/"  ORTA 

Nesta  terra  não  ha  encenço,  mas  mandam  o  a  elrey  de 
Portugal  de  cá,  pêra  que  faça  esmolas  a  muytas  casas  de 
religiosos  da  cristandade;  mas  na  índia  não  o  ha,  senão 
trazido  da  Arábia,  onde  o  chamam  lovam,  corrompendo  o 
vocábulo  grego,  que  he  olibano^  de  que  elles  muito  usam; 
e  elles  o  chamam  conder,  scilicet,  Avicena*,  porque  conder 
ou  condros  quer  dizer  resina,  e  çamac  quer  dizer  goma 
em  arábio;  e  por  isto  chamam  á  guoma  arábia  çamac 
arabi.  Verdade  he  que  Serapio**  o  chama  ronder;  mas  o 
nome  he  corruto;  porque  falei  com  muytos  Arábios  já,  e 
todos  me  dixeram  que  poucos  lhe  chamavam  conder,  e  to- 
dos os  mais  lofam;  mas  que  nenhum  o  chamava  ronder, 
nem  na  própria  terra  da  Arábia,  onde  nasce,  E  perguntei 
a  Portuguezes,  que  nessa  terra  delle  residiram  muito  tem- 
po, e  todos  me  dixeram  que  não  tinha  outros  nomes;  e  que 
a  arvore  se  chamava  também  lovam;  e  estes  homens  me 
dixeram  que  o  milhor  he  o  das  serras  muyto  fraguosas,  e 
o  dos  campos  he  roim,  e  que  vem  mesturado  com  outras 
resinas  de  arvores,  e  que  usavam  delle  pêra  brear  as  náos. 


*  Avicena,  Lib.  2,  cap.  533  (nota  do  auctor)  aliás  532. 
•»  Serapio,  cap.  17S  (nota  do  auctor). 


352  Colóquio  qiiinquagesimo  quinto 

asi  como  nós  usamos  do  breu;  e  que  estas  arvores  sam  do 
próprio  rey;  que  nenhuma  pessoa  o  podia  colher  sem  li- 
cença de  elrey;  e  que  vinham  os  mercadores  de  Adem  e 
Xael  e  de  outras  partes  da  Arábia,  e  contratavamse  com 
elrey  na  cantidade  que  aviam  de  colher,  e  no  preço  que 
aviam  de  dar  por  o  encenço,  sendo  bom,  a  que  nós  cha- 
mamos encenço  macho;  e  o  preço  não  he  grande,  vendo  que  o 
milhor  trazido  da  Arábia  e  posto  cá  na  índia  vai  hum  quin- 
tal dous  crusados, 

RUANO 

E  chamamlhe  elles  madio? 

ORTA 

Não,  mas  chamam  ao  bom  na  Arábia  melato;  e  o  mao, 
que  he  o  preto,  tem  outro  nome,  e  he  nacido  no  campo  e 
não  na  serra,  e  ás  vezes  mesturam  hum  com  outro  pêra  o 
vender  cá  na  índia,  e  vai  mu3^to  menos;  e  este  vem  mes- 
turado  com  as  cascas  do  arvore,  e  a  rezam  porque  lhe  nós 
chamamos  macho,  scilicet,  porque  parece  aos  testículos,  não 
aceitam  cá  os  Arábios  esta  semelhança;  e  o  arvore  donde 
se  cria  esta  guoma,  não  he  muyto  grande,  e  as  folhas  e  a 
feiçam  sam  de  folhas  de  aroeira;  e  nesta  terra  da  índia 
nam  o  sofesticam  ou  falsificam;  nem  ganhariam  muyto  em 
o  falsificar,  poUo  pouquo  preço  delle.  Usam  muyto  os  fí- 
sicos Indianos  do  encenço  pêra  unguentos  e  perfumes,  e 
comido  pêra  muytas  enfermidades  da  cabeça  e  pêra  ca- 
marás. Mas  a  maior  cantidade  de  todo  o  que  se  gasta  he 
levandoo  á  China,  pêra  lá  o  venderem,  e  gastam  muyto 
delle.  E  se  acerta  ir  huma  vez  pouquo,  ganham  os  que  de 
cá  o  levam  muyto  nelle,  asi  como  perdem  se  da  índia  vai 
muito,  porque  também  o  gastam  pêra  outras  partes  confi- 
nes a  Malaca;  asi  como  gastam  a  mirra  (que  na  índia  cha- 
mamos bolla). 

RUANO 

Dioscorides,  e  Avicena  e  outros  muytos  dizem  avelo  na 
índia,  e  este  he  o  negro;  nam  sei  como  dizeis,  que  não 
ha  na  índia  encenço? 


Do  thure  que  he  encenço,  e  da  mirra  353 

ORTA 

Este  nome  iJido  tomam  muytas  vezes  por  negro,  como 
Mesue  o  diz  nos  mirabolanos  indos  que  sam  os  negros, 
como  já  vos  disse,  falando  nelles  (i). 

RUANO 

E  pois  falaste  na  mirra,  e  me  disestes  tam  poucas  cousas 
novas  no  encenço,  será  cousa  justa  que  me  digaes  donde  ha 
a  mirra  e  como  he  feita. 

ORTA 

.  Muita  vem  á  índia  da  Arábia  e  da  terra  do  Abexim,  que 
he  a  Etiópia;  mas  nunqua  pude  saber  desta  guoma  ou  re- 
sina a  verdade,  e  como  a  arvore  he  feita;  somente  hum 
mercador  que  tratava  de  Melinde  pêra  Moçambique  me 
disse,  que  os  Bedoins  a  traziam  a  Brava  e  a  Magadaxo 
por  terra,  e  que  vinham,  segundo  elles  diziam,  da  Caldéa, 
assi  chamada  por  estes  Bedoins.  E  sam  estes  homens  gente 
montez,  e  falam  o  arábio  puro,  que  dizem  ser  mais  che- 
gado a  lingoa  Caldéa  ou  da  Suria  antigua.  E  isto  me  dixe 
hum  sacerdote  abexim  e  hum  bispo  arménio.  E  porque 
Pico  Mirandolano  diz  na  sua  Apologia,  que  mago  em  lin- 
goa caldéa  quer  dizer  sabedor,  progunteilhe,  pois  que  elle 
dizia  que  a  escritura  sagrada  estava  escrita  acerqua  delles 
em  lingoa  caldéa,  que  me  disesse  que  queria  dizer  mago; 
elle  me  disse  que  magoxi  queria  dizer  naquella  linguoa  cal- 
déa letrado  e  sabedor,  e  que  destes  eram  os  magos,  que 
vieram  adorar  a  Nosso  Senhor.  E  asi  me  dixe  que  nam 
eram  reys  estes  homens,  senão  letrados  grandes,  assi  nas 
estrellas,  como  nas  outras  cousas  naturaes.  E  mais  me  dixe 
este  bispo  que  a  estrella  que  guiava  a  estes  magos  não 
era  de  natura  celestial,  senão  elemental;  asi  como  dizemos 
cometa:  dizeime  o  que  vos  nisto  pareça,  porque  eu  nam 
tenho  nenhuma  cousa  destas  por  boa,  até  que  o  digam  os 
que  regem  a  Santa  Madre  Igreja  de  Roma  (2). 

RUANO 

E  a  mim  com  essa  condiçam  me  parece  bem  o  que  di- 
zeis, e  folgara  que  me  dixereis  mais  cousas  do  encenço, 

23 


354  Colóquio  quiriquagesimo  quinto 

porque  os  nossos  Castelhanos  lá  dizem  que  o  ha  nas  índias 
occidentaes  de  nosso  rey. 

ORTA 

Eu  não  diguo  as  cousas  senam  que  sei  bem  sabidas,  ou 
ditas  por  pessoas  dignas  de  fé.  E  isso  que  dizeis  dos  es- 
critores das  índias  occidentaes  já  o  li,  mas  como  o  nam  vi, 
não  sei  dizer  se  he  verdade  ou  não.  Vós  o  podeis  saber 
em  Gastella  e  escrevelo  cá*,  se  vos  Deus  levar;  porque 
isto  não  releva  muyto  (3). 


*  Deve  ser  «lá». 


Nota  (i) 

Seria  fácil  alargar  esta  nota  sobre  o  incenso,  de  que  muito  se  tem 
escripto,  mas  devemos  limitar-nos  apenas  a  esclarecer  com  brevidade 
alguns  pontos  em  que  toca  o  nosso  auctor. 

O  incenso  é  a  resina  de  varias  espécies  do  género  Boswellia,  da  famí- 
lia das  Burseracece.  Entre  estas,  citaremos  unicamente  a  Bos-vrel- 
lia  Cartex*i,  Birdwood,  que  habita  a  Arábia  meridional  e  as  ter- 
ras fronteiras  da  Africa,  e  a  Bosvrellia  Blia.ii-Dajia.iia., 
Birdwood,  da  terra  dos  Somalis.  As  duvidas,  que  ainda  restam,  sobre 
as  variedades  d'estas  espécies,  e  sobre  outras  do  mesmo  género,  não 
vem  ao  nosso  caso^. 

E  bem  sabido,  como  aquella  substancia  foi  conhecida  desde  a  mais 
remota  antiguidade,  sendo  repetidas  vezes  mencionada  na  Biblia,  e 
tendo  feito  o  objecto  do  commercio  dos  Phenicios.  Foi  chamada  Xioavos 
e  olibanum  pelos  gregos  e  latinos,  palavras  que  se  prendem  ao  hebraico 
lebonah,  significando  leite,  e  também  ao  nome  arábico  de  que  logo 
fallaremos.  O  de  thus  julga-se  derivado  do  verbo  3j:iv,  sacrificar.  Em- 
quanto  á  palavra  incenso,  vem  simplesmente  de  incendere,  queimar. 

—  O  nome  arábico,  dado  por  Orta,  «lovam»,  é  o  conhecido  J,  lú- 
ban,  que  significa  leite  como  o  hebraico  lebonah,  e  procedeu  do  aspe- 
cto da  resina  emquanto  fresca.  Não  é,  pois,  o  «vocábulo  grego»  cor- 
rompido; mas  é  pelo  contrario  este  vocábulo  grego,  que  se  deriva  das 
línguas  semíticas. 


'  Veja-se  sobre  a  parte  puramente  botânica,  e  também  sobre  a  historia  da  substancia, 
o  excellente  e  completo  trabalho  do  dr.  Birdwood,  On  the  genus  Boswellia,  nas  Trans.  of 
íhe  Linn.  Soe,  xxvii  (1871),  pag.  iii  a  148;  igualmente  Oliver,  Flora  of  tropical  Africa, 
I,  324;  e  Engler,  Burseracece,  em  A.  D.C.,  Monographiae  Phanerogamai-um,  n. 


Do  thure  que  he  enccnço,  e  da  mirra  355 

—  O  nome  «conder»,  mencionado  igualmente  por  Orta,  é  do  mesmo 
modo  conhecido,  jJj5',  kunder  ou  konder,  e  parece  ser  a  adaptação 
arábica  do  nome  sanskritico  kundu,  ou  kundiir. 

Orta  diz  muito  claramente,  que  o  incenso  ia  para  a  índia  da  Arábia, 
o  que  é  exacto,  comquanto  talvez  em  outras  epochas  procedesse  prin- 
cipalmente da  Africa  oriental,  terra  dos  Somalis  e  outras  próximas. 
Alguns  séculos  antes,  Marco  Polo  dava-o  também  como  sendo  expor- 
tado da  Arábia  meridional,  pelo  porto  de  Dufar,  Dofar  ou  Dhafar.  E 
d'esta  povoação,  de  que  hoje  não  ha  vestígios,  fallou  mais  tarde  o 
nosso  Duarte  Barbosa:  «hum  lugar  de  Mouros. ...  do  Regno  de  Far- 
taque».  Dofar  é  igualmente  mencionado  por  Camões,  com  referencia 
especial  ao  incenso: 

Olha  Dofar  insigne,  porque  manda 
O  mais  cheiroso  incenso  para  as  aras. 

Vários  viajantes  modernos  têem  observado  na  Arábia  meridional, 
na  região  do  Hadramaut,  a  arvore  do  incenso,  e  os  processos  de  ex* 
tracção  da  resina,  sendo  particularmente  interessante  a  relação  do 
dr.  Cárter  (1844- 1846).  Segundo  diz  outro  viajante,  o  capitão  Miles,  a 
droga  não  é  ali  colhida  pela  gente  da  terra,  e  sim  pelos  Somalis,  peri- 
tos n'aquelle  trabalho,  os  quaes  atravessam  em  grande  numero  da  costa 
africana  fronteira  para  fazerem  aquelle  serviço,  pagando  por  isso  um 
certo  tributo.  Parece  que  alguma  cousa  n'este  género  succedia  já  no 
tempo  de  Orta;  mas  elle  ignorava  que  os  trabalhadores  fossem  afri- 
canos, e  apenas  falia  dos  mercadores  de  Aden  e  outros  pontos  da 
mesma  Arábia,  os  quaes  «se  concertavam»  com  ps  reis  da  terra  antes 
de  procederem  á  extracção  da  resina. 

O  incenso  era  empregado  na  medicina  mussulmana  e  na  hindu,  como 
diz  Orta,  e  foi  mesmo  oíficialmente  admittido  na  Pharmacopceia  da  ín- 
dia; mas  hoje  consome-se  principalmente  ou  unicamente  nas  cerimo- 
nias religiosas  do  rito  romano  e  do  rito  grego. 

Orta  não  admitte  a  existência  de  incenso  na  índia,  e  em  rigor  tem 
rasão;  mas  encontravam-se  ali  muitas  resinas,  mais  ou  menos  análo- 
gas, procedentes  de  varias  plantas,  da  Bostvellia  thurifera  — que  se 
julgou  um  tempo  dar  incenso  verdadeiro —  da  Vateria  indica,  da  Gar- 
dénia lúcida  e  de  outras. 

Notaremos  ainda,  que  o  nosso  escriptor,  não  tendo  visto  a  planta, 
tinha  no  emtanto  algumas  idéas  correctas  sobre  ella;  e  sabia  ser  uma 
arvore  pequena,  e  ter  folhas  similhantes  ás  da  «aroeira»,  o  que  é  bas- 
tante exacto,  tratando-se  de  uma  Burseracea. 

(Cf.  Pharmac,  120;  Sprengel,  Diosc,  11,  376,  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i, 
i36;  Yule,  Marco  Polo,  11,  386  e  442;  Duarte  Barbosa,  Livro,  265;  Lu- 
síadas, X,  101.) 


B56  Colóquio  quinquagesimo  quinto 


Nota  (2) 

Diz-se  que  a  myrrha  é  produzida  por  uma  arvore  da  família  das 
mesmas  Burseracece,  Comniiplxoi-a  IMyrrlia,  Engler  (Bal- 
samodendron  Myrrha,  Nees);  mas  é  forçoso  confessar,  que  a  sua  ori- 
gem botânica  ainda  levanta  bastantes  duvidas. 

Em  compensação  a  substancia  foi  bem  conhecida  desde  os  mais  an- 
tigos tempos.  O  nome  de  myrrha,  como  o  grego  afijova,  vem  do  he- 
braico mur,  que  ainda  hoje  usam  os  árabes  exactamente  na  mesma 
forma,  y»,  murr.  O  de  «bolla»,  ou  bola,  ou  boi,  usado  ainda  na  índia, 
é  quasi  sem  alteração  o  sanskrito  c{  |(r{,  vola. 

A  myrrha  tem  vindo  sempre  pela  maior  parte,  se  não  exclusiva- 
mente, da  Africa  oriental,  sobretudo  da  terra  dos  Somalis  e  do  Ha- 
drar,  onde  se  encontram  as  arvores  que  a  produzem.  O  commercio  de 
Bombaim  recebe  modernamente  esta  mercadoria  da  grande  feira  de 
Berbera,  e  de  outros  pontos  da  costa  africana,  onde  concorre  de  va- 
rias regiões  do  interior.  A  noticia  de  Orta  é  substancialmente  a  mesma, 
posto  que  elle  faça  n'esta  parte  bastantes  confusões.  Depois  de  dizer, 
que  aquella  substancia  ia  a  índia  da  Ethiopia  e  também  da  Arábia, 
aponta  unicamente  dois  portos  africanos,  Magadaxo  e  Brava,  situados 
na  terra  dos  Somalis,  para  o  sul  do  cabo  Guardafui.  Em  resumo,  in- 
dica correctamente  a  Ethiopia  e  a  terra  dos  Somalis,  e  não  devia  estar 
nada  seguro  de  que  a  myrrha  viesse  também  da  Arábia.  A  sua  con- 
fusão é  manifesta,  quando  nos  diz,  que  os  beduínos,  vindos  da  Caldéa, 
a  levavam  a  Brava  e  a  Magadaxo  por  terra.  Evidentemente  baralhou 
e  confundiu  na  cabeça  os  dois  lados  do  mar  Vermelho. 

Tomando,  pois,  a  parte  mais  definida  da  sua  informação,  a  expor- 
tação pelos  portos  africanos,  nós  vemos  que  a  myrrha  procedia,  como 
ainda  procede,  d'aquelle  grande  triangulo,  que  termina  no  cabo  Guar- 
dafui. Somente,  dinge-se  hoje  aos  portos  do  norte,  Berbera  e  outros 
em  frente  de  Aden,  e  dirigia-se  então  mais  para  o  meio  dia,  sem  que 
a  região  productora  variasse. 

A  propósito  de  incenso  e  de  myrrha,  Orta  lembrou-se  muito  na- 
turalmente dos  reis  Magos,  e  trouxe-nos  aquella  curiosa  referencia  á 
dissertação  de  Pie  de  la  Mirandole,  De  Magia  naturalis  et  cabala;  e 
aquella  engraçada  opinião  do  bispo  arménio  sobre  a  natureza  elemen- 
talf  e  não  celestial,  da  estrella  que  os  conduziu. 

(Cf  Pharmac,  1 24;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i,  242 ;  Dymock, Mat.  med.,  1 52.) 


Nota  (3) 

Abundavam  nas  Índias  Occidentaes  resinas  mais  ou  menos  simi- 
Ihantes  ao  incenso,  que  não  eram  esta  substancia,  mas  foram  varias  ve- 


Do  thure  que  he  encenço  e  da  mirra  357 

zes  confundidas  com  ella.  No  livro  de  Pedro  Martyr  — que  Orta  po- 
dia perfeitamente  ter  lido —  encontramos,  por  exemplo,  a  noticia  de 
que  a  Vicente  Yanes  Pinzon  vieram  os  Índios  de  Cuba  offerecer  uma 
porção  de  objectos  de  oiro,  e  um  vaso  cheio  de  incenso i  mas  não  é 
fácil  saber  o  que  seria  realmente  a  resina  cheirosa  que  elles  trouxe- 
ram, e  á  qual  se  deu  impropriamente  aquelle  nome  (P.  Martyr,  era 
Ramusio,  iii,  22). 


COLÓQUIO  QUINQUAGESIMO  SEXTO 

DA  TUTIA  « 

INTERLOCUTORES 
RUANO,  ORTA 

RUANO 

Levam  de  cá  da  índia  tutia  pera  Portugal,  segundo  me 
dixeram  lá;  e  também  Avicena  diz  que  na  índia  ha  tutia, 
e  Serapio  pella  mesma  maneira  diz  que  huma  especia  de 
tutia  he  da  índia.  Ora  pois  isto  asi  passa,  com  rezam  me 
direis  o  que  he  esta  tutia;  e  em  que  parte  da  índia  nasce 
ou  se  colhe. 

ORTA 

Nas  partes  que  sabemos  indianas  não  ha  tutia  nem  espo- 
dio,  como  dizem  os  Greguos,  nem  cobre  nem  outros  metaes 
de  que  se  faz  esta  tutia;  mas  se  me  quiserdes  crer,  vos  di- 
rei qual  he  a  tutia  que  usam  na  índia,  e  em  Portugal  e  Es- 
panha; a  qual  nam  he  mineral,  senão  o  antispodio  de  que 
faz  mençam  Dioscorides,  ou  outro  semelhante  ao  mesmo 
que  elle  diz. 

RUANO 

E  donde  vem  esta  tutia,  e  como  he  feita  e  pera  onde 
vai? 

ORTA 

Hum  mercador  riquo  destas  terras,  e  muito  corioso  (pos- 
toque  he  homem  leiguo),  me  disse  que  soubera  por  muyto 
certo  de  mercadores  naturaes  da  terra  da  Pérsia,  que  se 
fazia  em  Guirmon  (terra  da  Pérsia  e  vezinha  das  terras  de 
Ormuz);  e  fazse  da  cinza  de  hum  páo  que  se  chama  goan; 
e  que  esta  arvore  dá  uma  fruta,  que  se  chama  também  goan, 
que  tem  casca  e  côdea  ou  corteza;  e  comeselhe  a  côdea, 
e  o  miolo,  e  a  casca  não;  e  desta  arvore,  que  dá  esta  fru- 
ta, se  faz  esta  tutia,  scilicet,  da  cinza  desta  arvore.  E  esta 
cidade  de  Guirmon  he  muito  celebrada  por  ter  os  melhores 
cominhos,  que  ha  na  Pérsia.  E  esta  he  levada  a  Ormuz  e 


36o  Colóquio  qiiinqiiagesimo  sexto 

ás  outras  partes  da  Arábia,  donde  vai  ter  a  Alexandria,  e 
esta  he  a  que  levam  a  Portugal,  e  em  muitas  náos,  que  se 
tomaram  de  preza,  acharam  d'esta  tiitia,  que  vinha  por  mer- 
cadoria; e  eu  a  vi  mandar  a  Portugal  pêra  elrey.  E  segundo 
me  disse  hum  buticairo  portuguez,  esta  tiitia  he  a  que  se 
guasta  em  Espanha  e  França,  e  he  chamada  alexandf~ina, 
e  nam  por  se  fazer  ali,  senam  porque  se  leva  ahi  da  Pérsia, 
e  este  he  hum  dos  antispodios  dos  Greguos. 

RUANO 

Não  me  maravilho  d'estas  cousas  contrafeitas,  porque  vi 
que  vos  trouxe  hum  físico  huma  pouca  de  caparosa  contra- 
feita, e.dissevos  que  usavam  delia  os  çurgiaes  Indianos,  e 
que  llie  achavam  bons  efeitos  porque  era  bom  cáustico. 

ORTA 

Nas  cousas  dos  metaes  sabem  os  índios  médicos  fazer 
obras;  porque,  queimando  e  polvorisando  os  metaes,  eu  vi 
aço  e  ferro  queimado,  e  polvorisado,  e  azougue;  e  a  elrey 
de  Cranganor  no  Malavar  deramlhe  muyto  tempo  a  beber 
azougue  polvorisado,  e  fezselhe  huma  previa  disposiçam 
pêra  lepra,  de  que  o  curei  eu,  e  está  muito  milhor  aguora, 
e  cura-se  ao  modo  dos  Portuguezes  já  (i). 


Nota  (i) 

No  Colóquio  do  Espodio,  Orta  havia  explicado,  como  aquelle  seu 
«espodio»  vegetal  era  diverso  do  espodio  metallico  dos  antigos  e  do 
pompholix.  EfFectivamente  o  espodio  dos  antigos  era  um  oxydo  impuro 
de  zinco,  obtido  no  trabalho  do  latão,  ou  pela  combustão  de  certos 
minérios  de  zinco;  e  o  pompholix  era  pouco  mais  ou  menos  a  mesma 
cousa,  somente  este  ultimo  nome  dava-se  ao  oxydo  mais  puro  e  mais 
leve,  que  se  deposita  nos  cadinhos  como  uma  matéria  branca  e  em 
flocos,  á  qual  a  antiga  chimica  chamava  também  lana  philosophica. 
Depois  de  tratar  d'estas  substancias  metallicas,  Dioscorides  fallava  no 
seu  livro  das  cinzas  de  varias  plantas,  que  podiam  substituir  aqueUas 


Da  tiitia  36 1 

substancias  quando  faltassem — uma  espécie  de  espodio  falso,  ou  de  an- 
tispodio;  e  isso  contribuiu  para  que  Orta  acreditasse  o  que  lhe  conta- 
ram sobre  a  tiitia  ser  feita  com  as  cinzas  de  uma  arvore,  chamada 
Goan. 

Isto  não  era  assim;  e  a  tutia  é  um  oxydo  impuro  de  zinco,  do  mesmo 
modo  que  o  espodio.  Alguns  séculos  antes  de  Orta,  Marco  Polo  havia 
íiallado  correctamente  da  tutia  da  região  de  Kerman,  como  sendo  ob- 
tida de  uma  certa  terra  que  ali  havia  (um  minério  de  zinco)  queimada 
em  grandes  fornalhas,  e  dando  uma  substancia  mais  pura,  a  tutia,  e  ou- 
tra mais  grosseira  e  cheia  de  impurezas,  o  espodio.  Aqui,  a  tutia  é  assi- 
milhada  ao  pompholix  dos  antigos.  Annos  depois  de  Orta,  Teixeira  re- 
pete a  mesma  informação  de  Marco  Polo,  somente  o  processo  varia 
um  pouco:  diz  elle,  que  em  uma  serra  próxima  da  cidade  ou  villa 
de  Kerman,  se  encontrava  uma  terra  especial,  a  qual,  amassada  com 
agua,  se  punha  a  cozer  em  formas  de  barro,  e  depois  de  bem  cozida 
em  fornos  ficava  dentro  a  tutia,  a  que  os  persas  chamavam  tutyah. 
No  fundo  este  processo,  descripto  por  Teixeira,  é  o  mesmo  de  que 
falia  Marco  Polo;  trata-se  também  de  um  minério  de  zinco,  do  qual, 
pela  alta  temperatura,  se  obtém  o  oxydo  de  zinco,  naturalmente  muito 
impuro,  dados  os  grosseiros  processos  de  que  se  usava.  E  — continua 
dizendo  Teixeira— /«e  mal  informado  el  dotor  Garcya  dorta,  que  en 
sus  diálogos  de  los  simplices  de  la  índia  di:^e  que  la  Tutia  se  ha^e  de 
la  cénica  de  cierto  arbol  y  fruto  dicho  Gune.  Effectivamente  foi  mal 
informado;  era  verdade  que  a  tutia  se  preparava  em  Kerman  (o  seu 
Guirmon),  ao  norte  e  não  longe  de  Hormuz;  mas  aquella  tutia  era  me- 
tallica — ou,  servindo-nos  da  linguagem  do  tempo,  era  um  espodio,  e 
não  um  antispodio. 

E  exacto,  que  a  medicina  indiana  se  aproveitasse  com  frequência 
dos  metaes,  e  dos  seus  preparados,  obtidos  com  uma  certa  habilidade, 
como  por  mais  de  uma  vez  indica  W.  Ainslie  no  seu  excellente  livro, 
tantas,  vezes  citado  n'estas  notas.  No  caso  do  rei  de  Cranganor,  não  é 
provável  que  o  «azougue  polvorisado»  lhe  fizesse  uma  disposição  para 
lepra;  mas  antes,  que,  por  elle  ter  aquella  disposição,  lhe  appiicassem 
um  tratamento  mercurial. 

(Cf.  Sprengel,  Dioscorides,  i,  747,  748;  Yule,  Marco  Polo,  i,  129,  i3o; 
Teixeira,  Relaciones,  121.) 


COLÓQUIO  QUINQUAGESIMO  SÉTIMO 

DA  ZEDOARIA  E  ZERUMBET 

INTERLOCUTORES 

RUANO,  ORTA 

RUANO 

Bem  sabeis  quanta  duvida  lia  em  o  que  se  chama  ledoa- 
ria,  e  o  que  se  chama  icrumbet;  porque  Avicena  faz  dous 
capítulos,  e  Scrapio  hum  só  de  lerumbet,  e  Rasis  faz  hum 
capitulo  de  ambos:  decraraime  isto,  dizendo  os  nomes  e  se 
o  usam  a  gente  da  terra. 

ORTA 

A  mesma  duvida,  que  vós  tendes,  tive  eu  muyto  tempo; 
e  asentei  que,  por  ledoaria  ser  mais  famosa,  era  o  que  cha- 
mamos '{eriímba,  drogua  usada  pêra  Ormuz  e  dahi  levada 
pêra  a  Turquia  e  Veneza;  e  que  o  lerumbet  era  o  que  cha- 
mamos açafram  da  terra,  que  na  feiçam  sua  se  parece  com 
a  ruiva  seca  nossa,  de  que  já  vos  falei  acima  no  croco  m- 
diano.  E  depois  que  muyto  cuidei  nisso  e  o  enqueri,  soube 
que  estava  enguanado,  por  os  efeitos  e  obras  diversas  que  o 
açafram  da  terra  faz  das  que  escrevem  da  ^edoaria  e  ^e- 
rumbet,  asi  chamado  de  nós;  porque  da  '{edoaria  faz  capi- 
tulo Avicena*  e  de  {erumbet;  e  isto  que  chamamos  '{edoaria, 
chama  Avicena  geidiiar,  e  outro  nome  lhe  não  sei;  porque 
o  não  ha  senam  nas  terras  confins  á  China.  E  este  geiduar 
he  huma  mezinha  de  muyto  preço,  e  não  achada  senão  nas 
mãos  dos  que  os  Gentios  ch^nid^m.  jogues,  ou  outros  a  que 
os  Mouros  chamam  calandares;  e  todos  estes  sam  peregri- 
nos, que  vivem  mendicando  e  peregrinando,  e  visitando  as 
suas  casas  de  idolatrias;  e  destes  vos  falei  já,  dos  quais  ham 


*  Avicena,  Lib.  2,  cap.  742  (nota  do  auctor).  Na  edição  de  Rinio, 
cap.  745  De  ^edoaria,  747  De  ^^urumbetf  754  De  :jediiar. 


364  Colóquio  quinquagesimo  sétimo 

os  reis  e  grandes  pessoas  este  geidiiar,  a  que  nós  corru- 
tamente  chamamos  :{edoaria. 

RUANO 

E  como  soubestes  isto,  que  tam  ousadamente  falaes? 

ORTA 

Os  fizicos  do  Nizamoxa  mo  dixeram:  querendoa  dar  a 
hum  homem  no  arraial  do  Nizamoxa  contra  a  mordedura 
de  huma  bicha,  a  mandaram  pedir  ao  rey;  aos  quaes  eu  dixe, 
que  os  buticairos  a  tinham,  e  lha  mostrei;  elles  responderam, 
que  isso  que  lhe  eu  mostrava  era  '{eriímba,  e  não  o  geidiiar; 
e  dandoa  contra  a  mordedura  da  bicha,  se  achou  o  traba- 
lhador bem,  e  lhe  tornou  o  pulso,  e  se  lhe  esforçou  a  vir- 
tude. 

RUANO 

E  de  que  feiçam  era  essa  ledoaria? 

ORTA 

Tamanha  como  huma  bolota,  e  casi  dessa  feiçam,  e  a  cor 
era  lúcida:  pedi  a  elrey  hum  arrátel  dessa  mezinha;  e  disse- 
me  que  não  me  podia  dar  tanta,  e  deume  hum  pedaço  que  pe- 
saria mea  onça;  a  qual  mostrei  aos  buticairos  de  Chaul  e  de 
Goa,  e  todos  me  diseram  que  não  conheciam  aquella  mezi- 
nha, e  que  não  usariam  delia.  E  esta  mandei  a  Portugal 
com  huma  pedra  arménia,  e  tudo  se  perdeo,  e  a  náo  em 
que  hia,  Deos  seja  louvado.  E  despois  achei  na  mão  de  hum 
jogue  huma  pouca,  e  nam  lha  comprei,  porque  a  não  conhe- 
cia bem.  E  se  tivera  algum  fizico  ahi,  eu  lha  comprara,  e 
vola  mostrara  aguora. 

RUANO 

Aproveita  pêra  outras  cousas  este  geiduar? 

ORTA 

Diseme  o  Mula  Ucem  (e  este  era  um  fizico  letrado,  que 
eu  conversei,  estando  em  Juner  curando  os  filhos  do  Niza- 
moxa) e  me  disse  que  aproveitava  pêra  36  cousas;  e  elle 


Da  '{edoaria  e  :{erm7ibet  365 

me  disse  muytas  delias,  e  eu  lha  vi  aplicar  em  hum  giolho, 
que  estava  com  dor  hum  mercador.  E  ao  menos  podeis  crer 
que  he  mezinha  que  se  estima  em  muyto,  e  o  principal  he 
contra  a  peçonha. 

RUANO 

Pois  Aviçena  nam  faz  tanto  caso  delia. 

ORTA 

Avicena  não  a  conheceo,  e  foy  muyto  duvidoso  nesta  me- 
zinha-, porque  nas  cousas  de  duvida  faz  Avicena  dous  capí- 
tulos, e  assi  fez  nesta  porque  no  capitulo  762  diz:  geiduar 
qiiid  est?  E  diz  que  estima  que  será  algeiduar;  e  Dioscori- 
des  nunqua  falou  nisto*.  E  por  aqui  vereis  que  Avicena  ti- 
nha nesta  mezinha  duvida.  E  o  Belunensis,  na  exposiçam 
dos  nomes  arábios,  parece  que  cheirou  isto;  porque  faz 
mençam  de  leduar  e  de  :[edoaria,  e  de  :{erimibat.  E  por 
aqui  sabereis  que  he  :[edoaria  nome  corruto,  e  geiduar  ver- 
dadeiro. E  aguora  vos  direi  o  que  he  :[enimbet,  e  vós  ao 
cabo  vireis  com  vossas  contradições,  como  acustumaes;  mas 
eu  ei  de  ficar  em  pé,  porque  a  verdade  tem  pés,  e  anda  e 
nunqua  morre.  E  diguo  que  o  ^eriímbet  se  chama  dos  Ará- 
bios e  Persas  e  Turcos  ■{erumba,  e  dos  Guzarates  e  Deca- 
nins  e  Ganarins  cachorá,  e  dos  Malavres  çua**.  A  maior  can- 
tidade  delia  he  no  Malavar,  scilicet,  em  Calecut  e  Cananor; 
e  nasce  no  mato,  e,  se  a  plantam  ou  semeam,  nasce  em 
mu3^tas  partes,  e  em  todo  o  cabo.  Ghamamlhe  muytos  gen- 
givre  do  mato,  e  tem  re:{am;  porque  na  folha  he  semelhante 
ao  gengivre,  senão  que  a  folha  he  mais  larga  da  :^enimba, 
e  mais  aberta,  e  a  raiz  da  lerumba  he  mais  grande;  e  des 
que  he  colhida  a  secam  em  talhadas,  e  a  levam  a  Ormuz 


*  Aliás,  cap.  754.  — O  curtíssimo  capitulo  de  Avicena  é  textualmente 
o  seguinte:  Zeduar  quid  est?  Inquit  Dios.  Est  algieduar,  i.  seciindum 
quod  existimo. 

**  Sic  na  edição  de  Goa,  mas  deve  ler-se  cua;  e  as  cedilhas  são 
postas  em  todo  o  livro  com  uma  grande  irregularidade. 


366  Colóquio  qiiinqiiagesimo  sétimo 

por  mercadoria,  e  á  Arábia  e  Pérsia ;  donde  vai  a  Alexan- 
dria e  a  Gida,  e  dahi  a  Veneza  e  a  outras  partes;  e  ganha- 
se  nella  dinheiro,  levandoa  por  mercadoria  pêra  lá,  e  tam- 
bém a  fazem  em  conserva  de  açucare,  e  he  milhor  que 
gengivre.  E  isto  he  noto  a  todos,  e  por  aqui  vereis  que  não 
he  arvore,  como  alguns  falsamente  diseram*. 

RUANO 

Já  he  necessário  que  venhamos  ás  duvidas  que  disto  na- 
cem.  E  digo  que  Avicena  diz  que  a  ■{edoaria  sam  humas 
talhadas  semelhantes  ás  da  aristologia,  e  que  aquella  plan- 
ta he  milhor,  que  nasce  perto  do  napelo  ou  rabaça  de  Pêro 
Jogral,  porque  tira  ao  napelo  a  virtude  venefica  ou  mortífe- 
ra, e  que  he  triaga  dos  venenos,  em  especial  da  bicha  e  do 
napelo.  E  no  Capitulo  745**  diz  do  :{erinnhet  que  he  erva  se- 
melhante ao  cipero,  ou  junca  avelanada,  senão  que  he  me- 
nos odorífera,  e  em  outra  letra  diz  que  he  arvore:  no  pêra 
que  aproveita  diz  que  presta  pêra  as  cousas,  que  Serapio 
diz  da  -edoaria.  Serapio  capitulo  172  diz  que  '{erumbet  que 
he  :^edoaria,  por  autoridade  de  Isac  Aben  Amarani;  que 
:[erumbet  sam  raizes  redondas,  semelhantes  á  arislologia,  e 
sam  semelhantes  na  cor  e  no  sabor  ao  gengivre;  e  que  se 
trazem  de  Seni.  Ora  veja  isto,  e  digame  o  que  lhe  parece. 

ORTA 

Avicena  não  vio  senam  a  :^eriimba  ou  lerumbet,  como 
nós  dizemos  \  e  porque  huma  delias  vai  ao  estreito  de  Meca, 
feita  em  talhadas  redondas,  e  outras  compridas,  pode  ser 
que  dahi  tomou  ocasiam  de  cuidar  que  eram  de  duas  ma- 
neiras, scilicet,  ^edoaria  e  :{enimba.  E  porque  nunca  vio 
as  folhas,  nam  a  pintou,  senam  como  a  levam  da  índia,  sci- 


*  A  traducção  de  Andreas,  porque  uma  letra  diz  erva  e  outra  lignum 
(nota  do  auctor).  EfFectivamente  o  capitulo  747,  De  ^urwnbet  diz,  por 
engano  do  traductor,  Est  lignum  símile  cypero. 

*  *  Aliás  747. 


Da  :{edoarta  e  lerumbet  367 

licet,  as  raizes  como  as  do  gengivre.  E  ainda  agora  tem 
diversos  preços  a  ^erumba  redonda  da  comprida;  e  também 
o  gengivre  pequeno  vai  menos  que  o  grande.  E  o  que  diz 
que  a  que  nasce  vezinha  do  napelo  he  a  melhor,  isto  he 
muyto  fabuloso,  porque  de  napelo  ha  pouco,  e  a  :{eriimba 
nasce  em  todo  cabo  que  a  semeam;  posto  que  a  maior  can- 
tidade  é  no  Malavar,  no  mato;  e  a  que  semeam  nestas  terras 
he  muyto  pouca,  e  o  mato  nam  he  aparelhado  a  criar  o  na- 
pelo; e  sei  o  nome  do  napelo  na  linguoa  d'esta  terra,  nun- 
qua  me  diseram  os  de  Malavar  que  nascia  vezinha  ao  na- 
pelo. E  do  leynimbet  diz  o  mesmo  Avicena  que  a  erva  he 
semelhante  a  junca,  e  outra  letra  enmendada  diz  que  he 
lignum  ou  arvore;  por  onde  vereis  que  o  nam  conheceo 
Avicena;  pois  nam  he  arvore,  senam  hum  legume.  E  no 
Serapio  não  está  escrita  aquella  diçam  expositiva,  scilicet, 
\edoaria:  que  he  isto  acreçentado  do  treslador,  que  não 
conheceo  a  deferença  de  :{edoaria  a  ieriimbet\  e  porém  diz 
ao  cabo  que  se  trazem  estas  raizes  de  Seni.  E  na  índia  não 
nascem  estas  raizes,  senam  na  China;  e  achamse  poucas 
na  índia,  trazidas  da  China,  como  já  vos  disse;  asi  que 
ha  lerumba  na  índia,  e  a  ^edoaria  na  China. 

RUANO 

E  como  sabeis  que  China  quer  dizer  Seni? 

ORTA 

Por  muytas  raz5es  cá  o  podeis  saber.  Mas  por  aguora 
VOS  abaste  saber  que  raban  seni  quer  dizer  rai^  da  china; 
e  asi  o  he,  porque  o  bom  7-uibarbo  não  o  ha  senam  na  China ; 
asi  que  nisto  não  tendes  que  duvidar. 

RUANO 

António  Musa,  recupilando  os  ditos  de  todos,  diz  uma 
grande  deshonra  da  ^edoaria  chamandoa  barbara;  e  o  nome 
de  ser  bárbaro  he  que  não  lhe  pode  dizer  maior  pragua;  e 
porque  Serapio,  falando  de  ^erumba,  entendeo  a  :{edoaria, 
porque  o  que  diz  delia  Simão  Genuense  mostra  serem  di- 


368  Colóquio  quinqiiagesimo  sétimo 

versas  mezinhas,  porque  Mesue,  descrevendo  o  letuario  de 
gemis,  faz  mençam  da  ^edoaria  em  certo  peso,  e  mais  abaixo 
falia  do  :{erumbet  em  outro  peso,  e  diz  mais  que  alguns  outros 
diseram  que  :{edoaria  era  arnaho^  ou  :{arnabo,  que  acerca 
de  Paulo  e  Aecio  he  arnabo,  e  que  he  do  género  de  cheiros, 
e  alegua  outros,  e  aos  que  dizem  ser  bem  álbum  e  rubeum, 
e  outros  carpesio\  e  assi  que  não  sei  o  que  se  possa  nisso 
dizer. 

ORTA 

O  carpesio  craro  he  não  ser  nenhuma  destas  mezinhas, 
e  asi  bem  álbum,  item  rubeum;  porque  nesta  terra  não  ha 
tal  mezinha,  senam  a  que  vem  do  Estreito,  que  se  cá  vende 
bem.  E  de  estoutra  muyta  ha  nesta  terra,  e  he  mu}!©  de- 
ferente. E  o  carpesio  claro  he  nam  o  ser;  pois  hum  he  raiz 
e  outro  he  grãos.  E  larnabo  não  pode  ser,  porque  he  ar- 
vore grande,  como  diz  Avicena,  e  mais  he  pouco  cheirosa, 
e  larnabo  ou  arnabo  he  arvore  muyto  grande,  e  a  ledoaria^ 
ou  lermnba  he  legume.  E  com  isto  respondeis  a  Fuchsio 
e  Mateolo,  e  Ruelio,  e  aos  Frades,  que  dizem  casi  huma 
cousa  (i). 


Nota  (i) 

Este  ultimo  Colóquio  da  serie  alphabetica  suscita  algumas  duvidas 
e  difíiculdades.  Para  as  expor  com  a  possivel  clareza,  necessitamos  dizer 
primeiro  o  que  hoje  se  julga  geralmente  ser  a  ^^edoaria  e  o  ^erurtibet, 
seguindo  principalmente  os  excellentes  capitules  de  Dymock  sobre 
o  assumpto. 

A  :;edoaria  amarella  procede  da  Ciix-ciinia.  aromática, 
Salisb.  (Curcuma  Zedoaria,  Roxb.),  uma  planta  da  familia  das  Seita- 
minece. 

Este  rhizoma  é  o  vanaharidra  dos  livros  sanskritos,  e  parece  também 
ser  o  jij-^^,  djeduar  ou  geiduar  dos  árabes  e  de  Avicena.  É  conside- 
rado medicinal  pelos  hindus,  e  nomeadamente  útil  em  casos  de  envene- 
namentos, mordeduras  de  cobras  e  outros.  D'aqui  lhe  veio  um  dos  nomes 
sanskriticos,  f7ff^rjj>  nirvishã,  e  d'aqui  sem  duvida  procedia  também 
■aquella  idéa  de  Avicenna,  de  ser  melhor  o  que  crescia  junto  ao  napello, 
■e  enfraquecia  o  napello.  A  Curcuma  aromática  é  espontânea  no  Concan, 


Da  '{edoaria  e  ^erumbet  869 

e  também  no  Malabar,  d'onde  hoje  se  abastece  em  grande  parte  o  mer- 
cado de  Bombaim.  A  droga  parece  ser  bastante  commum. 

A  :;edoaria  cinzenta   procede   da    Curcuma    Zecloaxda, 

Roscoe  (Curcuma  Zerumbet,  Roxb.),  do  mesmo  género  e  família  que 
a  precedente. 

Esta  droga  é  o  ^L^jj,  ^erumbad  (nas  versões  ^erumbeíj  de  Avi- 
cenna,  Serapio,  e  em  geral  dos  árabes.  É  chamada  kachúra  pelos  hin- 
dus, do  sanscrito  <:^^^à  \  karchúrã;  e  é  igualmente  a  droga  de  que 

Rhede  falia  sob  o  nome  geral  de  kua,  dado  também  no  Malabar  a 
mais  espécies  do  mesmo  género.  A  planta  parece  ser  bastante  vulgar 
na  índia  meridional,  e  é  commum  nas  hortas  de  Bombaim,  onde  Dy- 
mock  julga  teria  sido  introduzida  pelos  portuguezes.  A  droga  encon- 
tra-se  com  frequência  nos  bazares,  e  tem  algumas  applicaçóes  medici- 
naes,  sendo  também  usada  como  condimento  ou  especiaria.  Dimock  é 
de  opinião,  que  a  ^^edoaria  longa  e  a  ^edoaria  redonda  do  commercio 
procedem  ambas  d'esta  espécie,  e  são  simples  formas  do  mesmo  rhi- 
zoma.  Esta  ^edoaria  vinha  desde  tempos  antigos  para  a  Europa,  onde 
foram  conhecidas  as  suas  variedades  longa  e  redonda. 

Isto  posto,  vejamos  o  que  diz  Orta.  É  claro  que  elle  conheceu  per- 
feitamente o  rhizoma  da  Curcuma  Zedoaria,  de  que  falia  sob  o  nome 
de  ^erumbet.  Dá-nos  todos  os  nomes  vulgares,  que  citámos  acima:  «ze- 
rumba»  entre  os  árabes,  «cachorá»  entre  os  hindus,  «cua»  no  Malabar. 
Conheceu  as  duas  formas  redonda  e  longa;  e  está  perfeitamente  ao 
facto  do  commercio  que  para  a  Europa  se  fazia  n'esta  droga. 

Não  é  igualmente  claro  que  elle  se  refira  ao  rhizoma  da  Curcuyna 
aromática,  pelo  nome  de  ^edoaria  e  geiduar.  Por  um  lado,  é  favorável 
a  esta  identificação  o  facto,  que  elle  cita,  de  o  darem  para  a  amorde- 
dura  de  uma  bicha»;  mas,  por  outro,  a  sua  descripção  concorda  mal 
com  aquelle  rhizoma,  que  não  é  «lúcido»,  nem  tem  o  tamanho  e  a  fei- 
ção de  uma  bolota.  E  não  é  provável,  que  nem  elle,  nem  os  boticários 
de  Chaul  e  de  Goa,  conhecessem  uma  droga,  que  a  final  não  é  rara  na 
índia.  O  que  parece  ser  é  que  Orta  confundisse  algumas  cousas  que 
lhe  disseram  do  verdadeiro  geiduar,  procedente  da  Curcuma  aromá- 
tica, com  uma  droga  rara  da  China,  que  viu  em  poder  do  Nizam  Scháh. 
Esta  droga  poderia  ser  algum  rhizoma  ou  tubérculo  de  outra  Curcuma, 
vindo  d'aquellas  regiões.  Uns  tubérculos  de  uma  Curcuma,  descriptos 
e  figurados  por  Hanbury  nas  suas  Notes  on  chinese  Matéria  Medica, 
procedentes  da  China,  onde  são  chamados  ynih-kin,  corresponderiam 
approximadamente  á  descripção  de  Orta.  Não  é  possivel  affirmar,  que 
esta  fosse  a  sua  ^edoaria,  mas  seria  alguma  cousa  similhante. 

(Cf.  Dymock,  Mat.  med.,  769,  771;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  i,  490,  Han- 
bury, Science  papers,  254.) 


COLÓQUIO  QUINQUAGESIMO  OITAVO 

QUE  TRATA  DE  ALGUMAS  COUSAS,  QUE  VIERAM  Á  NOTICIA 
do  autor,  e  das  mezinhas  ditas  atraz;  e  asi  se  acrescentam  outras 
algumas  mezinhas  ou  frutas;  e  falia  de  uma  maneira  de  arroz  que 
tem  manteigua  em  si,  e  do  betre,  e  da  cidade  de  Badajoz,  e  da  ca- 
nafistola,  e  do  cirifoles,  mezinha  louvada  pêra  as  camarás;  e  da  ci- 
dade de  Chitor,  e  do  marfim,  e  dos  mangustáes,  e  das  patecas,  e  do 
pao  da  China,  e  de  huma  pedra  muyto  louvada  contra  a  peçonha,  que 
he  achada  no  fel  do  porco  espinho. 

INTERLOCUTORES 

O  LICENCIADO  DIMAS  BOSQUE,  RUANO,  ORTA 

DIMAS  (I) 

Dos  amiguos  todalas  cousas  sam  commuas;  e  asi  tem  os 
amiguos  licença  pera  enmendar  as  cousas  dos  que  o  forem 
seus:  quanto  mais  que  vós  me  rogastes,  que  vos  dixese  as 
cousas  que  por  fora  soubesse  pera  as  praticarmos  ambos, 
e  ver  se  podiamos  desencovar  a  verdade  nam  sabida  de  todos : 
e  já  antes  me  tinheis  dado  licença  pera  enmendar  o  que  me 
parecesse,  e  por  isso  venho  aguora  alembrarvos  algumas 
cousas :  he  necessário  que  de  novo  me  deis  licença  pera  isto. 

ORTA 

Vós  a  tendes  Já,  escusado  he  pedila  de  novo,  porque  an- 
tes me  fazeis  grande  mercê  nisso. 

DIMAS 

Do  arroz  que  comemos,  vos  quero  dizer  que  vem  de  Jaoa 
a  Malaca  hum  arroz  que  chamam  pulot,  o  qual  cozendose 
somente  com  o  baíTo  da  aguoa,  apeguase  tanto  ás  mãos  e 
he  tam  húmido,  que  parece  ser  cozido  com  manteigua*. 


»  O  nome  javanez  do  arroz  é  pari,  transformado  em  pali  n'oiitfas 
linguas  do  Archipelago,  o  que  pôde  ter  dado  este  pulot.  Os  javanezes 
gabam-se  de  cultivarem  na  sua  ilha  quarenta  e  seis  variedades  de  arroz. 


372  Colóquio  qiiinquagesimo  oitavo 

ORTA 

Do  primeiro  efeito  me  não  maravilho,  que  he  de  ser  co- 
zido com  o  baífo,  como  o  cu:{ciq,  porque  destoutro  arroz 
acontece  o  mesmo  aos  que  vam  a  Portugal,  cozendoo  da 
mesma  maneira  com  aguoa  salguada,  por  falta  da  doce:  mas 
essoutro,  que  he  de  ser  manteiguoso  e  húmido,  nunqua  o 
esprementei,  porque  não  sam  muito  amiguo  de  arroz. 

DIMAS 

Pois  perguntai  a  toda  a  gente  de  vossa  casa,  e  dirvoloam; 
quanto  mais  que  eu  o  esprementei  já,  e  podeisme  dar  nisto 
fé. 

ORTA 

Em  tudovola  dou;  e  dizeime  o  que  vos  disseram  os  or- 
telões  da  vossa  ilha,  do  betre,  se  vos  disseram  mais  alguma 
cousa  nova? 

DLMAS 

Nunqua  pude  saber  mais  que  dizeremme  que  se  quer 
muj^to  mimoso,  e  que  asi  quando  se  colhe  nam  he  bom 
ser  tocado  muyto  com  a  mão;  sei  que  não  quer  muita 
quentura,  nem  muyta  frialdade. 

ORTA 

Pareceme  que  tendes  rezam,  porque  este  betre  não  se  dá 
no  sertam,  e  de  cá  da  fralda  do  mar  he  levado  para  o  Bala- 
guate;  e  mais  sei  que  não  se  dá  na  China  por  ser  terra  mu3'to 
fria;  nem  em  Moçambique,  nem  Çofala,  por  ser  terra  muyto 
quente,  e  em  todas  estas  terras  fazem  muyto  por  elle*. 

DIMAS 

Também  achei  escrito  em  hum  vosso  colóquio,  dito  acaso, 
que  a  cidade  de  Badajoz,  dita  asi  dos  Castelhanos,  se  avia 
de  chamar  Guadajoz,  que  quer  dizer  Rio  de  tio^es:  e  achei 


*  Do  betre  falia  Orta  no  Colóquio  seguinte. 


Das  cousas  novas  378 

escrito  eu  em  hum  escritor  moderno  muyto  lido^  e  muyto 
douto  e  curioso,  chamado  Guaspar  Barreiros,  que  diz  que 
os  Mouros  lhe  corromperam  o  nome,  porque  se  chamava 
primeiro  Pax  Augusta,  e  porque  os  Mouros  não  tem  p,  e 
põem  o  b  em  seu  lugar,  lhe  chamaram  Bagus. 

ORTA 

Eu  achei  isto  escrito,  e  pareceme  o  autor  homem  de 
muyto  bom  juizo  e  muito  lido;  mas  certamente  que  a  diri- 
yaçam  me  parece  muyto  torta,  e  pareceme  milhor  o  que  eu 
diguo.  E  mais  confessando  isto  os  mesmos  Mouros,  e  ser 
a  fama  comua.  E  já  pode  ser  que  me  enguane  eu,  porque 
a  todoUos  mais  dos  homens  lhe  parecem  milhor  as  suas  cou- 
sas que  as  alheas;  e  quanto  he  ao  que  diz  que  os  Mouros 
nam  tem  p,  verdade  he  que  nam  tem  o  próprio  caratere 
do  p;  mas  servemse  por  p  pondo  no  b  dous  pontinhos,  e  en- 
tonces  pronunciam  p*. 

DIMAS 

Do  que  me  encomendastes  da  -canajistola^  se  agora  avia 
em  Malaca,  soube  que  ha  muyta  em  Malaca,  e  em  Siam, 
e  em  todas  essas  partes.  E  também  ainda  que  estas  cousas 
nam  relevam  muyto,  porque  não  sam  mais  que  curiosida- 
des, vos  alembro  que  falaes  muitas  vezes  na  cidade  Chitor, 
e  não  sei  se  sabeis  que  quer  dizer  sombreiro;  porque  asi 


*  Orta  já  havia  fallado  da  etymologia  de  Badajoz  (ante,  pag.  85  e  89), 
e  volta  agora  ao  assumpto,  pelo  que  leu  no  livro  de  Gaspar  Barreiros, 
um  livro  moderno  então,  publicado  no  anno  de  i56i,  e  que  elle  já  tinha 
na  índia.  Effectivamente  se  deram  variadas  etymologias  do  nome  de 
Badajoz:  derivou-se  de  rio  ou  pai^  de  no^jes  (Orta  e  Nebrixa);  depaij 
dos  alimentos  (Fr.  João  de  Sousa  e  Marmol);  da  corrupção  do  nome 
latino  Pax  Augusta,  em  Bagus  ou  Badaxus  (Gaspar  Barreiros  e  mui- 
tos outros). 

Orta  volta  também  á  questão  do  p  arábico,  que  evidentemente  o 
intrigava.  Havia  dito  antes,  que  era  similhante  ao  f,  do  que  procurámos 
dar  uma  explicação  (vol.  i,  pag.  i65);  e  agora  diz  ser  similhante  ao  b 
com  mais  dois  pontinhos;  isto  é  verdade,  v^^  e  v^_>,  somente  este  p 
não  pertencia  ao  alphabeto  arábico  e  sim  ao  persiano. 


374  Colóquio  quinquagesimo  oitavo 

o  escreve  hum  cronista  da  índia,  e  não  fora  máo  meterdes 
isto  ahi,  porque  folgua  a  gente  de  ouvir  cousas  novas. 

ORTA 

As  diriv^acÕes  dos  nomes  sam  mui  más  de  acertar  nas 

> 

próprias  regiões  onde  nacemos,  e  onde  sabemos  tam  bem 
as  linguoas;  que  fará  nas  estranhas,  onde  escasamente  sa- 
bemos hum  vocábulo,  quanto  mas  saber  a  dirivaçam  delle. 
E  portanto  vos  diguo  que  cetri  quer  dizer  sombreiro,  e  al- 
guns lhe  chamam  chatri.  E  falando  com  alguns  Guzarates 
sobre  isto,  me  dixéram  que  chitor  queria  dizer  hum  pássaro 
asi  chamado,  e  mais  propriamente  queria  dizer  debuxo  ou 
pintura;  e  esta  dirivaçam  me  parece  que  lhe  quadra  mais: 
mas  como  nisto  vai  pouco,  seja  como  vossa  mercê  mandar; 
mas  verdadeiramente  a  cidade  he  hum  debuxo  ou  pintura, 
segundo  dizem  os  que  a  viram,  porque  eu  não  a  vi*. 

DIMAS 

Estas  cousas  que  até  aqui  vos  dixe,  sam  flóreos  de  esgri- 
midores;  mas  esta  que  aguora  vos  direi  he  de  huma  mezi- 
nha muyto  boa  pêra  as  camarás.  E  já  sabeis  que  huma  das 
principaes  curas,  que  avemos  de  exercitar  nesta  terra,  sam 
as  camarás  •,  porque  ainda  que  aja  muytas  mezinhas  pêra 
curarias,  ás  vezes  achaes  algumas  camarás  antiguoas,  que 
per  nenhuma  maneira  se  podem  arrincar:  e  vem  depois 
huma  velha,  e  arrinca  as  com  huma  mezinha  simple  \  e  por 
isso  traguo  a  mezinha  aqui  pêra  vola  amostrar. 

RUANO 

Diganola  vossa  mercê,  e  também  nos  dirá,  se  a  espre- 
mentou  já. 


*  Chitra  i-cjpj  significa  como  substantivo /"/«íurj  ou  maravilha;  mas 
é  propriamente  um  adjectivo,  significando  manifesto,  visivel.  Chitor,  a 
celebre  fortaleza  do  paiz  de  Méuar,  seria  pois  «a  (fortaleza)  vistosa», 
a  «maravilhosa».  Como  se  vê,  a  derivação  para  que  Orta  se  inclina  é 
perfeitamente  acceitavel. 


Das  cousas  novas  SyS 

DIMAS 

Nunca  ouvistes  dizer  marmelos  de  Bengiiala? 

ORTA 

Si  ouvi;  e  algumas  vezes  os  vi  em  conserva,  e  pareceme 
Cousa  muyto  estitica,  e  os  físicos  Guzarates  usam  desta 
frua,  sendo  elles  novos  e  tenros,  em  conserva  de  vinagre 
(a  que  elles  chamam  achar)  e  em  conserva  de  açucare,  como 
nós  asamos;  e  sempre  aquelle  sabor  estitico  lhe  dura  por 
mais  maduro  que  seja. 

RUANO 

Já  qae  concordaes  ambos  em  ser  cousa  estitica  e  boa 
pêra  camarás,  será  bem  que  diga  o  doutor  primeiro  os  no- 
mes e  feições  desta  fruta  ou  arvore. 

ORTA 

A  esta  fruta  lhe  foy  chamado  o  nome  de  tnarmelo  de 
Bengiiala,  porque  em  hum  navio  meu  se  trouxe  esta  con- 
serva, e  veo  de  mestura  com  outras,  que  me  de  lá  vieram. 
E  já  veo  com  nome  de  ser  boa  pêra  as  camarás.  E  gaban- 
doa  eu  muyto  a  hum  meu  amiguo,  homem  de  muyto  bom 
saber,  que  muytas  vezes  andava  á  caça  no  mato,  me  dixe 
que  não  se  avia  de  chamar  este  pomo  marmelo  de  Ben- 
giiala, pois  aviam  muytas  arvores  nas  terras  firmes  desta 
ilha,  na  qual  ilha  avia  alguns.  E  pois  quereis  saber  o  nome 
desta  fruta,  diguo  vos  que  em  Benguala,  e  em  todos  os  ca- 
bos se  chama  cirifoles  e  belas.  E  porque  eu  sabia  que  se 
chamava  beli  em  Baçaim,  perguntei  a  estes  físicos  da  terra 
qual  era  o  seu  próprio  nome,  se  cirifole  ou  beli;  e  elles  me 
dixeram  que  cirifole  era  o  nome  vulguar,  e  porém  que  beli 
era  o  nome  dos  físicos,  e  que  elles  o  tinham  em  suas  escri- 
turas. He  o  arvore  do  tamanho  de  huma  oliveira,  o  que  he 
maior:  as  folhas  sam  como  de  peixigueiro  e  o  cheiro  também 
de  peixeguos;  dá  pouca  frol,  e  duralhe  pouco;  sam  em 
principio  tenros,  e  a  cor  he  verde  escura,  e  a  casca  he  del- 
guada  neste  principio,  e  depois  se  vai  engrossando,  fazen- 
dose  seca,  até  quando  he  madura  a  fruta,  porque  entonces 
tem  a  casca  casi  tam  dura  como  a  do  coquo;  e  no  principio 


376  Colóquio  quinquagesimo  oitavo 

he  do  tamanho  de  huma  laranja  pequena,  e  vem  a  crecer 
tanto,  que  muytas  vezes  he  maior  que  hum  grande  mar- 
melo; do  qual  tiram  huma  medula  (que  quando  he  maduro 
he  já  mu3'-to  teso)  e  a  fazem  em  talhadas  grandes,  e  depois/ 
em  conserva  de  açucare,  como  já  dixe;  e  quando  sam  maiy 
tenros  e  novos,  os  comem  em  achar  ou  salguados,  e  isto 
he  o  que  sei  desta  fruta  ou  mezinha.  Aguora  pode  diyer 
o  senhor  licenciado  a  experiência  que  tem  desta  mézinhi,  e 
o  que  com  ella  lhe  aconteceo;  porque  elle  também  he  de  nu- 
mero dos  físicos  amadores  da  verdade.  y 

DIMAS  ' 

Estando  o  visorey  Dom  Constantino  em  Jafanapatam,  com 
os  contínuos  trabalhos  da  guerra,  e  muytas  aguoas,  em  que 
sempre  os  homens  andavam  metidos,  e  falta  de  mantimen- 
tos, adoeceo  muyta  gente  de  camarás,  a  cura  das  quaes 
todas  passou  por  minha  mão,  por  nam  aver  outro  físico 
na  armada.  E  como  as  medecinas,  que  de  cá  se  levaram, 
eram  já  gastadas  na  ilha  de  Manar,  com  os  doentes  de  duas 
náos  do  reino,  que  a  ella  vieram  ter  tam  mal  tratados  que 
em  espaço  de  quarenta  dias  curei  passante  de  trezentos 
homens;  e  não  avendo  depois  com  que  acudir  ás  camarás, 
que  tanto  trabalho  davam  ao  exercito,  foime  neçasario  e 
forçado  esprementar  o  que  destes  marmelos  da  gente  da 
terra  tinha  ouvido;  e  com  elles  curei  a  muytas  pessoas, 
mandando  fazer  mivas  e  emprastos  pêra  o  estomaguo  e  bar- 
rigua.  Mandei  também  fazer  marmelada,  a  qual  não  sabia 
mal,  antes  tinha  hum  azedo  de  muyto  guosto;  mandava  aos 
doentes  que  os  comesem  asados  com  açucare;  e  mandei 
também  fazer,  no  tempo  que  duravam  estas  camarás,  cris- 
teis  do  cozimento  das  suas  cascas,  e  faziam  o  efeito  nam 
muyto  deferente  das  halaiistias  e  cousas  estiticas,  que  cá 
usamos;  de  modo  que,  com  estes  chamados  de  nós  mar- 
melos, foy  remediada  a  falta  das  outras  mezinhas.  Huma 
cousa  não  posso  leixar  de  vos  contar,  que  com  estes  mar- 
melos me  aconteceo.  Tinha  Agustinho  Nunez,  fílho  de  Lio- 
nardo  Nunez,  físico  mór  destes  reinos,  muitos  dos  seus  sol- 


Das  cousas  novas  877 

dados  doentes;  e  eu  mandei  assar  dous  marmelos  a  hum 
seu  negro,  pêra  dar  a  hum  soldado  enfermo;  e  arrebentando 
no  foguo  estes  marmelos,  queimou  o  miolo  delles  o  negro 
que  os  assava,  de  maneira  que  parecia  ser  queimado  com 
panella  de  pólvora,  porque  nos  peitos  e  rosto  e  braços  não 
deixou  cousa  que  não  abrasáse:  pareceme  que  este  foguo 
obrou  mais,  porque  a  matéria  em  que  se  fundou,  foi  mais 
estitica  e  ajuntada;  porque  o  foguo  queima  mais  posto  em 
ferro  ou  em  pedra,  que  em  estopa.  Isto  he  o  que  vi  desta 
mezinha,  e  o  que  delia  posso  testemunhar. 

ORTA 

Alem  de  o  vossa  mercê  dizer,  traz  isso  muyta  rezam; 
porque  aquelle  miolo  de  dentro,  quando  o  fruto  não  he  muyto 
seco,  he  tam  glutinoso  e  pegadiço,  que  aos  que  o  comem, 
não  se  pode  desapeguar  das  mãos. 

RUANO 

Eu  levarei  alguma  jarra  de  conserva  destes  marmelos,  se 
os  puder  achar  (2). 

ORTA 

Buscalosemos,  e  fazervosei  delia  serviço.  E  emtanto  me 
dizei  se  vos  trouxe  algumas  cartas  de  Malaca  aquelle  catur 
que  ontem  chegou  de  Cochim,  porque  traz  novas  que  ficam 
já  ahi  as  náos  de  Malaca. 

DIMAS 

Trazme  cartas  e  novas  da  minha  fazenda:  folguo  de  achar 
aqui  ao  senhor  doutor  Ruano,  porque  veja  a  feiçam  dos  do- 
riôes  e  mangustães^  ante  que  se  vá  pêra  o  reino,  porque 
me  vem  aqui  de  cada  hum  seu  pomo  feito  de  cera. 

RUANO 

Posto  que  este  anno  me  não  vou  já  pêra  o  reino,  e  en- 
verna  cá  a  náo,  folgarei  muito  de  ver  esses  pomos. 

ORTA 

Muito  fermoso  pomo  he,  porque  he  tamanho  como  huma 
muyto  grande  pinha,  e  he  da  mesma  feiçam  da  pinha,  senão 


3  78  Colóquio  quinquagesimo  oitavo 

que  tem  os  bicos  mais  delguados,  e  sam  como  os  do  ou- 
riço cacheiro,  animal  conhecido. 

DIMAS 

Na  minha  carta  diz  que  ha  outros  mais  grandes  que  estes, 
a  que  elles  soem  chamar  cabeça  de  ali/ante:  tem  dentro  de 
quatro  camarás  pêra  cima  (a  que  elles  chamam  peitacas); 
a  folha  he  como  de  huma  lança  pequena,  dividida  pello  meo 
com  dous  fios,  e  outros  que  se  tecem  pêra  as  ilharguas;  he 
muyto  verde  o  arvore,  e  muyto  grande  e  bem  copado;  di- 
zem que  não  dá  fruto,  senão  de  40  annos:  o  pomo  quando 
he  maduro  tem  o  verde  mais  craro. 

ORTA 

Hum  homem  casado  de  Malaca  me  disse  que  dava  fruto 
aos  quatro  annos,  e  que  elle  o  vio. 

DIMAS 

Seja  o  que  for,  que  a  verdade  não  se  pode  saber  tão  des- 
tintamente.  E  asi  me  escreve  do  doriam,  que  o  miolo  de 
dentro  he  como  nata.  E  vedes  aqui  o  mangostajn:  também  he 
verde  escuro;  e  do  tamanho  como  huma  laranja  pequena*. 

ORTA 

Pois  aqui  estam  plantadas,  asi  daram  fruto;  e  veremos 
por  esperiencia  a  como  sabem,  se  nos  Deos  der  dias  de 
vida. 

DIMAS 

Também  me  lembra  que,  lendo  o  vosso  capitulo  do  mar- 
fim, vi  que  nam  falaes  ahi  no  marfim  mineral,  do  qual 
fala  Andreas  de  Laguna.  Huma  de  duas  cousas  me  parece 
nisto:  ou  que  não  vistes  este  autor,  lendo  todo  o  capitulo 
que  escreveo,  ou  que  deve  ser  algum  vosso  amiguo,  e  não 


*  Sobre  o  dorião  veja-se  antes  (i,  297  e  3oi);  e  sobre  o  mangostão 
(11, 161, 162). 


Das  cousas  novas  879 

o  quereis  reprender.  E  já  pode  ser  que  não  lhe  lestes  o  ti- 
tolo,  pois  lhe  erraes  nome,  e  lhe  chamaes  Tordelaguna,  cha- 
mandose  elle  Andreas  de  Laguna. 

ORTA 

Fala  esse  Laguna  huma  cousa  tam  fora  de  rezam,  que  ouve 
vergonha  de  reprender  isto,  pois  de  si  he  tam  visto  ser  falso; 
e  mais  elle  não  alegua  autor  algum  que  o  digua;  asi  que 
pois  só  quer  dizer  a  falsidade,  com  elle  fique  o  erro.  E 
quanto  he  a  dizer  de  que  lhe  errei  o  nome,  não  me  ponhaes 
culpa;  porque  nao  li  bem  o  titolo,  e  mais  porque  conheci 
em  Alcalá  a  ouvir  medecina  hum,  que  se  chamava  Torde- 
laguna, o  qual  avia  sido  buticairo,  e  sabia  algum  pouquo 
de  arábio,  e  era  grande  ervolario,  e  por  isso  me  pareceo  que 
devia  ser  esse;  mas  folguo  de  o  não  ser;  porque  o  outro 
era  meu  amiguo,  e  não  avia  de  folgar  de  errar  de  tal  ma- 
neira, como  este  errou*. 

RUANO 

Se  andamos  a  acusar  erros,  Leonardo  Fuchsio,  homem 
douto,  diz  que  não  ha  marfim  verdadeiro  no  mundo. 

ORTA 

Ha  humas  mentiras  tão  grossas,  que  não  he  bem,  nem  me- 
recem ser  reprendidas,  senão  leixalas  passar  avante,  até  que 
dêem  doze  badaladas,  como  relógio  de  meo  dia.  Este  homem 
ha  muytos  annos  que  escreve,  e  eu  não  acustumo  nomealo 
poUo  seu  nome;  porque  ainda  que  soube  na  física  bem, 
soube  muyto  pouco  em  condenar  sua  alma,  e  ser  hereje  con- 
denado por  luterano;  porque,  alem  de  os  seus  livros  virem 
no  catalago  condenados,  hum  religioso  da  ordem  dos  Pré- 
guadores  me  dixe  que  o  conhecia  de  Alemanha,  e  que  pra- 
ticara muytas  vezes  com  elle,  e  que  nunqua  o  poude  con- 
vencer; e  por  esta  causa  me  vieram  a  avorrecer  suas  obras; 


*  Eífectivamente  em  todo  o  livro,  Orta  escreveu  Tordelaguna,  que 
n'esta  edição  substituímos  por  Laguna,  em  vista  da  emenda  feita  n'estç 
Colóquio. 


AV  M.    •■ 


38o  Colóquio  qiiinquagesimo  oitavo 

e  ainda  que  a  medecina  não  he  ciência  de  religiam  cristan, 
comtudo  me  avorreceo  o  autor,  e  foi  muyto  desenvergo- 
nhado  em  dizer  que  nao  avia  marjim  verdadeiro,  avendo 
tantos  alifantes  em  todalas  bandas  da  índia,  e  da  Etiópia,  e 
serem  levados  a  Portugal.  Parece  que  os  Luteros  devem  ter 
no  inferno  algum  marfim^  que  seja  guardado  pêra  elles*. 

RUANO 

Pareceme  que  se  pudera  escusar  Andreas  de  Laguna; 
porque  me  mostrastes  aqui,  ha  poucos  dias,  cornos,  que 
criavam  raizes  no  cham,  e  eu  os  vi  com  muyto  grandes 
raízes. 

ORTA 

He  verdade  que  vos  mostrei  isto,  e  ha  muyto  nesta  terra, 
por  ser  húmida**;  mas  o  marjim  não  se  enterra,  nem  ha  ma- 
neira disso. 

DI^LA.S 

Aveis  de  escrever  desta  fruta,  que  chamam  anana\;  por- 
que certo  que  he  rey  das  frutas  no  sabor,  e  muyto  mais  no 
cheiro. 

ORTA 

Escreve  desta  fruta  Oviedo,  o  que  escreveo  das  índias 
ocidentaes,  como  de  fruta  própria  dessa  terra;  por  onde 
não  he  necesario  escrever  eu  cá  delia,  avendoa  lá,  e  na 
provinda  de  Sancta  Cruz,  chamada  de  nós  o  Brasil  (que 
he  terra  que  está  muyto  perto  de  Espanha),  onde  saberam 
milhor  escrever  delia***. 


*  Orta  conserva  todo  o  seu  bom  humor,  mesmo  n'esta  passagem, 
em  que  manifesta  uma  certa  intolerância  religiosa. 

*  *  Pela  primeira  vez  encontramos  uma  asserção  de  Orta,  da  qual 
não  podemos  dar  uma  explicação  plausível;  e  é  difficil  imaginar  o  que 
seriam  estes  cornos  enraizados. 

*  *  »  É  interessante  esta  citação  directa  da  Natural  hystoria  de  las 
índias  de  Oviedo,  á  qual,  de  resto,  Orta  se  referiu  já  mais  de  uma  vez, 
mas  sem  mencionar  o  nome.  Onde  este  diz,  que  o  Brazil  está  perto 
de  Hespanha,  quer  evidentemente  significar,  perto  das  possessões  ame- 
ricanas da  Hespanha. 


Das  cousas  novas  38 1 

DIMAS 

Lendo  das  patecas  achei  escrito,  que  não  eram  ellas  as 
balancias  de  Africa,  e  pareceme  que  nisto  vos  enganaes, 
porque  aqui  me  dixeram  homens  criados  e  nacidos  em  Aza- 
mor,  e  outros  em  Tanger  e  Arzila,  que  sam  as  mesmas  as 
balancias  de  Africa,  como  as  patecas  da  índia. 

ORTA 

Eu  não  disse  que  era  deferente  huma  fruta  da  outra,  por- 
que pêra  julgar  isto,  avia  de  conhecer  ambas  as  frutas,  e 
eu  nunqua  vi  a  de  Portugal;  mas  disse  que  se  pudiam  en- 
guanar  nisso,  porque  a  mata  destas  jca/ecas  he  muyto  defe- 
rente da  que  dá  os  melões  de  Portugal,  e  também  as  al- 
budiecas,  e  sandias  de  Gastella  sam  deferentes  das  patecas 
da  índia.  Eu  me  remeto  ás  pessoas  que  viram  humas  e 
outras*. 

DIMAS 

Também  aveis  de  acrecentar  mais  no  pao  da  China  o  que 
me  delle  escreveram;  e  he  que  se  dá  onde  o  semeam  arri- 
mado a  arvores,  assi  como  a  era. 

ORTA 

Eu  creo  isso,  pois  que  volo  escrevem  testemunhas  de 
vista*  *. 

DIMAS 

Esta  mezinha,  que  vos  quero  dizer  aguora,  he  muito  ne- 
cesaria,  porque  he  contra  a  peçonha,  e  trála  das  bandas 
de  Malaca  hum  homem  letrado,  vosso  amiguo,  que  vós  mui 
bem  conheceis. 

ORTA 

Se  he  o  homem  com  quem  faláveis  o  outro  dia,  quando 
fomos  visitar  aquelle  íidalguo,  bem  sei  que  mezinha  he.  E 


*  Sobre  esta  questão  das  patecas  e  sandias,  veja«se  a  nossa  nota 
<ii,  144). 

•  *  A  Smilax  China  é  eífectivamente  uma  planta  trepadeira. 


382  Colóquio  quinquagesimo  oitavo 

porém  não  ousarei  escrever  delia,  sem  vós  primeiro  me  di- 
zerdes o  que  tendes  nella  visto,  e  o  que  ouvistes  dizer  delia; 
porque  se  formos  duas  testemunhas,  ajuntadas  com  a  pu- 
brica  voz  e  fama  que  dessa  mezinha  ha  nas  bandas  de 
Malaca,  darlheemos  autoridade. 

DIMAS 

Já  sei  que  vistes  isso,  pellos  signaes  que  daes. 

ORTA 

Eu  não  a  vi,  mas  seu  dono  me  dixe  que  era  huma  pedra 
contra  a  peçonha,  e  que  estava  em  vossa  mão,  e  que  como 
fosse  á  sua  nola  amostraria,  e  mais  me  dixe  a  feiçam  da  pe- 
dra, e  que  lhe  foi  dada  em  Malaca  em  grande  estima;  a  qual 
pedra  se  acha  em  Pam  (terra  confim  e  acheguada  a  Malaca)* 
e  achase  metida  no  fél  do  porco  espinho,  e  a  gente  da  terra 


a  tem  em  grande  estima. 


DIMAS 


Sabeis  em  quanta  estima;  que  outra  que  se  achou  irmã 
desta  foi  mandada  dessas  terras  ao  conde  de  Redondo,  viso- 
rey  da  índia;  e  nesta  terra  de  Pam  onde  se  acha  3. pedra 
ba:[ar  em  muyta  cantidade,  ou,  ao  menos,  em  mais  canti- 
dade  que  esta,  he  esta,  como  diguo,  mais  estimada  que  a 
pedra  ba^ar  de  que  antes  escrevestes. 

ORTA 

Eu  não  me  lembro  aver  lido  desta  jceJra  do  fel  do  porco 
alguma  cousa,  e  por  isso  queria  saber  delia  alguma  espe- 
riencia. 

DIMAS 

Pois  eu  vos  darei  rezam  e  esperiencia. 


*  Pam,  as  terras  na  costa  de  leste  da  península  de  Malaca,  moder- 
namente Pahang,  ou  melhor  Páang. 


Das  cousas  novas  383 

ORTA 

Muyto  me  prometeis. 

DIMAS  * 

Pois  sabei  que  já  me  dixestes,  praticando  na.  pedra  ba^ar, 
que  diziam  os  Mouros  da  Pérsia,  que  em  três  cabos  se  achava 
a  pedra  ba^ar,  convém  a  saber,  no  Goraçone,  e  na  ilha  das 
Vacas  (perto  do  cabo  do  Comorim)  e  em  Pam,  que  he  ve- 
sinho  de  Malaca,  e  que  a  erva  que  pasce  o  gado  nestas 
partes  he  toda  de  huma  maneira-,  e  que  por  esta  causa  os 
carneiros  e  os  bodes  criam  no  estamaguo  esta  pedra,  que 
vai  contra  a  peçonha:  ora  pois  nesta  mesma  terra  se  acha 
esta  pedra  no  fél  do  porco  espinho,  e  a  gente  da  terra  co- 
nhece a  vertude  delia;  he  conforme  á  rezam  que  se  não 
enguanem.  E  quanto  he  á  esperiencia,  eu  a  dei  a  duas  pes- 
soas, ás  quaes  aviam  dado  peçonha;  e  estando  muyto  mal 
delia,  dandolhe  eu  a  aguoa  desta  pedra  se  acharam  muito 
bem.  Ora  vedes  como  compri  comvosco  e  vos  dei  a  rezam 
de  a  pedra  ser  contra  peçonha,  e  a  esperiencia,  como  a  es- 
pr  ementei. 

ORTA 

A  isso  não  ha  que  dizer  senão,  está  tudo  muyto  bem  dito; 
e  dandome  Deos  dias  de  vida,  eu  a  esprementarei  muytas 
vezes,  porque  a  peçonha  he  acustumada  muyto  nesta  terra. 

DIMAS 

Aguora  a  quero  mostrar  ao  doutor  Ruano,  e  vedela  aqui. 

RUANO 

A  cor  delia  he  vermelho  craro,  e  achoa  amarguosa  no 
guosto,  e  ao  tocar  he  como  sabam  francês,  e  asi  he  languida; 
he  necessário  que  nos  diguaes,  como  a  esprementastes,  se 
foi  em  sustancia,  se  em  vertude. 

DIMAS 

Deiteia  em  aguoa,  onde  esteve  um  pouco,  e  deilha  a  be- 
ber; os  quaes  confessavam  que  lhe  amarguava  aquella  aguoa, 
e  porém  que  ficavam  com  o  estomaguo  rijo  e  confortado. 


384  Colóquio  qiiinquagesimo  oitavo 

ORTA 

Tudo  isso  he  verdade,  porque  o  homem  cuja  he  esta  pe- 
dra me  disse,  que  elle  provou  a  aguoa  delia,  e  que  lhe  amar- 
gou, e  porém  que  ficou  muyto  contente  do  estamago,  e 
não  fora  máo  que  déreis  esta  pedra  em  alguma  aguoa  cor- 
dial. 

DIMAS 

Não  avia  ahi  outra  aguoa  aparelhada  tam  asinha,  e  avia 
periguo  na  tardança. 

ORTA 

Eu  sam  muito  satisfeito  desta  pedra,  e  se  viver  saberei 
delia  mais. 

RUANO 

E  eu  queria  aver  huma,  pêra  levar  a  Portugal. 

ORTA 

Se  me  vier  á  mão,  eu  vola  darei,  mas  não  me  parece,  por- 
que nam  ha  tantas  como  isso;  porém  o  tempo  que  descobre 
tudo,  a  descubrirá;  e  certamente  que  vos  devem  muyto  os 
físicos  desta  terra,  pois  a  esprementastes:  porque,  por  mais 
mezinhas  que  aja  contra  a  peçonha,  mais  sam  necesarias; 
e  também  parece  ser  que  em  Roma  teria  esta  pedra  muyta 
valia  (3). 


Nota  (i) 

O  licenciado  Dimas  Bosque  era  hespanhol,  natural  de  Valência,  e 
havia  talvez  começado  os  seus  estudos  médicos  em  uma  das  universi- 
dades da  Hespanha,  Salamanca  ou  Alcalá;  mas  em  todo  o  caso  com- 
pletou-os  na  universidade  de  Coimbra,  pois  elle  próprio  nos  diz  (vol.  i, 
pag.  i3)  ter  ouvido  ali  as  lições  do  doutor  Thomaz  Rodrigues  da  Veiga. 

Foi  para  a  índia,  segundo  parece,  no  anno  de  i558,  acompanhando 
o  vice-rei  D.  Constantino,  irmão  do  duque  de  Bragança.  Ia  na  qualidade 
de  medico  particular  da  sua  pessoa;  mas,  como  geralmente  succedia, 
exerceu  ali  as  funcçóes  de  physico  mór,  intervindo  officialmente  nos 
negócios  e  assumptos  da  sua  profissão.  Vê-se,  por  exemplo,  de  um  re- 
querimento do  boticário  Balthazar  Rodrigues,  que  o  vice-rei  D.  Cons- 


Das  cousas  novas  385 

tantino,  «tomando  verdadeira  informação  com  o  Licenciado  Dimas  Bos- 
que e  outros  officiaes»,  havia  mandado  emendar  uma  tabeliã  de  preços 
das  drogas.  Embora  Dimas  Bosque  não  seja  claramente  nomeado  por 
physico  mór,  é  claro  do  documento  que  elle  exercia  aquella  funcção. 

Passado  algum  tempo,  Dimas  Bosque,  sendo  provavelmente  rico,  e 
tencionando  talvez  estabelecer-se  na  índia,  adquiriu  ali  uma  proprie- 
dade. Um  certo  Jorge  Vaz  de  Magalhães,  almoxarife  da  ribeira  e  arma- 
zém de  Goa,  havia  morrido,  ficando  alcançado  com  a  fazenda  publica; 
e  fez-se  uma  penhora  nos  seus  bens  moveis  e  de  raiz.  Entre  estes  pos- 
suía elle  uma  ilha,  chamada  de  Santa  Cruz,  dos  lados  de  Goa  a  velha — 
não  o  que  hoje  chamam  a  velha  Goa,  que  então  estava  em  toda  a  sua 
prosperidade,  mas  a  Goa  antiga,  na  parte  sul  da  ilha,  fronteira  ás  terras 
de  Saífeette.  Postas  em  leilão  as  propriedades  do  fallecido  almoxarife, 
a  4  de  setembro  de  i56i,  foi  arrematada  a  pequena  ilha  de  Santa 
Cruz  «ao  Licenciado  Dimas  Bosque,  Fisico  mór  de  Sua  Alteza  nestas 
partes»,  pela  quantia  de  i  :56o  pardaus  de  tanga.  A  ilha  de  Dimas  Bosque 
ficava,  como  dissemos,  da  parte  de  Goa  velha,  isto  é,  no  rio  Zuarí,  hoje 
chamado  ás  vezes  rio  de  Mormugão.  Era  uma  verdadeira  ilha,  pois  o 
documento  tem  o  cuidado  de  explicar,  que  estava  «cercada  d'agua  por 
todalas  partes»;  e  tinha  dentro  um  palmar  de  perto  de  quinhentos  co- 
queiros, algumas  outras  arvores  de  fructo,  e  umas  casas  térreas.  D'esta 
ilha  lhe  falia  no  Colóquio  Garcia  da  Orta,  perguntando-lhe  se  os  seus 
hortelões  contaram  alguma  cousa  nova  do  betre. 

Dimas  Bosque,  como  também  elle  próprio  diz  no  Colóquio,  acompa- 
nhou D.  Constantino  na  expedição  a  Jafnapatam,  na  extremidade  norte 
da  ilha  de  Ceyláo,  empreza  brilhantemente  começada  e  terminada  com 
menos  felicidade,  da  qual  Diogo  do  Couto  dá  uma  relação  circumstan- 
ciada,  que  não  será  necessário  recordar.  O  medico  valenciano  era,  como 
nos  diz,  único  da  sua  profissão  na  grande  armada  portugueza,  e  teve 
muito  que  fazer  n'aquella  expedição,  pois  nas  demoras  em  Jafnapatam 
e  na  ilha  de  Manaar  adoeceu  muita  gente  de  dysenterias.  Parece  ter 
sido  um  medico  zeloso  e  intelligente,  fazendo  ali  as  suas  observações 
sobre  os  marmelos  de  Bengala,  de  que  fallaremos  em  outra  nota;  e 
também  o  estudo  de  um  animal  interessante,  facto  que  recordaremos 
brevemente,  por  ser  pouco  conhecido. 

Foi  o  caso,  que  andando  elle  na  praia  como  costumava,  conversando 
com  o  padre  Henrique  da  companhia  de  Jesus,  foram  ambos  chamados 
a  toda  a  pressa  por  uns  pescadores,  para  que  vissem  um  espectáculo 
maravilhoso :  ....  cum  clamoribus  piscatores  Patrem  Henricum  ad  suas 
ut  iret  scaphas  rogantes,  spectatum  ingens  miraculum  naturce.  Acaba- 
vam de  cair  nas  redes  dezeseis  cetáceos,  nove  fêmeas  e  sete  machos, 
da  curiosa  espécie,  chamada  dugong — Halicox*e  indicu»^,  Cu- 
vier.  Dimas  Bosque  examinou-os  e  estudou-os  attentamente.  Notou  a 
forma  redonda  da  cabeça;  as  orelhas  parecidas  com  as  do  homem;  os 

25 


386  Colóquio  quinquagesimo  oitavo 

olhos  muito  diversos  dos  dos  peixes,  e  cobertos  por  pálpebras;  os  den- 
tes, igualmente  diversos  dos  dos  peixes;  as  mammas  das  fêmeas  simi- 
Ihantes  ás  da  espécie  humana:  neque  eas  feminis  pendidas,  sed  quales- 
virginibus  globosas.  Apertando  aquellas  mammas,  o  medico  observou 
também  que  deitavam  leite  branco.  Examinou  igualmente  os  órgãos 
çenitaes,  e  advertiu  que  se  pareciam  muito  com  os  da  espécie  humana, 
tanto  exterior  como  interiormente,  por  onde  se  vê  que  se  não  con- 
tentou com  a  inspecção  externa  e  procedeu  a  dissecções.  Nos  mem- 
bros posteriores  é  que  se  observava  a  principal  differença  em  relação 
ao  homem,  pois  terminavam  em  uma  cauda  de  peixe,  tal  qual  como  os 
auctores  antigos  contavam  das  sereias.  Embora  sahisse  um  pouco  do 
nosso  assumpto,  pareceu-me  curioso  desenterrar  esta  noticia,  que  se 
acha  perdida  nos  volumosos  in-folios  da  Historia  da  sociedade  de  Jesus, 
Por  ella  se  vê,  como  Dimas  Bosque  estudou,  muito  antes  de  BuíTon  e 
Cuvier,  e  mesmo  de  mais  antigos  escriptores,  por  exemplo  Camper, 
aquelles  singulares  cetáceos  dos  mares  da  índia,  próximos  do  manatus, 
ou  peixe  mulher  da  Africa.  Claro  está,  que  o  seu  estudo  não  foi  compa- 
rável como  dos  grandes  naturalistas,  que  nos  occorreu  citar;  mas  não 
deixa  por  isso  de  ser  interessante,  attendendo  sobretudo  ao  periodo 
em  que  o  fez. 

Os  dugongs  não  são  raros  nas  aguas  de  Ceylão,  e  assim  como  servi- 
ram provavelmente  de  typo  ás  sereias  dos  antigos  escriptores,  é  possí- 
vel que  influíssem  igualmente  na  creação  das  rãkchasis,  as  mulheres 
malfazejas  e  cannibaes,  em  parte  terrestres,  mas  também,  segundo  pa- 
rece, aquáticas,  que  figuram  em  algumas  lendas  buddhicas  relativas 
justamente  a  Ceylão. 

Voltando,  porém,  a  Dimas  Bosque,  devo  dizer  que  nada  sei  da  sua 
vida  posterior.  Vê-se  que  elle  não  regressou  a  Portugal  com  D.  Cons- 
tantino, porque  este  entregou  o  governo  em  setembro  de  i56i,e  justa- 
mente poucos  dias  antes  o  seu  medico  havia  comprado  a  ilha  de  Santa 
Cruz,  o  que  seguramente  não  faria  no  momento  da  partida.  Alem  d'isso, 
este  Colóquio,  em  que  elle  figura,  foi  de  certo  escripto  pouco  antes  da 
impressão  do  livro,  sem  duvida  já  nos  fins  do  anno  de  i562. 

(Cf.  Rivara,  Archivo  portugue^-oriental,  fase.  v,  parte  ii,  5o5  e  877; 
Couto,  Ásia,  vir,  ix,  i,  2,  3,  4  e  3;  Orlandino,  Hist.  Soe.  Jesu,  na  Pars 
secunda  do  padre  Francisco  Sacchino,  lib.  iv,  pag.  i62;Tennent,  Cey- 
lon,  II,  557;  Vasconcellos  Abreu,  Fragmentos  de  Estudo  Scoliastico, 
pag.  5i,  Lisboa,  1880.) 

Nota  (2) 

Os  marmelos  de  Bengala  são  o  fructo  da  espécie  ^íEg-le  jVXar- 

iiielos,  Corrêa  da  Serra  (Cratceva  Marmelos,  Linn.),  uma  arvore  da 
familia  das  Aurantiacece,  ou  da  familia  das  Ruíace^r,  na  qual  se  funde 


Das  cousas  novas  887 

hoje  geralmente  a  primeira.  Esta  arvore  parece  ser  espontânea  nas 
florestas  de  algumas  montanhas  da  índia,  e  é,  alem  d'isso,  cultivada 
ali  com  muita  frequência. 

—  O  nome  «bela»  ou  «beli»  é  muito  conhecido,  e  vem  citado  por 
vários  escriptores  modernos  nas  formas  bela,  beli,  bel,  bael.  A  forma 
bél  parece  ser  hoje  a  mais  usada  em  hindustaní  e  bengali. 

—  O  nome  «cirifole»  encontra-se  no  Index  de  Piddington,  na  forma 
shreephula,  applicado  a  uma  variedade  menor  da  mesma  espécie.  A 
Pharmacographia  também  o  menciona  como  um  nome  hindustaní,  na 
forma  siri-phal;  e  no  Amaracocha  encontramos  '^TFJTc^,  sriphala,  entre 
os  synonymos  do  ^Egle  Marmelos^. 

Esta  arvore  é  sagrada  para  os  indianos,  e,  na  sua  interessante  no- 
ticia sobre  as  plantas  consagradas  ao  culto,  o  dr.  Lisboa  diz-nos  que 
ella  representa  a  trindade  hindu,  Bhrama,  Vichnu,  e  Mahecha  ou  Síva, 
mas  é  especialmente  empregada  na  adoração  de  Síva.  É  por  isso  cul- 
tivada em  todos  os  jardins -da  índia,  considerando-se  um  sacrilégio 
arrancal-a  ou  destruil-a. 

É  também  medicinal,  e,  sob  o  nome  de  vilva  ou  bilva,  vem  men- 
cionada em  muitos  livros  sanskriticos,  sendo  uma  das  dez  plantas  ou 
dasamula,  varias  vezes  aconselhadas  n'aquelles  livros,  e,  entre  estas, 
uma  das  cinco  maiores,  vrihat  pancha  mula. 

As  folhas  e  a  casca  têem  variados  usos  therapeuticos;  mas  são  so- 
bretudo os  fructos,  imperfeitamente  fnaduros,  que  gosam  da  reputação 
de  um  remédio  efficaz  na  diarrhea  e  na  dysenteria.  Depois  de  Dimas 
Bosque  e  de  Garcia  da  Orta,  Bontius  também  os  descreveu  sob  o  nome 
de  malinn  cydonium,  e  louvou  o  seu  eífeito :  indubitatum  est  remedium 
adversus  dysenierias.  Apesar  de  este  medicamento  ser  assim  conhecido 
e  celebrado  na  índia  desde  os  mais  antigos  tempos,  só  recentemente 
attrahiu  as  attenções  dos  médicos  inglezes,  sendo  incluído  em  1868  na 
Pharmacopceia  of  índia,  e  ainda  depois,  segundo  creio,  na  British 
Pharmacopcsia  (cf.  Dymock,  Mat.  vied.,  iSg;  Phannac,  116;  Piddin- 
gton, Index,  2 ;  Amaracocha,  86 ;  Lisboa,  Useful  plants  of  the  Bombay 
presicleny,  285;  Bontii  Hist.  nat.,  98). 

A  planta,  que  foi  descripta  pelo  nosso  botânico  portuguez,  Corrêa 
da  Serra,  creador  do  género  ^Hgle,  e  também  por  Roxburgh  e  por 
outros,  corresponde  de  modo  bastante  exacto  ás  indicações  dadas  por 
Orta,  sendo  de  notar  a  casca  dura  do  fructo,  e  a  consistência  extre- 
mamente glutinosa  da  sua  polpa  interior,  «glutinosa  e  pegadiça»,  como 
diz  o  nosso  escriptor  (cf  Corrêa  da  Serra,  Trans.  Linn.  Soc.,v,  222; 
Roxburgh,  Flora  Indica,  11,  5-jg). 


'  Nas  Asiaí.  Researches,  ii,  349,  se  diz  que  se  chama  shreephula,  porque  nasceu  do 
leste  de  Shree  ou  Srí,  a  deusa  da  abundância. 


388    Colóquio  quinquagesimo  oitavo  das  cousas  Jiovas 


Nota  (3) 

No  Colóquio  quadragésimo  quinto,  Orta  fallou  de  um  bejoar  de 
Malaca  e  terras  próximas,  que  devia  ser  idêntico  ou  muito  similhante 
ao  verdadeiro  be^oar  da  Pérsia  e  ilha  das  Vacas,  como  recorda  n'este 
Colóquio.  Outros  escriptores,  por  exemplo,  Teixeira,  mencionam  igual- 
mente aquelles  be^oares  de  Malaca  e  mais  terras  de  leste,  como  aná- 
logos aos  da  Pérsia,  ainda  que  de  qualidade  inferior. 

A  pedra  de  Malaca,  ou  pedra  de  porco,  era  uma  cousa  muito  diversa, 
comquanto  fosse  também  o  calculo  intestinal  de  um  animal.  Parece  que 
esta  pedra  de  Malaca  é  aquillo  que  Guibourt  descreveu,  pelos  exem- 
plares pertencentes  á  eschola  de  pharmacia  de  Paris,  sob  os  nomes  de 
be:^oard  fauve  ou  be^oard  ellagique,  e  considera  como  sendo  cálculos 
intestinaes  —  e  não  do  fel —  de  um  animal  não  determinado,  mas  pro- 
vavelmente de  um  roedor,  ordem  a  que  pertence  o  porco  espinho. 
Pedro  Teixeira,  que  falia  largamente  d'esta  pedra,  pretende  ter  visto 
o  animal  em  que  se  creava,  e  assegura  ser  um  porco  espinho :  por  ver 
si  los  animales  que  crian  estas  piedras  convenian  con  el  novibre,  hi:je, 
estando  en  Malaca,  traherme  uno  de  Syaka  (uma  terra  próxima)  j'  allé 
que  es  un  puerco  spin  sin  diferencia  alguna  de  los  communes.  O  medico 
hoUandez  Bontius  affirma  ter  tido  em  seu  poder  duas  d'aquellas/'i>ífra5 
de  puerco,  tiradas,  a  mais  pequena  de  um  porco  espinho,  e  a  maior  de 
um  porco  bravo  ou  javali:  unum  parvulum  ex  Hystrice,  alterum  ex 
Apro,  excisum.  É,  porém,  difficil  saber  se  elle  averiguou  com  cuidado 
a  procedência.  Kampfer  descreveu  também  a  pedra  de  porco  pretiosa 
malaccensis,  distinguindo-a  de  uma  pedra  de  porco  falsa,  que  vinha  de 
Ceylão.  Não  sei  se  elle  se  pronunciou  sobre  a  natureza  do  animal  que 
a  produzia,  pois  não  tenho  n'este  momento  á  minha  disposição  o  seu 
livro.  Em  resumo,  a  pedra  de  Malaca,  ou  pedra  de  porco,  ou  pedra  de 
porco  espinho,  era  um  calculo  intestinal,  como  o  be^oar,  mas  de  um 
animal  diverso. 

Gosava  de  uma  grande  reputação  no  Oriente,  superior  mesmo  á  do 
verdadeiro  be^oar,  e  Pedro  Teixeira  affirma  que  a  viu  obrar  maravi- 
lhas nas  duas  grandes  epidemias  de  cholera  em  Cochym,  nos  annos 
de  1590  e  1591.  Não  admira  que  se  lembrassem  de  a  applicar  ao  trata- 
mento do  cholera,  porque  estas  doenças  epidemicas  e  de  marcha  rápida 
eram  geralmente  — e  não  sem  rasão —  assimilhadas  a  um  envenena- 
mento, k  pedra  de  porco,  como  o  be^oar,  foi  sobretudo  considerada  um 
antídoto,  e  são  curiosas  as  ultimas  palavras  de  Orta,  e  aquella  allusão 
a  Roma,  que  no  xv  século  fora  a  terra  clássica  dos  Borgias  e  do  veneno. 

(Cf.  Guibourt, //;5/.  nat.  des  drogues  simples,  iv,  io5;  Teixeira,  Rela- 
ciones, t6i  ;  J.  Bontii  Hist.  nat.  et  med.,  48;  Pharmaceutische  Post,  xxv, 
(1892),  20). 


COLÓQUIO  DO  BETRE  E  OUTRAS  COU- 

SAS  EM  QUE  SE  ENMENDAM  ALGUMAS  FALTAS  DE  TODA 
a  obra,  as  quais  ficaram  por  esquecimento,  e  pode  as  o  leitor  ler 
acabados  os  colóquios  da  letra  B,  que  he  no  colóquio  do  betre*. 

INTERLOCUTORES 

RUANO,   ORTA 
ROANO 

Pareceme,  senhor,  que  nos  esqueceo  falarmos  do  betre, 
pois  he  tam  acostumado  a  comelo  a  gente  de  todas  estas 
partes,  somente  a  vossa  mercê  o  não  vi  comer,  nem  provar; 
e  disme  a  gente  desta  casa  que  nunqua  volo  viram  comer. 
Parece  ser  que,  ou  sois  muito  pertinaz,  ou  em  vós  ficou  a  fé 
de  portuguez  somente. 

ORTA 

Eu  pêra  mim  tinha  que  já  a  pratica  do  betre  era  acabada, 
mas  pois  a  minha  memoria  he.tam  fraca,  perdoaime  este  es- 
quecimento com  outros  muytos,  que  por  mim  podiam  passar. 
E  quanto  he  a  não  o  comer  eu,  nam  he  isso  prova  de  não 
ser  elle  muyto  bom,  senão  de  minha  pertinácia,  como  vós 
dizeis;  porque  eu  provei  este  betre,  quando  vim  de  Portu- 
gal, em  Pangim,  que  he  huma  fortaleza  pequena,  que  está 
na  boca  do  rio,  e  amargoume,  e  assi  amargua  a  todos  os 
que  o  comem,  se  lhe  nam  misturam  Lweca,  e  alguma  pouca 
quantidade  de  cal,  e  com  esta  mistura  dizem  ser  muyto  sa- 
boroso çumo,  e  a  mim  me  ficou  desta  prova  tal  avorrecimento, 
que  nunca  pôde  acabar  comigo  o  Nizamoxa  que  o  comese, 
quanto  mais  tomalo  da  boca  da  mulher  como  muitos  o  fa- 
zem (ainda  que  sejam  portuguezesi;  porque  nenhuma  mu- 
lher conversa  com  homem,  que  o  não  leve  mastigado  na  boca. 


*  Pelo  facto  de  Orta  emendar  n'este  Colóquio  «algumas  faltas  de 
toda  a  obra»),  pareceu-nos  melhor  deixai- o  n'este  logar,  e  não  o  inserir 
na  sua  ordem  aiphabetica. 


3go  Colóquio  do  beire 

RUANO 

Nam  lhe  mesturam  outra  cousa  alguma  mais  que  o  que 
dixestes? 

ORTA 

Misturamlhe  cate,  e  as  pessoas  poderosas  cânfora  de  Bitr- 
neo,  e  alguns  linaloes,  e  almisquere  ou  ambre. 

RUANO 

Cânfora  me  parece  que  lhe  não  lançaram,  porque  faz  os 
homens  inpotentes. 

ORTA 

Si,  misturam:  e  disso  se  ria  o  gram  soldam  Bahadur,  rey 
de  Cambaia,  dizendo:  E  dirmeis  os  portuguezes  que  este- 
reliza  e  faz  inpotentes  os  homens  esta  cânfora?  E  eu  lhe 
respondi  que  a  cânfora,  em  pouca  quantidade,  misturada 
com  outras  mezinhas,  não  faz  os  homens  inpotentes,  e  por- 
que, nos  colóquios  que  tratam  da  cânfora  e  da  areca  e  cate, 
vireis  estoutras  mezinhas,  nellas  vos  não  falarey,  aqui  so- 
mente vos  digo  do  betre;  o  qual,  feito  com  esta  mistura,  he 
tam  aprazível  ao  gosto  e  faz  tam  bom  cheiro,  que  todos  o 
mastigam  continuadamente;  porque  muyto  pouco  tempo 
passa,  que  o  não  mastigam  os  que  o  podem  gastar.  E  digo 
isto,  porque  no  sertam  e  terras  afastadas  do  mar,  vai  muyto 
caro  e  por  esta  causa  gasta  o  Nizamoxa  cada  anno  em  elle 
3o  mil  cruzados,  porque  toda  a  fruta  que  vos  dam  he  essa; 
e  quando  vos  querem  dispidir,  com  isso  vos  dispedem;  e 
gasta  cada  hum  deste  betre,  como  pode;  e  também  os  se- 
nhores cada  hum  segundo  seu  merecimento;  e  ás  vezes  o 
dá  elrey  por  sua  própria  mão,  e  a  outros  pella  alhea,  que 
é  o  pagem  delle,  aquém  chamam  xarabdar,  e  outros  tam- 
buldar.  Só  duas  pessoas  vi  que  avorreciam  este  betre,  e 
o  não  podiam  comer;  e  eu  sam  hum  delles,  e  outro  era  um 
físico  arábio  de  Nizamoxa,  que  avia  nome  Mula  Ucem. 

RUANO 

Mu3^tas  pessoas  vi  que  o  não  comiam? 


e  outras  cousas  3gi 


ORTA 


Verdade  he;  mas  podiam  o  essas  pessoas  comer,  se  qui- 
sessem; eu  não  o  posso  comer,  nem  tenho  apetito  pêra  elle. 
E  prezamse  tanto  os  índios  disso  que,  porque  o  betj-e  tem 
humas  veas  ou  nervos  ao  longo  da  folha,  tomam  huma  fo- 
lha na  mão,  e  tiramlhos  com  a  unha  do  dedo  poUegar,  a  qual 
não  tem  romba  ou  redonda,  como  nós,  senão  com  huma 
ponta  aguda  no  meio,  que  pêra  este  eífeito  fazem;  e  assi 
dobram  a  folha,  e  lhe  misturam  a  cal  em  pouca  quantidade, 
e  at-eca  em  pedaços,  ou  moida,  e,  dobrada  a  folha  três  ou 
quatro  vezes,  a  mastigam;  e  o  primeiro  çumo  lançam  fora, 
o  qual  he  de  cor  de  sangue.  E  algumas  pessoas  não  fazem 
isto,  senam  tudo  mastigam  logo,  e  tomão  depois  outras  fo- 
lhas pella  mesma  maneira  feitas;  e  o  ordinário  disto  he 
quando  despedem  alguma  pessoa,  ou  se  ella  despede  por 
si,  damlhe,  sciiicet,  folhas  eni  uma  bolsinha  de  tafetá  com 
alguns  grãos  de  arequa  e  cate,  e  huma  pouca  de  cal  amas- 
sada; e  esta  cal  não  lhe  faz  mal,  porque  he  em  pouca  quan- 
tidade; e  mais  porque  a  cal  que  se  dá  he  feita  de  ostras 
queimadas  polia  mor  parte.  Já  lhe  dixe  que,  segundo  a  pes- 
soa que  o  dá,  ou  a  quem  o  dam,  assi  he  o  numero  das  fo- 
lhas; porque  os  príncipes  que  despedem  alguma  pessoa,  ou 
cila  se  despede,  nam  se  parte  até  que  lhe  não  dêem  o  beíj-e, 
c  com  isto  se  vam,  que  é  o  sinal  de  se  despedirem. 

RUAXO 

Muyto  usada  cousa  he  essa,  e  parece  que  he  o  principal  man- 
timento da  terra.  E  ha  o  em  todas  as  partes?  E  quando  he 
o  tempo  mais  usado  pêra  o  mastigar? 

ORTA 

Principalmente  quando  vam  os  homens  falar  a  alguma 
pessoa  de  qualidade  o  levam  mastigando  na  boca,  por  fa- 
zer bom  cheiro;  e  he  entre  elles  tam  avorrecido  cheirar  mal 
o  bafo,  que  se  falam  os  menores  com  alguma  pessoa  de  au- 
toridade, tem  a  mão  adiante  da  boca  hum  pouco  afastada 
por  lhe  não  dar  máo  cheiro;  e  asi  a  mulher  que  ha  de  tratar 


392  Colóquio  do  betre 

amores,  nunqua  fala  com  o  varam,  sem  que  o  traga  mas- 
tigado na  boca  primeiro,  e  assi  tem  ellas  que  para  as  vodas 
de  Vénus  he  principal  alcoviteiro;  e  depois  de  comer,  toda 
a  pessoa  desta  terra  o  come  ou  mastiga,  porque  dizem,  que, 
não  o  fazendo,  lhe  vem  o  comer  á  boca,  e  arevesam.  E  muytos 
Portuguezes  dizem  que,  como  comem  pexe  logo  arevesam 
senão  comem  betre;  e  dizem  muytos,  que  as  pessoas  acos- 
tumadas a  o  comer  lhe  cheira  mal  o  baffo  se  o  não  comem 
por  a  indigestam  ou  putrefaçam  do  cibo  causada  no  estô- 
mago; porque  o  não  comiam,  e  quando  o  comiam  não  a 
tinham.  Este  betre  nam  o  comem  alguns  dias  os  que  per- 
deram pay  ou  may,  e  assi  o  não  comem  em  alguns  grandes 
jejuns;  e  também  os  Mouros,  e  os  chamados  Moalis,  que 
sam  os  que  seguem  a  Al}^  em  dez  dias  que  elles  fazem  jejuns, 
porque  estes  filhos  de  AI3',  dizem  elles,  que  morreram  de  sede, 
cercados  em  huma  fortaleza*.  E  nisto  contam  mil  fabulas 
graciosas,  ou  dignas  de  se  rir  delias,  e  deitamse  no  cham, 
e  não  comem  este  betre.  E  quanto  he  o  que  dizeis  onde  o 
ha,  digo  que  em  todas  as  partes  da  índia  sabidas  dos  Por- 
tuguezes; e  isto  se  entende  nas  terras  que  estão  perto  do 
mar;  porque  em  todo  o  mais  do  sertam  não  o  ha,  senão 
trazido  da  fralda  do  mar,  He  verdade  que  em  Dultabado 
(cidade  famosa  de  Decam),  e  em  Bisnagua  o  ha,  mas  destas 
cousas  se  não  faz  regra,  por  ser  em  pouca  quantidade.  Pêra 
as  partes  da  Pérsia  e  da  Arábia  não  chega  mais  que  até 
Calaiate  (distante  de  Ormuz  oitenta  legoas),  e  dahi  avante 
vai  algum  de  carreto  muyto  caro  aos  que  o  podem  comprar; 
e  outros  mastigam  areca  com  cardamomo  ou  cravo. 

RUANO 

Queria  saber  da  feiçam  da  arvore;  posto  que  a  folha  a 
vi;  e  como  se  chama,  e  qual  he  o  milhor,  e  pêra  que  apro- 
veita em  uso  da  física? 


*  Os  imams,  os  doze  filhos  de  Ali  Hucein,  netos  de  Ali,  o  ultimo 
dos  quaes,  El-Mahdi,  ainda  não  morreu  e  deve  vir  a  reinar  na  terra» 
segundo  crêem  os  Schiitas,  a  que  Orta  chama  Moalis. 


e  outras  cousas  SgS 

ORTA 

O  nome  em  malavar  he  betre;  e  em  decani,  guzarate  e 
canarim,  pa??i;  e  em  malaio  círi. 

RUANO 

E  como  tomam  o  nome  malavar,  e  deixaram  aos  outros? 
Porque  mais  rezam  fora  que  lhe  chamáramos  ^/n/w  indum, 
como  nós  temos  que  he,  ou  chamarlhe,  como  em  Goa  lhe 
chamão,  scilicet,jDam. 

ORTA 

Chamamoslhe  betre^  porque  a  primeira  terra  dos  Portu- 
guezes  conhecida  foy  o  Malavar :  e  a  mim  me  lembra  que 
não  diziam  em  Portugal  que  vinham  á  índia,  senão  a  Ca- 
lecut; e  isto  porque  esta  cidade  fo}^  donde  se  levava  toda  a 
droga  e  especiaria  ao  estreito  de  Meca;  e  era  huma  requis- 
sima  esquala;  e  agora,  em  vingança  do  que  nos  fizeram  em 
Calecut,  he  perdido  o  trato  todo  delle.  E  sendo  o  rey  de 
Calecut  emperador,  tem  menos  poder  que  o  de  Cochim, 
porque  nos  ajudou  em  principio-,  de  modo  que  todos  os  no- 
mes .que  virdes,  que  não  sam  portuguezes,  sam  malavares; 
assi  como  betre,  chuna,  que  he  cal,  majniato,  que  he  lava- 
dor de  roupa,  jt?a/a;;zar,  que  he  caminheiro,  e  outros  muytos. 
E  ao  que  dizeis  que  se  chama  foliiim  indum,  não  se  chama 
assi  em  nenhuma  lingoa;  e  o  folium  indum  he  muyto  defe- 
rente delle.  E  Avicena  faz  capitulo  de  hum  e  de  outro  se- 
parado. 

RUANO 

Muyto  espantado  estou,  porque  sempre  tive  que  foi iufjt 
indum  era  mais  conforme  nome  pêra  o  beire. 

ORTA 

Eu  tive  esse  vosso  error  quando  cheguei  á  índia,  e  dahi 
a  alguns  dias  foy  ver  o  Nizamoxa  a  quem  vulgarmente  cha- 
mão Nizamaluquo:  querendolhe  fazer  huma  composiçam 
pêra  o  estamago  lho  receitei,  e  dizendo  que  folium  indum 
era  o  que  mastigava  cada  ora,  se  rio  de  mim,  porque  entendeo 
aquella  palavra  de  folium  indum  em  portuguez  e  entonces 
amostrou  o  Avicena  em  arábio,  onde  estavam  dois  capitulos 


394  Colóquio  do  betre 

diferentes  hum  de  outro,  scilicet,  o  folium  indiim,  duzentos 
e  cinquenta  e  nove,  e  o  do  betre,  setecentos  e  sete%  e  ali 
me  mostrou  o  folium  induiii;  e  porque  no  capitulo  do  ^- 
liutii  indum  fizemos  delle  mençam,  não  o  meteremos  aqui;  so- 
mente sabei,  que  Avicena  chama  ao  betre,  tembul,  e  parece 
ser  vocábulo  hum  pouco  corrupto,  porque  todos  lhe  chamao 
tambul,  e  não  tembul. 

RUANO 

Afora  dizelo  hum  rey,  não  tendes  outra  prova;  porque 
ainda  que  se  digua  comummente  palavra  de  elrey  he  pro- 
vérbio, não  quer  dizer,  que  não  mentem  os  reys,  senão  que 
nunca  aviam  de  mentir,  pois  sam  reys. 

ORTA 

Tenho  os  dous  capitulos  diversos  de  Avicena;  e  pergun- 
tai a  qualquer  Arábio  ou  Etiope,  como  se  chama  o  betre,  e 
dirvosá  tambul;  e  diz  o  mesmo  Avicena,  que  conforta  a  carne 
que  ha  entre  os  dentes,  e  sempre  o  mastigam  os  índios  pêra 
isso;  e  abaixo  diz  mais,  conforta  o  estômago;  e  por  isso 
o  mastigão  sempre  os  índios. 

RUANO 

Não  sei  que  diga  a  tam  fortes  sinais,  com  que  o  pinta 
Avicena;  e  pêra  isso  quero  ver  o  livro,  porque,  como  dizem, 
ver  e  crer. 

ORTA 

Eis  aqui  o  livro  dos  enmendados  pello  Belunensis. 

RUANO 

Assi  diz,  mas  tenho  duvida  em  dizer,  que  he  frio  no 
primeiro,  e  sequo  no  segundo. 

ORTA 

Está  corrupta  a  letra;  e  os  Mouros  todos  leterados  dizem 
que  foy  enganado  Avicena  na  compreisam,  e  que  falou  nisto 


*  Na  tradocção  latina,  edição  de  Rinio,  o  capitulo  áo  foliimi  indum 
é  25q,  e  o  do  tembul,  709 ;  adiante,  Orta  mostra  a  Ruano  uma  d'estas 
edições,  com  as  emendas  do  Bellunense. 


e  outras  cousas  SqS 

por  falsa  informaçam;  e  não  he  muyto  daremlha  má;  porque 
o  povo  erra  muitas  vezes  nestas  graduações,  que  tem  a  pi- 
menta  e  o  cardamomo  e  a  cebolla  por  frias  de  compreisam. 
E  quanto  he  ao  betre  ser  quente  e  sequo  no  fim  do  segun- 
do, eu  o  tenho  assi  pêra  mim,  por  ter  tal  sabor  e  cheiro;  e 
assi  he  proveitoso  pêra  mais  cousas  na  física;  o  qual  vós 
sabereis  por  as  compreisões  que  tem. 

RUANO 

Dizei  a  feiçam  da  folha,  e  se  tem  semente,  e  como  se 
planta,  e  qual  he  milhor. 

ORTA 

A  feição  da  folha,  como  vedes,  he  ser  mais  comprida  e 
mais  estreita  na  ponta,  que  a  da  larangeira:  e  temse  por 
milhor  o  mais  maduro,  que  he  casi  amarelo;  postoque  algu- 
mas mulheres  folgam  mais  com  o  que  não  he  tam  maduro, 
porque  lhe  trinca,  e  soa  mais  na  boca.  Tem  este  betre  em 
Maluquo  huma  semente  trocida,  como  rabo  de  lagartixa,  e 
esta  comem  em  Maluco*,  porque  a  acham  mais  saborosa  e 
milhor,  e  já  esta  semente  foy  trazida  a  Malaca,  e  comemna 
e  achama  muyto  boa,  e  plantase  como  a  pereira,  e  poelhe 
alguma  estaca,  a  que  se  arrime  e  vay  por  ella  trepando,  assi 
como  a  nossa  era:  algumas  pessoas,  por  fazer  mais  proveito 
a  arrimão  ás  arvores  ád.  pimenta* * ,  ou  da  arequeira,  e  fazem 
humas  graciosas  ramadas  delle:  querse  muito  bem  tratado 
e  muyto  limpo,  e  bem  agoado. 

RUANO 

Tendes  dito  muyto  bem;  queria  saber  se  o  tendes  por 
certo. 


•  Os  amentilhos  femininos,  filiformes,  com  as  flores  imbricadas,  dis- 
postas em  espiraes,  é  o  que  significa  este  «rabo  de  lagartixa».  Não  sei 
por  que  Orta  diz,  que  dava  esta  «semente»  em  Maluco,  quando  a  podia 
ver  na  índia;  mas  é  possivel  que  não  florecesse  com  muita  frequência. 

*  *  Quer  dizer  ás  mesmas  arvores  a  que  arrimam  a  pimenta,  que  é 
igualmente  uma  trepadeira. 


396  Colóquio  do  betre 

ORTA 

Digo  que  todos  os  que  vos  escreveram  o  contrario,  antigos 
e  modernos,  erraram;  porque  diz  o  Musa  e  o  Pandecta*  que 
he  malabatriim  e  isto  he  alheo  da  verdade :  no  colóquio  que 
falia  do  folio  indo,  vereis  tudo  ser  falso  no  que  elles  dizem. 
E  cavalguemos,  e  mostrarvosey  o  betre  nas  hortas  (i). 

RUANO 

Em  tanto  me  dizey  algumas  cousas,  que  vos  esqueceram, 
ou  tem  necessidade  de  declaraçam. 

ORTA 

No  capitulo  do  aloés  digo,  que  o  aloés  e  outras  muytas 
mezinhas  de  cá  da  índia  vam  a  Ormuz,  e  dahi  a  Adem  e 
ao  Cairo:  hase  de  emmendar,  que  este  caminho  não  he  de 
bom  piloto,  senão  hase  de  dizer,  que  o  que  vay  a  Ormuz, 
vai  dahy  a  Bácora,  e  ao  Cairo;  e  o  que  vay  a  Adem,  vay 
dahy  ao  Cairo  e  Alexandria,  e  não  o  de  Ormuz;  porque 
he  andar  o  caminho  duas  vezes,  E  portanto  eu  falei  isto, 
sem  o  considerar  bem**.  E  também  me  lembra  que  o  arvore 
triste,  que  estilam  a  agoa  delle,  molhando  os  panos  nella, 
he  boa  pêra  os  olhos. 

RUANO 

Dizemme  que  ha  muyta  canela,  e  muyto  boa  na  ilha  de 
Mindanao. 

ORTA 

He  muyta  verdade;  e  também  a  ha  nas  ilhas  de  Aynão, 
que  confinam  com  a  China,  que  he  donde  vai  a  areca  e  be- 
tre á  China:  por  tanto  podeis  acrecentar  isso  no  capitulo 
da  canela***. 


*  Matheus  Sylvatico,  o  que  escreveu  o  Liber  pandectarum  medicines. 

**  Veja-se  a  nota  (vol.  i,  pag.  Sg).  Ainda  n'esta  emenda  vae  envol- 
vida uma  inadvertência,  pois  o  que  ia  a  Hormuz  e  Bassora  passava 
d'ali  á  Syria  e  não  voltava  ao  Cairo. 

***  A  Cássia  lignea  do  Extremo  Oriente;  veja-se  a  nota  (vol.  i, 
pag.  226). 


e  outras  cousas  897 

RUANO 

Sabemme  tam  bem  as  cousas  da  Jaca,  que  queria  que 
me  dixeseis  se  aproveita  pêra  alguma  cousa  mais. 

ORTA 

Seivos  dizer,  que  aproveitam  as  castanhas  dâjaca  pêra 
estanquar  as  camarás:  e  em  mim  e  em  outras  pessoas  o 
tenho  experimentado.  E  nam  he  muito,  considerando  a  fei- 
çam  do  sabor  delias;  podeislo  acrecentar  no  capitulo  delias*. 
E  assi  podeis  acrecentar,  onde  falo  na  torre  de  Babilónia, 
e  digo  que  não  he  Bagada  nem  Bácora:  tenho  por  enfor- 
maçam  muito  certa  que  a  torre  de  Babilónia,  ácerqua  da 
gente  da  terra  era  em  hum  monte  perto  delia;  mas  neste 
monte  não  aparece  pedra  nem  ladrilho,  nem  cousa  alguma, 
somente  a  fama  he  que  foi  aly;  e  ainda  que  estas  cousas 
não  relevam  muyto,  o  podeis  acrecentar**.  E  onde  falo  do 
mor^bo  galico,  que  os  Pérsios  lhe  chamam  hade  frangi,  que 
na  nossa  lingoa  quer  dizer  mal  france:{*  *  * . 

RUANO 

E  esses  homens  da  Pérsia  não  vos  dizem  alguma  cousa 
mais  da  pedra  ba^ar^? 

ORTA 

Dizem  que  he  agora  muyto  guardada  nas  terras  onde  a  ha, 
e  que  fazem  muitas  diligencias  pêra  que  todas  vam  ter  á  mão 
de  elrey,  e  que  se  fazem  coutadas  delia,  assi  como  ha  em 
Espanha,  e  em  toda  a  christandade  se  fazem****.  E  da  pe- 


*  Veja-se  antes  (11,  23). 
**  Veja-se  a  nota  (11,  97). 

»  *  *  Veja-se  a  nota  (11, 1 16). 

*  »  *  *  Coutadas  das  regiões  em  que  se  encontrava  a  cabra  selvagem. 
Teixeira  diz  quasi  o  mesmo :  Xa  Abbas  Rey  de  Pérsia  tiene  guardiãs  en 
aqiiel  lugar  para  que  las  piedras  que  tuvieren  mas  de  im  cierto  peso  las 
tomen  por  suyas. 


SgS  Colóquio  do  betre 

dra  de  Malaqua  me  não  pergunteis,  porque  cada  dia  acho 
novas  de  mais  louvores  delia,  heide  screver  isto,  se  me  Deos 
der  dias  de  vida, 

RUANO 

E  também,  pois  me  parece  tão  galante  este  olho  de  gato, 
que  me  destes,  que*  aveis  de  dizer  alguma  virtude  delle. 

ORTA 

.  Posto  emcima  delle  hum  panno  apertado  de  modo  que 
chegue  ao  olJio  de  gato,  não  se  queima  com  fogo  algum, 
e  eu  o  esprementei  com  huma  candea  e  achei  que  he  muyta 
verdade;  podeis  esprementalo,  ou  credelo**. 

RUANO 

Tudo  farey;  e  mais  vos  peço  que  comamos  a.qué[\e  pavão, 
que  agora  vos  troxeram,  porque  dizem  que  é  carne,  que 
não  apodrece.  E  isto  não  he  fabula,  porque  alem  de  o  di- 
zerem Plinio  e  outros  estoriadores,  o  diz  S.  Agostinho;  e 
he  em  tanta  maneira  isto  verdade  que  alguns  doutores,  no 
Regimento  da  peste,  louvam  mu}!©  a  carne  do  pavão,  por 
não  ser  aparelhada  á  putrefaçam. 

ORTA 

He  verdade  que  tudo  isso  passa  assi;  porém  he  esta  terra 
(como  mu3tas  vezes  vos  tenho  dito)  tam  sujeita  á  putrefaçam 
que  não  dura  o  pavão  mais  sem  apodrecer  do  que  dura 
d.  perdi^,  e  isto  tenho  eu  esprementado  mu3'tas  vezes. 

RUANO 

Será  isso  nesta  fralda  do  mar,  mas  não  dentro  na  terra 
firme,  que  não  he  tam  húmida  como  esta,  e  he  mais  fria 
nos  tempos  frios,  segundo  mo  todos  dizem. 


*  Deve  ser  «me». 

**  Não  é  muito  fácil  crer  n'esta  experiência  do  nosso  bom  Orta. 


e  outras  cousas  Sqo 

ORTA 

Antes  lá  no  Balagate  comy  mais  pavões  que  em  nenhum 
cabo,  em  special  na  cidade  de  Juner,  que  he  cercada  de  ser- 
ras e  he  terra  fria;  e  de  industria  quis  esprementar  isto,  e 
achei  que  apodrecião  mais,  que  cá  em  Goa;  e  por  tanto  po- 
deis crer,  que  essas  propriedades  que  lhe  lá  achão,  não  lhas 
achamos  cá;  e  os  que  screveram  isso  de  lá  dessa  Europa 
disseram  verdade;  e  nós  dizemos  verdade,  falando  nesta  terra 
do  que  conhecemos*. 

RUANO 

Lendo  ontem  em  uma  coronica,  que  me  mostrou  este  moço 
de  elrey  de  Portugal,  achei  no  cabo  hum  tratado  de  muytas 
misturas  de  cousas,  que  em  seu  tempo  vio  este  scriptor; 
e  achei  ahi  que  no  reino  Dely  avia  huma  raiz  muyto  peço- 
nhenta que  matava,  e  tinha  uma  fruta  que  dava  saúde  a 
todo  o  homem  empeçonhentado,  e  que  era  muyto  saborosa; 
a  raiz  se  chama  baçaraga,  e  a  fruita  se  diz  mivabixi:  muito 
me  maravilho  de  vós  não  escreverdes  disto**. 


*  Orta  emenda  Santo  Agostinho  com  todas  as  precauções  oratórias- 
mas  nao  deixa  de  o  emendar.  A  referencia  do  grande  bispo  africano 
a  carne  de  pavão,  vem  na  De  civitate  Dei,  cap.  iv. 

**  Orta  refere-se  á  Miscellania  de  Garcia  de  Rezende,  na  parte  que 
damos,  com  a  sua  nota  marginal : 

A    raiz    se  No  reyno  de  Deli  ha 

chama  Ba-  arbores  daquesta  sorte, 

çaragua,    e  que  a  raiz  é  tão  má 

a  fructa  mi-  peçonha  que  se  se  dá 

rabexi.  a  comer  dá  logo  morte; 

a  fructa  tem  tal  virtude, 

que  comendoa  dá  saúde  ' 

a  todo  peçonhentado, 

he  fructo  muy  estimado 

com  que  se  á  peçonha  açude. 

Foi  publicada  com  a  2.-^  ediçcão  da  Chron.  de  D.  João  II  {i55a)-  q 
temos  assim  mais  um  livro  citado  pelo  nosso  escriptor.  ' 


40O  Colóquio  do  betre 

ORTA 

Esse  reino  Dely  he  muyto  pouco  conversado  de  nós  outros ; 
pois  pêra  falar  de  ouvido  tratamos  com  iiuma  gente,  que 
ch.2in\3.m  jogues,  que  o  que  oje  dizem,  amanhã  o  negão,  e  he 
gente  que  vive  pedindo  esmola,  como  já  vos  dixe;  eu  isso 
nunca  o  ouvi,  e  conversey  com  muytos,  e  nunca  me  tal 
disseram;  mas  pareceme  isso  contra  toda  boa  filosophia, 
porque  da  raiz  se  mantém  o  tronco,  e  do  tronco  se  mantém 
os  ramos,  e  dos  ramos  se  mantém  a  fruita;  de  modo  que 
do  primeiro  até  o  derradeiro  a  fruita  que  he  contra  a  pe- 
çonha se  mantém  da  raiz,  que  he  peçonhenta  a  respeito  do 
mesmo  homem:  e  sendo,  assi  a  raiz  como  a  fruta,  mezinhas 
simples,  he  contra  rezam  dizermos  que  he  retificada  a  fruta. 
Isto  que  dixe  foy  porque  a  triagua,  sendo  o  seu  principal 
fundamento  vibora  peçonhenta,  he  retificada  com  outras  ses- 
senta e  três  mezinhas,  e  está  muyto  tempo  primeyro  que 
seja  retificada,  mas  estoutra  não  traz  caminho  por  onde 
possa  ser. 

RUANO 

Se  andais  per  filosophias,  cada  dia  achamos  plantas  e  se- 
mentes, que  tem  em  diversas  partes  compreisões  contrarias; 
assi  como  he  a  -{argatoa.  E  de  algumas  arvores  se  diz  cá 
na  índia,  que  a  raiz  estilada  he  a  aguoa  muyto  fria,  e  a 
casqua  e  a  semente  mu3'to  quente.  E  também  me  dixeram 
homens  de  Malaqua  que  a  erva  que  mata,  untada  nas  fre- 
chas, he  de  uma  banda  de  huma  arvore  que  olha  o  levante 
confeiçoada;  e  contra  erva  me  dixeram  que  se  fazia  da  mesma 
arvore,  da  banda  que  olha  o  ponente. 

ORTA 

Estas  matérias  dos  simples  não  se  querem  tratar  com  tanta 
subtileza,  nem  he  necessário  pêra  ellas  tantas  filosophias, 
porque  tudo  tem  resposta;  que  nam  he  muito  huma  planta 
ser  na  raiz  fria,  e  nas  folhas  e  fruta  quente;  pois  em  nenhum 
cabo  delles  tem  a  qualidade  em  summo  gráo;  mas  que  seja 
huma  cousa  na  raiz  venenosa,  e  na  fruita  cibo  ou  comer. 


e  outras  cousas  401 

e  comprendido  debaxo  do  género  que  se  pode  chamar  nu- 
tritivo, e  o  veneno  é  totalmente  contrario  a  isto;  porque 
o  veneno  em  si  não  tem  rezam  de  nutrir,  senão  de  matar. 
E  ao  que  dizeis  que  a  contra  erva  de  Malaqua,  e  a  erva 
com  que  são  empeçonlientadas  as  frechas,  sam  ambas  de 
huma  arvore,  he  muyto  falso  isto,  porque  a  erva  he  huma 
raiz,  e  não  erva;  e  isto  he  muyto  sabido.  E  por  tanto  dei- 
xemos isto  pêra  quem  o  milhor  souber;  porque  eu  vos  pro- 
meto que  ey  de  tirar  grandes  inquirições,  como  me  topar 
com  esses  jogues  do  reino  Del}^  E  crede  que,  se  Deos  me 
der  dias  de  vida,  que  vos  ey  de  falar  verdade,  ou  ao  me- 
nos será  ella  bem  examinada  (2). 

RUANO 

Pois  tendes,  polia  via  de  Ormuz,  conversaçam  com  os 
Mouros  da  Pérsia,  dizeime  destas  rosas  persiquas,  que  asi 
as  chama  Avicena,  e  nós  lhe  chamamos  açuquare  rosado 
de  Alexandria;  e  se  tem  cá  os  da  Pérsia  estas  rosas  por  so- 
lutivas,  pois  nós  achamos  ser  assi,  scilicet,  das  que  lá  foram 
levadas  e  plantadas. 

ORTA 

Mezinha  he  muyto  usada  acerqua  dos  moradores  da  Pér- 
sia e  de  Ormuz,  e  pêra  hum  homem  se  purgar  levemente, 
tomão  rosas  em  boa  quantidade  e  cozemnas  muyto,  e  deste 
cozimento  dam  a  beber  dez  onças  com  hum  pouco  de  açu- 
quare, e  fazem  cinquo  ou  seis  camarás,  e  outros  dez  e  doze. 
E  hum  fidalgo  muyto  honrado  me  dixe  que  fazia  mais  de 
doze,  e  he  este  fidalgo  tam  dureiro,  que  anda  hum  mez  sem 
fazer  camará.  Mas  falando  a  verdade,  os  homens  a  quem 
dei  esta  mezinha  por  menorativo,  nunqua  os  vi  passar  de 
seis  camarás. 

RUANO 

Folgo  muyto  de  saber  isso  que  me  contais;  e  porém  du- 
vido em  huma  cousa,  que  he  coseremse  muyto  as  rosas 
tendo  a  vertude  muyto  superficial,  como  a  tem  todas  as 
outras  flores. 

•26 


402  Colóquio  do  beire 

ORTA 

Já  ao  menos  temos  experiência,  nas  rosas,  em  contrario; 
quanto  mais  que  as  rosas  sam  estitiquas  e  purgam  compri- 
mendo;  por  onde  não  he  de  maravilhar  sofrerem  as  rosas 
muyto  cozimento,  como  todas  as  outras  cousas  estitiquas  (3). 


Nota  (i) 

O  beire  de  Orta  e  dos  portuguezes  d'aquelles  tempos,  hoje  mais 
habitualmente  chamado  betei,  é  a  folha  de  uma  planta  trepadeira  da 
mesma  família  e  género  das  que  produzem  as  pimentas,  o  Pipev 
Betle,  Linn.  Esta  folha  foi  e  é  de  uso  muito  commum  e  muito 
conhecido  nas  terras  do  Oriente.  Como  é  natural,  tendo  um  emprego 
geral  e  espalhado  por  varias  regiões,  a  planta  e  folha  foi  designada  por 
muitos  nomes  diversos: 

—  O  de  betre,  ou  betle,  ou  betele,  ou  betei,  é  a  adaptação  portugueza 
do  tamil  vettilei,  maláyalam  vettila,  que  se  diz  significar  simplesmente 
a  folha,  isto  é,  a  folha  por  excellencia.  Como  Orta  adverte  com  rasão, 
os  primeiros  portos  visitados  pelos  portuguezes  foram  os  do  Malabar, 
e  ali,  em  Calicut,  e  depois  em  Cochim  e  Couláo,  elles  aprenderam  os 
primeiros  nomes  indianos,  e  alguns  árabes,  das  drogas.  De  vettila  fize- 
ram, pois,  betele  ou  betre,  que  se  transformou  mais  tarde  em  betei. 

—  O  nome  de  «pam»  é  o  hindustani  e  deckani  i^j  pán,  o  mais  usado 
nas  regiões  do  norte  da  índia,  e  que  os  anglos-indianos  escrevem  hoje 
geralmente  na  forma  panm. 

—  O  nome  arábico,  tanto  nos  escriptores  antigos  como  na  linguagem 
corrente,  é  Jj-ou,  tanbul,  que  Orta  escreve  «tambul».  Como  muitos 
outros  nomes  de  drogas,  é  a  simples  adaptação  arábica  de  um  nome 
sanskritico  rTH-^F^T,  tãmburi.  Aquella  designação  arábica  foi  a  pri- 

meira  que  os  portuguezes  ouviram  em  Calicut  aos  mouros  d'ah;  e  — 
como  logo  veremos —  deram  á  herva  ou  folha  do  Piper  Betle  o  nome 
de  atambor,  que  é  simplesmente  J_a.^J'wJl,  at-tanbul. 

—  O  nome  malayo  é  «ciri»  como  diz  Orta,  ou  sirih,  como  hoje  ge- 
ralmente escrevem. 

A  folha  do  betre  forma  a  parte  essencial  de  um  masticatorio,  muito 
usado  na  índia,  Ceylão,  Archipelago,  e  em  geral  no  Oriente.  Mistura-se 
para  isso  com  talhadas  da  no^  de  areca  (vol.  i,  pag.  828  e  334),  impro- 
priamente chamada  ás  vezes  no^  de  betei,  alguma  cal,  cate  (vol.  11, 
pag.  69),  e  também  cânfora,  linaloes,  almíscar  e  âmbar  gris,  substancias 
bem  conhecidas  e  de  parte  das  quaes  Orta  já  tem  fallado  nos  seus  Colo- 


e  outras  cousas  40  3 

quios.  Este  uso  é  tão  geral,  e  constitue  um  habito  tão  característico  dos 
orientaes,  que  quasi  todos  os  viajantes  o  tem  mencionado,  e  limitar- 
nos-hemos  a  citar  o  que  diz  o  companheiro  de  Vasco  da  Gama,  um  dos 
primeiros  portuguezes  que  o  observou.  Na  entrevista  do  Gama  com  o  rei 
de  Calicut,  este 

'' tinha  á  mãoo  escequerda  huma  copa  d'ouro  muito  grande 

d'altura  de  um  pote  de  mêo  almude,  e  era  de  largura  de  dous  parmos 
(palmos)  na  boca,  a  quall  era  muito  grosa  ao  parecer,  na  qual  talha 
lançava  bagaço  de  humas  ervas  que  os  homens  desta  terra  comem 
pella  calma,  a  qual  erva  chamam  atambor;  e  da  banda  dirreita  estava 
um  bacio  d'ouro  quanto  hum  homem  podése  abranjer  com  os  braços, 
em  o  qual  estavam  aquellas  ervas » 

Da  mesma  circumstancia  faz  menção  Gaspar  Corrêa,  e  outros  dos 
nossos  escriptores,  entre  elles  Camões : 

Bem  junto  delle  hum  velho  reverente 
Co'os  giolhos  no  chão,  de  quando  em  quando 
Lhe  dava  a  verde  folha  da  herva  ardente, 
Que  a  seu  costume  estava  ruminando. 

Merece  ainda  ser  citada,  pelas  falsas  idéas  que  envolve,  a  menção 
de  Varthema.  Diz  elle  que  o  sultão  de  Cambaya  comia  algumas  folhas 
da  herva,  chamada  tambor  (che  alcuni  chiamano  tãbor),  juntamente  com 
cal  de  ostras  e  outras  substancias;  e,  quando  as  tinha  bem  mastigado, 
assoprava  na  cara  da  pessoa  que  queria  matar,  de  modo  que  esta  em 
meia  hora  caía  morta  por  terra  (per  modo  che  in  spatio  di  me^^a  hora 
casca  ynorta  í  terra).  É  um  exemplo,  entre  muitos,  das  noticias  phan- 
tasistas  d'este  celebre  viajante.  O  uso  do  betre  é,  pelo  contrario,  inof- 
fensivo  para  as  pessoas  que  o  mastigam,  e  com  muito  maior  rasão  para 
as  outras.  O  nosso  Orta  indica  mesmo,  e  é  esta  a  opinião  geral  no 
Oriente,  que  aquelle  uso  tinha  justamente  o  fim  de  tornar  o  «bafo» 
sadio  e  perfumado. 

Orta  toca  de  novo  n'este  Colóquio  na  confusão  geralmente  feita 
em  períodos  anteriores  entre  o  betre  e  o  folio  indo  ou  malabathrum, 
questão  que  elle  já  debateu,  e  nós  explicámos  largamente  em  outro 
logar  (vol.  I,  pag.  343  e  35 1),  e  sobre  a  qual  nada  será  necessário  acres- 
centar agora. 

O  betre,  de  que  naturalmente  se  fazia  um  largo  consumo,  consti- 
tuía um  dos  rendimentos  importantes  da  índia  portugueza,  pelo  systema 
conhecido  dos  arrendamentos,  isto  é,  dos  monopólios  de  venda  conce- 
didos a  certas  e  determinadas  pessoas,  mediante  o  pagamento  ao  es- 
tado de  uma  somma  fixa.  A  «Renda  do  betei»,  comprehendendo  o 
direito  de  vender  betei,  areca,  jacas,  gengivre,  laranjas,  limões,  etc, 
andava  annexa  á  «Renda  da  ortaliça»,  direito  de  venda  de  rabãos,  bre- 


404  Colóquio  do  beire 

dos,  alhos,  cebolas  etc;  e  foram  ambas  arrematadas  no  anno  de  1549- 
i55o,  por  5:3oo  pardáos  por  anno  na  ilha  de  Goa,  o  que  equivale  a 
perto  de  Siioooí^ooo  réis  da  nossa  moeda  e  valor  de  hoje.  Pelo  nome  da 
renda  se  vê,  como  o  betre  devia  ser  a  mais  importante  das  mercadorias 
mencionadas.  Em  Baçaim,  em  Diu,  e  outros  pontos,  também  o  betre  an- 
dava arrendado  em  quantias  importantes,  posto  que  muito  menores. 

Sobre  esta  «Renda  do  betei»  se  faziam  os  pagamentos  ao  bispo, 
dignidades  da  Sé  e  outros  eclesiásticos;  mas,  de  uma  carta  do  rei  a 
D.  Duarte  de  Menezes  no  anno  de  i585,  se  vê  que  a  dita  renda  havia 
diminuído  muito,  e  já  não  chegava  bem  para  o  pagamento  d'aquelles 
ordenados;  é  verdade,  que  os  ordenados  tinham  augmentado. 

(Cf  Dymock,  Mat.  med.,  727;  Yule  e  Burnell,  Glossary,  v.  Be- 
tei e  pawn;  Ainslie,  Mat.  Ind.,  11,  465;  Rot.  da  viagem  de  Vasco  da 
Gama,  59;  Lusíadas,  vii,  58;  Varthema,  em  Ramusio,  Navig.,  i,  157; 
Tombo  do  Estado  da  índia,  48,  nos  Subsidias;  Arch.  Português; -orien- 
tal, fase.  3.0,  38.) 

Nota  (2) 

Deixaremos  sem  commentarios,  que  os  não  necessitam,  as  «philoso- 
phias»  do  nosso  escriptor  acerca  de  physiologia  vegetal,  que  em  globo 
assentam  sobre  idéas  muito  racionaes,  posto  que  n'um  ou  n'outro  ponto 
se  lhes  poderiam  fazer  alguns  reparos. 

Como  elle,  de  passagem,  menciona  a  triaga  e  as  sessenta  e  três  me- 
zinhas com  que  retificavam  a  sua  base  de  «vibora  peçonhenta»,  damos, 
a  titulo  de  simples  curiosidade,  uma  das  formulas  d'aquelle  celebre  me- 
dicamento, reduzindo-a  á  simples  enumeração  dos  ingredientes.  Esta 
fórmula  complicada  remata  bem  as  nossas  notas,  dedicadas  aos  velhos 
simplices  e  drogas,  pela  maior  parte  já  fora  de  uso.  Eis  a  fórmula: 

«Rec.  trochiscorum  squillas,  et  trochisc.  viperíe,  et  trochisc.  piperis 
nigri,  et  opii  boni,  et  allii  sylvestris,  et  rosarum  rubearum  siccarum, 
et  seminis  rapi  sylvestris,  et  iridis  illiricae,  et  agarici,  et  succi  liquiritite, 
et  olei  balsami,  et  cinamomi,  et  myrrhae,  et  prasii,  et  croci,  et  macro- 
piperis,  et  zinziberis,  et  calamenthi,  et  petroselini,  et  pentaphilon  syl- 
víestris,  et  reubarbari,  et  costi  amari  albi,  et  stoechados,  et  piperis  albi, 
et  pulegii,  et  floris  squinanthi,  et  glutinis  alimbat,  et  olibani,  et  cássias, 
et  nardi  indicie,  et  anisi,  et  storacis  liquidce,  et  siseleos,  et  spicae  celticcc, 
et  seminis  ameos,  et  chameepithyos,  et  chamfedryos,  et  hypoquistidos 
et  folii,  et  epithymi,  et  fu,  et  meu,  et  seminis  apii,  et  seminis  foeniculi, 
et  luti  albaira,  et  colcotar  assati,  et  amomi,  et  hypericon,  et  acori,  et 
carpobalsami,  et  acaciee,  et  gumi  arabici,  et  cordumeni,  et  galbani,  et 
opoponacis,  et  serapini,  et  bituminis  judaici,  et  centáureas,  et  aristolo- 
chiae  rotunda,  et  castorei,  et  ozimi  fluvialis,  et  chie,  et  dragaganthi,  et 
arthanite,  et  aristolochiae  longcc,  et  seminis  hyusquiami  albi.» 


e  outras  cousas  406 


Nota  (3) 

As  rosas  pérsicas  vermelhas,  que,  acabamos  de  ver,  formavam  um 
dos  ingredientes  da  triaga  — rosaram  rubearum  siccarum — ,  foram  um 
medicamento  contiecido  e  clássico,  e  parecem  ser  uma  variedade  da 
fS>osa,  Damascena,  Miller,  cultivada  na  Pérsia  e  outras  partes 
do  Oriente.  Um  contemporâneo  do  nosso  Orta,  o  celebre  medico  hes- 
panhol  Nicolao  Monardes,  escreveu  um  pequeno  tratado  ou  artigo  so- 
bre as  suas  virtudes  e  propriedades  medicinaes,  intitulado  De  Rosis 
persicis  seu  alexandrinis,  que  poderá  ver  o  leitor,  desejoso  de  mais  am- 
plas informações  (cf.  Monardes,  em  Exoticorum,  48). 

Da  mesma  Rosa  Damascena  procede  o  óleo,  otto,  ou  attar  de  rosa, 
o  conhecido,  celebre  e  caro  perfume,  ainda  hoje  fabricado  na  Pérsia, 
e  principalmente  na  Turquia. 


TABOADA  DO  CONTEÚDO  NESTE  LIVRO 
pelo  ABC,  scillicet  das  cousas  de  notar 


Vol.  Pag. 

AçAFRAM  chamado  na  índia  açafram  da  terra,  e  he  mezinha 
usada  dos  físicos  desta  terra,  e  provase  que  escrevem  delia 
Avicena  e  outros  Arábios I      278 

Allaqueca  ha  muyta  cantidade  delia  em  o  Guzarate,  e  he  mer- 
cadoria pêra  as  partes  do  ponente II     222 

Aloés  tem  nome  em  todas  as  línguas,  e  o  milhor  he  de  Çoco- 
tora  acerca  de  todos,  e  não  he  milhor  o  de  cima  que  o  de 
baixo,  se  se  faz  limpamente;  nem  se  falsifica  com  acácia  e 
gomma  arábica,  e  dizse  a  maneira  de  se  conhecer,  e  dizse 
como  nam  o  ha  em  Alexandria  pêra  delle  se  fazer  caso,  e 
dase  a  rezam  por  que  se  chama  cabalino  o  ruim;  e  he  me- 
zinha muyto  usada  de  todos  os  Indianos;  e  a  herva  do  aloés 
também  usam  delia  pêra  purgar,  e  pêra  as  chagas  dos  rins  e 
bexiga,  e  pêra  quebraduras I        25 

a  erva  do  aloés  amarga  muyto  em  todas  estas  partes,  e 

quanto  se  ha  de  tardar  o  cibo  sobre  ella;  e  porque  se  mu- 
daram as  pirolas  de  Rufo  e  as  de.Rasis;  e  porque  o  aloés 
mesturado  com  mel  purga  menos;  e  porque  por  dentro  he 
solutivo,  e  por  fora  restringe I       33 

aloés  metálico  não  o  ha  em  Jerusalém  como  alguns  es- 
crevem     I        34 

O  ALJOFRE  e  PÉROLAS  tcm  uomes  em  todas  as  linguas,  e  dase 
rezam  porque  se  chamou  aljôfar,  e  porque  se  chamou  pé- 
rolas orientaes;  e  como  esta  pescaria  da  índia  he  decorada 
com  os  padres  e  hirmãos  da  companhia  de  Jesus;  e  como 
as  pérolas  das  índias  ocidentaes  valem  cá  mais  que  em  Es- 
panha; e  como  nam  ha  pérolas  furadas  cá,  nem  verdes,  como 
dizem  que  as  ha  em  Peru,  e  de  tudo  isto  se  trata .........   II     119 

Algarves  que  quer  dizer  e  onde  sam I        78 

Apilidos  dos  reis  e  senhores  desta  terra,  e  o  que  querem  di- 
zer, e  como  foram  os  reis  expelidos,  e  como  ficou  a  casta 
delles I      122 

Arabis  sam  huns  Mouros,  e  Magarabis  outros,  e  o  que  querem 
dizer  estes  nomes I       78 


»  Conservamos  sem  alteração  a  taboada  da  primeira  edição,  a  não  ser  nas  referencias  ao 
volume  e  pagina. 


4o8  Taboada 

Vol.  Pag. 
O  AMBRE  se  chama  assi  em  todas  as  linguoas,  ou  varia  muyto 
pouco;  dizemse  as  opiniões  que  ha  do  seu  nacimento,  e  con- 
tase  huma  muvto  conforme  á  rezam;  dizse  dos  grandes  pe- 
daços que  delle  se  acharam,  e  o  grande  preço  em  que  he 

tido  na  China I       45 

Do  AMOMO  se  diz  donde  vem  a  esta  terra,  e  como  o  estimão 

em  muyto  os  reis,  pêra  fazer  metridato,  de  que  usam I       fg 

O  ANACARDO  ha  muyto  nesta  terra,  e  he  muyto  usado  na  lisica, 
e  presumese  ser  diverso  do  de  Cecilia,  e  uzase  pêra  muytas 

enfermidades  na  índia I        65 

O  ARVORE  que  se  chama  triste  não  dá  froles,  senão  de  noite, 

e  cheira  muyto,  e  contase  delle  algumas  fabulas  graciosas. .     I        69 
Anil  que  cousa  he,  e  donde  ha  mor  cantidade  delle,  e  asi  se 

fala  dos  âmbares,  que  he  huma  fruita  azeda I       86 

Assa  fétida  de  quantas  maneiras  seja,  e  assa  doce  não  he  alca- 
çus,  e  serve  nesta  terra  pêra  temperar  os  comeres,  e  he  hum 

cibo  muyto  medecinal  nestas  parles,  e  muyto  usado I        yS 

Alepo  he  cabeça  da  Suria I      202 

foy  senhoreado  de  Abraham  e  póese  a  derivaçam  delle.  . .    II     297 

AvicENA  donde  foy  e  em  que  hnguoa  escreveo I       77 

Babilónia,  a  antiguoa,  não  he  o  que  agora  chamamos  Bácora, 

nem  he  o  que  chamamos  Bagada II       93 

Baçaim,  cidade  delrey  nosso  senhor,  tem  em  si  cousas  de  notar    II     840 

Badajoz  cidade  de  Castella,  se  ha  de  chamar  Guadajoz II       85 

Baneanes  sam  os  genosotistas,  que  guardam  o  costume  de  Pi- 
tágoras, e  tem  esprital  de  pássaros  pêra  os  curar II     104 

Bangue  que  cousa  he,  e  como  nam  he  amfiam  nem  linho  al- 

canave;  e  pêra  que  se  toma,  e  como  se  faz I       95 

Benjoim  tem  nomes  em  diversas  partes,  e  donde  o  ha,  e  pêra 
onde  o  levam;  e  da  feiçam  do  arvore,  e  de  quantas  manei- 
ras o  ha;  e  como  se  mestura  hum  com  o  outro I      io3 

Os  BRiNDÕES,  scillicet,  a  sua  casca  aproveita  pêra  tingir,  e  pêra 

fazer  vinagre I      117 

Balagate  o  que  quer  dizer;  e  como  o  Gate  he  huma  serra  di- 
ferente das  outras I      121 

Berilo  ha  muyta  cantidade  em  Cambaia,  e  Pegu  e  Ceilam,  e 

fazemse  delle  grandes  peças II     199 

As  BOUBAS  quando  vieram  á  Europa II     107 

Cancamo  he  anime  e  dizse  delle II       87 

Calamo  aromático  nam  o  ha  senam  na  índia;  he  mezinha 
muyto  uzada  dos  Indianos  pêra  os  homens,  e  pêra  cavallos; 
nam  se  chama  aromático,  por  ser  cheiroso;  e  ahi  se  trata 
também  das  Caceras I      141 


Taboada  409 

Vol.  Pag. 
Cam  he  vocábulo  corrupto,  porque  ha  de  dizer  ham,  que  quer 

dizer  rei  acerca  dos  Mogores I      izi 

Cânfora  he  de  duas  maneiras;  de  Burneo  e  da  China,  e  de 
muy  diferentes  preços;  e  como  se  falsifica  ás  vezes,  e  dos 
nomes  que  tem,  e  da  sua  compreisam;  e  ahi  se  trata  das  ca- 
rambolas, fruta  indiana I      1 52 

Choaris  sãos  uns  Gentios,  que  vieram  da  Pérsia,  e  tem  diversa 

supristiçam,  da  que  tem  o  gentio  de  Baçaim II     342 

Canela  e  cassialinea  e  cinamomo  tudo  he  huma  cousa,  e  nam 
differem  em  mais,  senão  em  ser  boa  ou  má;  nam  a  conhe- 
ceram os  Gregos,  nem  a  ha  na  Etiópia,  e  tem  nomes  em  di- 
versas linguoas,  e  foy  levada  pellos  Chins  pêra  o  ponente; 
póese  a  derivaçam  dos  seus  nomes,  e  como  não  ha  cinamomo 

alipitino I     201 

Cássia  fistola  ha  em  todolas  partes  da  Índia,  e  tem  nomes 
acerca  de  todolas  linguoas;  e  as  vacas  nam  a  pascem,  por 
onde  he  falso  dizer  que  as  camarás  da  índia  vem  por  sua 

causa,  pois  os  arvores  sam  tam  altos I      igS 

Carbúnculo  he  toque  dos  rubins II     218 

Cardamomo  ha  mayor  e  menor  na  índia,  e  dizse  como  se  se- 
mea,  e  qual  he  milhor,  se  o  maior,  se  o  menor;  e  como  o 
autor  descobrio  esta  mezinha,  com  algumas  historias  do  que 
nisso  o  autor  passou;  onde  se  trata  da  feiçam  e  da  cor  das 

carandas I      i  yS 

Cravo  contase  delle  o  nacimento,  e  como  nam  o  ha  senão 
em  Maluco ;  não  he  mezinha  conhecida  dos  Gregos,  ao  menos 
de  Galeno:  e  contase  de  outra  fruita  redonda,  que  ha  na 
ilha  de  S.  Lourenço,  que  cheira  como  cravo,  assi  contase 

como  veo  a  ser  conhecido  dos  Malucos I      35q 

Ceilam  he  huma  das  melhores  ilhas  do  mundo I     216 

Chins  sam  muyto  sutis  e  letrados  e  usam  muyto  de  justiça;  da- 
vam as  leis  a  esta  terra;  damse  lá  gráos ;  a  arte  da  empre- 
sam foy  lá  sempre I      260 

dos  Chins  ficou  huma  pedra  em  Cochim,  que  levou  elrey 

de  Calecut,  e  pôla  em  Repelim,  onde  se  coroava,  a  qual  to- 
mou Martim  Afonso  de  Sousa  per  guerra,  e  a  poz  em  Cochim    I      2o5 
Cheiros  sam  muyto  gastados  na  índia,  porque  a  gente  da  ín- 
dia he  muyto  enclinada  a  elles,  que  deixam  de  comer  pêra 

gastar  em  cheiros I       71 

Coles  foram  primeiro  senhores  de  muyta  parte  do  Balagate, 

e  aguora  vivem  de  roubos I      119 

O  çoFi  ou  soFi  não  he  o  Xatamaz,  nem  o  Xaismael,  senão  foy 
o  seu  capitam  principal I      124 


41  o  Taboada 

Vol.   Pag. 

Colérica  passio,  chamase  na  índia  morxi;  mata  em  24  oras; 
põese  os  sinaes  delia,  e  a  maneira  de  curar  dos  índios,  e 
nossa  em  casos  que  aconteceram  ao  autor I      261 

Grisocola  ou  tincal  vem  do  Chitor,  ou  do  Mandou I     277 

Crisolita  pedra  ha  no  Balagate,  e  em  Ceilam,  e  na  costa  de 
Choromandel 11    222 

CosTO  ha  somente  na  índia,  e  não  em  outro  cabo;  vem  de  Chi- 
tor; he  a  principal  mercadoria  pêra  a  China  e  Malaca;  e  pêra 
as  partes  do  ponente  em  pouca  cantidade;  não  ha  costo  doce 
e  amargo  senão  for  corrupto,  nem  he  verdadeiro  costo  o  que 
não  for  trazido  da  índia I     255 

O  coQUO  tem  nomes  em  todas  as  lingoas;  poese  os  sinaes 
da  arvore,  e  muytas  cousas  pêra  que  aproveita;  e  como  as 
cascas  não  aproveitam  pêra  os  paralíticos,  como  alguns  di- 
seram;  do  olio  do  coquo  pêra  que  aproveita;  e  como  escre- 
veram desta  mezinha  os  Arábios,  e  dos  erros  que  tiveram 
outros  escritores  nelle I      284 

Cairo  se  chamou  assi  por  causa  de  huma  rainha  assi  chama- 
da     II     324 

Cubebas  não  foram  conhecidas  dos  Gregos  nem  he  carpesio, 
nem  mirto  silvestre,  sam  muyto  usadas  dos  Mouros  em'  fí- 
sica, e  cozemnas  na  Jaoa,  porque  nam  se  dêem  em  outro 
cabo I     289 

GuRCAs  sam  huns  inhames  pequenos,  provase  escreverem 

delias  os  Arábios,  e  dizse  os  nomes  que  tem I     279 

O  DiAMAM  he  precedido  da  esmeralda  e  do  rubi  em  igual  can- 
tidade e  bondade,  porque  as  pedras  preciosas  não  tem  o 
preço  somente  polia  virtude,  senam  polia  falta  e  bom  pa- 
recer delias;  e  he  usado  em  física  acerca  dos  Gentios;  e 
não  he  peçonha  o  pó  delle,  nem  nace  na  mineira  do  cristal, 
porque  o  cristal  não  no  ha  cá II     19:) 

o  diamam  se  quebra  não  tansómente  na  bigorna  mas 

com  um  martello  pequeno;  e  o  sangue  do  bode  nam  o  faz 
mais  brando,  que  he  falso  dizer  que  o  quebra,  e  achase 
maior  muyto  que  uma  avelan,  e  nam  sam  vigiados  das  ser- 
pentes, nem  ha  mister  carne  confeiçoada  pêra  lhes  dar. ...    II     199 
■os  diamães  não  tem  roca  em  Espanha,  nem  em  Arábia 


nem  em  Chipre,  como  dizem  alguns  autores;  e  a  pedra  de 
cevar  traz  o  ferro,  presente  estando  qualquer  diamam ;  e 
posto  debaixo  da  cabeceira  da  mulher,  não  dá  sinal  da  sua 
bondade  e  maHcia;  e  os  diamães  muito  fínos,  esfregandoos 
se  apegam  hum  ao  outro,  e  trazem  a  palha  como  os  alam- 
bres      II     202 


Tahoada  411 

Vol.  Pag. 

Dio  foy  entregue  a  Martim  AfFonso  de  Sousa,  estando  lá  com 
pouca  gente,  e  depois  foy  defendido  duas  vezes  por  nós  com 
muyto  esforço II     SSg 

Os  DURiÓES  he  huma  fruita  muyto  gabada  nas  bandas  de  Ma- 
laca e  põese  a  feiçam  delia  e  do  arvore I     297 

Datura  he  huma  mezinha  venenosa,  que  causa  riso  e  prazer, 
e  poe-se  a  feiçam  delia,  e  a  cura  e  os  sinais I     295 

Do  ELEFANTE  náo  se  uza  em  física  mais  que  dos  dentes,  por- 
que os  outros  ossos  e  as  unhas  se  deitam  por  ahi,  contra 
Paulo  Egineta;  e  contamse  estorias  verdadeiras  e  muyto  gra- 
ciosas dos  elefantes,  e  os  nomes  que  tem  nas  terras  donde 
os  ha,  e  em  nenhuma  se  chama  barro,  contra  Simam  Genoes    I      3o3 

gastase  cada  ano  na  índia  pasante  6000  quintais  de  mar- 
fim; e  contase  huma  suprestiçam  que  tem  os  Baneanes  de 
Cambaia,  por  onde  se  gasta  tanto  marfim I      3o5 

contamse  as  enfermidades  dos  elefantes,  e  como  se  cu- 
ram, e  como  tomam  bem  as  lingoas,  e  assi  se  conta  o  ajun- 
tamento do  macho  com  a  fêmea,  e  como  deferem  pouco  do 
dos  outros  quadrúpedes;  e  põese  a  maneira  de  os  amansar, 
e  provase  terem  memoria  porque  se  lembram  das  emjurias 
recebidas I     3o8 

A  ESMERALDA  não  cmtra  no  letuario  'de  Gemis,  senão  a  tur- 
quesa; provase  isto  evidentemente II     220 

esmeralda  ha  muytas  contrafeitas  de  vidro,  e  ha  outras 

que  não  sam  verdadeiras,  nem  as  do  Peru  tem  cá  por  verda- 
deiras     II     221 

EspiQUENARDO  tem  nomes  diversos,  e  não  vai  tanto  como  valia 
antiguoamente,  e  por  isso  se  não  falsifica,  e  nace  o  espique 
perto  do  rio  Ganges,  e  nelle  se  lava  todo  o  gentio,  e  paga 
por  isso  meo  pardao;  e  o  verdadeiro  nace  na  índia,  e  não 
na  Siria,  e  dáse  a  rezam  por  que  se  enganavam  nisso II     291 

Espique  não  he  suspeitoso  por  fazerem  delle  piso,  que  he  pe- 
çonha, nam  ha  tal  cousa II     29o 

Espique  aliep  he  o  espique  que  vai  de  Alepo,  avendo  vindo  pri- 
meiro da  índia II     296 

Espique  satieche  he  espique  de  Satigam,  porto  famoso  de  Ben- 
gala     II     297 

EspoDio  não  se  ha  de  chamar  assi  senão  tabaxir,  por  escusar 

equivocaçam,  que  foy  causa  de  muitos  erros II     3o2 

o  espodio  nam  se  faz  das  canas  semelhantes  ás  nossas, 

nem  o  cinzento  he  pior II     3o3 

EsQuiNANTO  pasce  todo  o  gado  em  Calaiate  e  Mascate,  terras 
da  Arábia  perto  de  Meca  por  terra II     3 1 1 


412  Taboada 

Vol.  Pag. 

EsQUiNANTO  tem  pouca  frol,  e  essa  que  ha  nam  vem  á  índia; 
nem  o  ha  na  terra  dos  Nabateos,  nem  em  Jerusalém,  nem 
he  calamo  aromático,  nem  galanga II     3i5 

O  FAUFEL,  que  he  areca  ou  avelan  da  índia,  come  a  gente  mis- 
turado com  o  betre,  e  he  rectificativo  delle,  e  conforta  o  es- 
tamago,  e  aperta  as  gengivas,  e  dizemse  os  nomes  delle  nas 
terras  donde  o  ha I      325 

Os  chamados  figos  da  índia  sam  escritos  pellos  Arábios,  e  cada 
anno  se  plantam  de  si  mesmos;  ha  os  em  muytas  partes 
todo  o  anno I      829 

Os  Físicos  INDIANOS  tem  enganos  e  cautelas  em  suas  maneiras 

de  curar  os  enfermos 11      140 

Frangue  quer  dizer  cristam  do  ponente,  e  frangistam  quer  di- 
zer cristandade,  e  frangui  quer  dizer  boubas;  e  tudo  isto  se 
prova II      107 

Galanga  não  foy  conhecida  dos  Gregos,  e  ha  de  duas  maneiras, 
scilicet,  na  China  e  na  Jaoa,  e  ambas  se  dam  em  Goa,  e  ne- 
nhuma he  o  açoro  nem  a  raiz  do  esquinanto I      354 

Gengibre  tem  muitos  nomes  nesta  terra;  e  dáse  a  rezam  por- 
que em  verde  não  he  tam  quente;  e  porque  se  cobre  com 
barro;  e  como  se  faz  em  conserva,  e  de  que  terra  he  milhor  II         5 

Granadas  ha  as  no  Balagate,  e  na  costa  do  Malavar  e  Choro- 
mandel,  e  he  rubi  preto II     216 

Guadalupe  se  emtrepretará  Rio  do  amor  e  não  Rio  de  lobos   II       85 

GuAiACAM  pao  foy  degradado  da  índia,  porque  matava  os  ho- 
mens com  fome II     26 1 

Da  HERVA  contra  as  camarás,  chamada  herva  de  Malavar,  dáse 
a  rezam  porque  se  chama  assi,  e  dizse  como  se  faz,  e  qual 
aproveita  mais,  e  de  que  compreisam  he,  e  qual  he  mais  forte 
mezinha;  e  doutra  maneira  de  curar  camarás,  segundo  os 
da  Arábia ;  dizemse  outras  cousas  peraque  aproveita,  e  huma 
estoria,  que  aconteceo  ao  autor  com  hum  Hsico  malavar; 
e  assim  se  conta  de  outra  erva,  que  se  não  deixa  tocar. ...   II       i3 

Jambos,  jambolóes,  jacas,  jangomas  sam  frutas  da  índia  boas 
pêra  ver II       23 

Jacintos  ha  no  Balagate  em  muyta  cantidade  e  na  costa  do 
Malavar II     216 

Índias  chamadas  occidentaes  não  são  propriamente  índias;  e 

dáse  a  rezam  por  que  esta  terra  he  chamada  índia II     107 

O  LACRE  tem  nomes  em  arábio  e  pérsio,  e  nas  terras  onde  nace, 
e  a  rezam  por  que  se  chamou  locsumutri;  e  como  he  falso 
o  dizer  que  as  formigas  o  criam  na  vasa  em  paos  pequenos, 
que  lhe  antes  punham,  porque  antes  se  cria  em  huma  certa 


Taboada  413 

Vol.  Pag. 

arvore,  onde  as  formigas  ás  vezes  lavram,  a  qual  não  he  se- 
melhante á  murta,  antes  he  huma  arvore  grande II       20 

O  LACRE  não  foy  conhecido  de  Avicena,  nem  tem  a  virtude 
do  carabe,  nem  he  o  cancamo  de  Dioscorides;  e  em  muytos 
cabos  estam  os  nomes  corruptos;  nem  o  arvore  onde  se  cria 

he  nespereira  ou  sorveira jj       3 

-ha  verdadeiro  lacre  na  índia,  e  verdadeiro  cancamo,  e 

não  he  do  arvore  do  benjoim jj       3 

o  lacre  vai  muyto  menos  do  que  valia,  porque  se  achou 

nas  terras  do  Turco  outras  tintas  semelhantes H       38 

. o  lacre  não  o  ha  em  Ceilam,  que  he  hum  breu  pêra  cala- 
fetar navios,  e  dizse  por  que  se  mudou  o  nome  dos  Pegus, 

que  era  trec jr       o 

O  LiNALOEs  se  sabe  delle  o  arvore,  ainda  que  com  perigo  dos 
que  vam  buscalo,  por  causa  dos  muytos  tigres;  e  Galeno  não 
o  conheceo  nem  o  ha  na  Arábia;  nem  he  bom  dizer  que  se 
gasta  por  falta  de  encenso;  decrárase  os  nomes  das  terras, 
donde  dizem  que  nace,  e  descobrese  a  causa  dos  errores 
donde  naceo;  nem  no  ha  em  Cantão,  nem  em  toda  a  China, 
nem  o  cosem  nas  terras  donde  nace,  como  dizem  comum- 
mente  .■ „ 

ÍI       49 

nao  vem  do  paraíso  terreal,  e  ha  muyto  nestas  terras, 

posto  que  o  bom  e  grande  vai  muyto,  e  não  vem  pollos  rios 
abaixo,  senão  em  pouca  cantidade,  nem  he  falsificado  com 

a  camelea,  pois  a  não  ha  nestas  terras H       53 

o  linaloes  he  sujeito  a  putrefaçam,  mas  nam  tanto  se- 
gundo o  âmago;  e  os  Portuguezes  não  cortam  as  arvores 
(como  dizem),  nem  ha  tanta  cantidade  delle;  e  o  mais  fino 

chamase  calambac tt       c 

^  ,  íí       59 

U  Licio  que  chamam  na  Europa  chamase  na  índia  cate;  he 

mezinha  muyto  usada  dos  índios;  fazse  de  hum  pao  muyto 
pesado;  he  mercadoria  pêra  Malaca  e  pêra  a  China,  e  he 
milhor  o  da  índia,  que  o  da  Licia;  e  póese  a  maneira  como 
se  faz,  e  as  maneiras  de  fazer  este  lido  nas  outras  terras;  não 
sam  tam  faciles  de  haver  como  levando  de  cá  da  índia,  e 
por  falta  do  indiano  se  hade  gastar  o  de  Licia  e  não  pello 
contrario  como  dizem jj 

A  MAÇA  como  he  feita,  e  a  que  se  parece  o  arvore  que  a  dá, 
e  como  emcima  delia  ha  outra  casca,  de  que  não  fazem  caso' 
senão  pêra  conserva  de  açucare;  e  Galeno,  nem  os  Gregos 
conheceram  esta  mezinha ■    jr       o 

Mangas  podem  competir  com  as  melhores  frutas  da  Europa, 
e  as  frutas  de  espinho  da  índia  excedem  as  da^Europa;  sam' 


414  Tahoada 

Vol.  Pag. 
de  compreisam  fria  e  húmida  contra  o  povo  indiano,  e  os 
caroços  aproveitam  pêra  os  fluxos II       99 

^LA.NNÁ  ha  de  três  maneiras,  e  huma  delias  se  parece  com  a  de 
Calábria,  e  a  que  chamam  tiriamjabim  se  corrompe  muyto 
nesta  terra II      91 

MiRABOLANOS  he  nome  inventado  pollos  trasladores,  e  não 
porque  seja  o  mirabolano  dos  Gregos;  poêse  as  especias  dos 
mirabolanos  e  os  nomes,  e  a  causa  de  tudo;  e  não  sam  todos 
de  huma  arvore,  como  alguns  dixeram,  senão  de  cinco;  ser- 
vem de  tingir  e  de  curtir  pelles,  como  çumagre ;  e  não  sam 
cá  reitificados  pollos  físicos,  como  em  Portugal II     i5i 

Mangostam  he  fruta  muyto  saborosa  feita  como  laranjas  pe- 
quenas e  he  das  bandas  de  Malaca II     i6i 

Mirra  se  diz  dela  alguma  pouca  cousa  donde  vem,  porque 
vem  da  Caldea,  da  qual  lingoa  ha  nota II     353 

MuNGO  he  semente  muyto  conhecida  nesta  terra,  e  he  cibo  me- 
decinal  chamado  por  Avicena  e  pellos  outros  Arábios  mex; 
ha  também  na  Palestina,  e  contase  huma  estoria,  que  o  au- 
tor passou  com  o  sultão  Badur,  sobre  a  cura  de  Martim  Af- 
fonso  de  Sousa,  e  outra  que  pasou  com  o  Nizamoxa  sobre 
a  cura  de  seu  filho,  e  decrarase  hum  dito  de  Avicena II     iSq 

Negundo  he  huma  mezinha  indiana  resolutiva  e  mitigativa  de 
dor;  tem  outro  nome  em  Decanim,  e  outro  em  Malavar;  he 
boa  para  chagas  e  inchaços,  nam  he  agno  casto,  como  alguns 
cuidaram II     i63 

Nimbo  he  huma  arvore  grande,  cujas  folhas  pisadas  sam  muyto 
esprementadas,  e  he  mundificativo  pêra  as  chagas  das  bestas 
e  dos  homens;  tem  huma  fruta  de  que  se  faz  hum  azeite 
muyto  medicinal II     167 

Noz  he  fruita  de  huma  arvore  nacida  em  Banda,  pôese  ao  que 

se  parece;  he  mezinha  não  conhecida  dos  Gregos II      81 

Odres  de  rinocerotes  nem  de  camelos  não  os  ha  nesta  terra^ 
e  pôese  onde  ha  o  rinocerote,  e  outro  animal  que  parece 
unicórnio,  e  dizse  como  este  rinocerote  foy  levado  a  Portu- 

J^^ n     74 

Olho  de  gato  o  milhor  he  o  de  Ceilam,  e  dizemse  delle  suas 
propriedades,  e  vai  cá  mais  que  em  Portugal H     222 

O  opio  se  chama  na  índia  amfiam,  faz  os  homens  impoten- 
tes, e  por  outra  maneira  aproveita  pêra  dilatar  o  jogo  de 
Vénus;  o  milhor  he  o  do  Cairo  (que  he  o  tebaico)  e  o  mais 
usado  he  o  de  Cambaia,  e  de  Adem;  face  de  semente  de 
dormideiras  brancas,  e  nam  leva  trovisco,  nesta  terra,  nem 
o  ha  na  terra  donde  se  faz \\     181 


Taboada  41 5 

Vol.  Pag. 
Ostras  que  dam  pérolas  sam  de  outra  feiçam,  do  que  sam  as 

ostras  que  comemos II     122 

as  ostras  e  búzios  que  chamamos  madrepérola,  se  usa 

muyto  delias  em  cousas  de  policia,  e  assi  se  usa  da  tartaruga  II  i23 
Pao  de  cobra  aproveita  pêra  as  mordiduras  peçonhentas,  e 
pêra  as  lombrigas,  bexigas,  e  sarampam;  e  pêra  a  colérica 
passio,  e  pêra  as  febres  de  dificultosa  eradicaçam;  e  dizse 
como  isto  se  veo  a  saber,  em  que  se  conta  huma  estoria 
verdadeira;  e  diz-se  como  este  pao  ha  em  muytos  cabos,  e 

outro  de  semelhante  virtude  em  Jafanapatam II     181 

Patecas  he  o  que  Avicena  chama  melam  da  índia II     i35 

Peixe  e  leite  tudo  misturado  não  he  tam  defeso  na  índia  como 

Avicena  diz II     1 06 

Pecegos,  nunca  foram  venenosos  na  Pérsia,  nem  agora  o 

sam II     25o 

Pedra  bezar  he  criada  no  estamago  de  hum  carneiro  ou  bode, 
que  ha  no  Coraçone,  e  no  cabo  de  Comori  e  em  Pam;  e 
criase  sobre  huma  palha,  e  falsificase  algumas  vezes,  e  apro- 
veita pêra  todalas  emfermidades  venenosas,  e  pêra  a  colérica 
passio,  e  pêra  lepra  e  quartãas;  e  tomamna  os  Mouros  ricos 
e  honrados  duas  vezes  por  anno,  pêra  esforçar  a  natureza, 

e  aproveita  pêra  muyta  cousa  segundo  se  vê II     23 1 

Pedra  arménia  ha  em  Ultabado,  cidade  de  Decam,  e  purga 

pouco II     203 

Pedra  safira  não  passa  de  mil  crusados,  e  as  milhores  de  todas 

sam  as  de  Pegu II     216 

Pedra  de  cevar  faz  o  homem  ser  mais  novo,  comendoa  em 
pouca  cantidade,  ou  feitas  panelas  delia  e  fazer  o  comer 
nellas.  E  os  que  dizem  que  os  que  navegam  de  Calecut  pêra 
Ceilam  levam  pregos  de  pao  nas  nãos,  porque  não  as  tra- 
guam  os  montes  de  pedra  de  cevar  pêra  si  as  nãos,  he  fa- 
buloso; e  assi  dizer  que  a  pedra  de  cevar  não  pesa  mais  com 

muyto  ferro,  que  com  pouco '.  II     204 

A  pedra  criada  no  fel  do  porco  espinho  aproveita  muyto  con- 
tra a  peçonha II     383 

Pimenta  não  se  cria  senam  ao  longo  do  mar,  e  a  maior  canti- 
dade de  todas  ha  no  Malavar,  e  na  Çunda;  e  o  arvore  da  pi- 
menta se  planta  arimado  a  outro  arvore,  como  a  era;  e  cresce 
tanto  como  a  arvore  a  que  está  arimado,  e  nace  em  cachos 

como  uvas,  senão  sam  mais  meudas II     241 

da  pimenta  ha  três  arvores  distintos,  e  hum  he  da  pimenta 

preta  e  outro  da  branca,  e  outro  da  longa;  e  assi  nacem  em 
terras  distintas,  e  não  em  huma  só  arvore,  porque  as  terras 


4 1 6  Taboada 

Vol.  Pag. 
donde  se  dá  a  pimenta  preta  sam  muy  longe  daquellas  donde 
se  dá  a  pimenta  longa,  e  a  pimenta  preta  não  nasce  na  raiz 
do  monte  Cáucaso;  põese  os  nomes  delia  em  todas  as  lin- 
goas,  e  em  nenhuma  se  chama  barcamasim;  e  os  físicos  da 
índia  também  erram  na  graduaçam  da  pimenta,  a  que  cha- 
mam fria ;  nem  põem  fogo  ao  mato  pêra  afuguentar  as  ser- 
pentes que  a  guardam II     243 

Raiz  da  china  como  se  soube II     260 

a  cantidade  que  na  China  se  dá  desta  raiz,  e  que  não  se 

dê  sem  ser  retificada,  e  tomase  pêra  as  chagas  dos  rins,  e 

da  bexiga,  e  pêra  os  tisicos II     2Ò3 

a  raiz  da  China  se  toma  nesta  terra  muytas  vezes,  por  a 

terra  ser  quente,  e  nesta  terra  se  tolhe  o  sal  poucas  vezes, 
e  muytos  homens  no  Balagate  mesturam  dragma  e  mea  desta 
raiz  moida  e  com  mel  mesturada II     265 

na  China  comem  esta  raiz  cozida  com  carne,  e  aproveita 

pêra  os  paralíticos,  e  pêra  todas  as  enfermidades  dos  nervos 
e  juntaras,  scilicet,  e  pêra  alporcas,  e  aproveitou  pêra  huma 
febre  latica II     267 

O  RUIBARBO  vem  da  China  todo,  e  algum  vem  da  província  do 
Usbeque,  e  este  he  o  que  chamamos  ravamturquino II     275 

o  ruibarbo  que  vai  a  Espanha  pella  via  de  Veneza  he 

milhor,  que  o  que  vai  da  índia  por  mar,  porque  apodrece; 
e  gasta  mais  hum  mez  de  mar,  que  hum  anno  de  terra,  e  se 
dana  muyto  nas  terras  que  estão  perto  do  mar;  e  com  o  rui- 
barbo se  curam  os  cavalos  na  Pérsia,  e  cá  na  índia,  e  he 
muito  boa  mezinha II     276 

RuBiNS  tem  mineira  e  roca  conhecida II     217 

Rumes  diferem  dos  Turcos I        32 

Sabores  nesta  terra  não  ha  mais  que  três  sabores,  doce  e  azedo 
e  amargo,  e  todo  o  sabor  que  lhe  não  sabe  chamam  amar- 
gozo 1      208 

Sândalo  branco  e  vermelho  e  amarelo  em  que  terras  o  ha, 
e  o  sândalo  vermelho  em  que  difere  do  Brazil;  e  a  feiçam 
do  arvore  do  sândalo  e  a  fruta  e  a  frol  que  dam;  e  como 
não  o  ha  senão  na  índia,  nem  o  ha  em  Calecut,  senão  o  que 
he  trazido  de  Timor,  e  das  outras  partes II     281 

O  sândalo  amarelo  he  todo  hum  pao,  e  não  feito  de  branco 
e  vermelho,  e  sândalo  macharazi  quer  dizer  sândalo  amarelo  II     283 

Sândalo  chamado  assi  na  ilha  de  S.  Lourenço,  não  he  verda- 
deiro sândalo,  nem  o  sambaram  he  do  Malabar,  posto  que 
os  arvores  do  sândalo  se  dam  em  muytas  partes,  mas  não 
cheira II     287 


Taboada  417 

Vol.   Pag. 

Tamarindo  põese  como  he  feito  o  arvore  do  tamarindo,  e  como 
se  faz  em  conserva,  e  como  não  he  palmeira  silvestre,  nem 
os  ha  nas  terras  de  Jamem,  nem  sam  dateles  tebaicos,  nem 
tem  feiçam  delles;  e  os  caroços  do  tamarindo  não  aprovei- 
tam pêra  cousa  alguma,  nem  os  ha  em  o  Cairo,  nem  sam 
o  fenicobolano  dos  Gregos,  nem  se  falsificam  os  tamarindos 
da  índia II     Sio 

O  TURBiT  dos  Arábios  nunca  foy  conhecido  dos  Gregos,  senão 
dos  Arábios  somente;  e  he  pao  e  não  raiz,  e  não  ha  mister 
que  o  toque  o  mar,  nace  por  si  sem  ser  semeado;  e  por 
ter  goma  nam  he  milhor,  porque  a  tem,  por  ser  picado  ou 
torcido;  nem  por  ser  preto  he  pior,  senão  fôr  podre;  nem 
se  mistura  com  o  gengivre  por  necesidade II     327 

o  turbit  nam  tem  a  folha  semelhante  á  da  ferula  senam  à  da 

malva  franceza,  nem  he  semelhante  à  planta  chamada  aristis? 
nem  he  raiz  cheirosa,  nem  esquenta  quando  a  comem;  nem 
vai  contra  a  peçonha,  nem  muda  a  frol  três  vezes  ao  dia ;  nem 
he  semelhante  à  planta  dita  arasentis,  nem  à  hisiatis,  nem 
aos  murtinhos II     335 

o  turbit  não  he  especia  de  esula  nem  he  alipium,  nem 

alipia,  nem  empola  as  mãos  nem  o  rosto  quando  se  colhe  . .   II     337 

o  turbit  não  he  pitiuza,  nem  esula,  nem  tapsia II     338 

Thure  ou  emcenso  não  o  ha  na  índia  senão  todo  vem  da  Ará- 
bia, nem  ao  bom  chamão  macho,  nem  a  gente  da  terra  aceita 
a  comparação  que  lhe  damos  dos  testículos,  e  tem  feiçam 
das  folhas  da  aroeira  e  todo  o  mais  se  gasta  na  China II     35i 

TuTiA  da  que  usam  em  Espanha,  como  he  levada  da  província 
de  Tartaria,  e  fazse  da  cinza  de  hum  certo  arvore II     359 

Turcos  sam  deferentes  dos  Rumes,  porque  os  Turcos  são  da 
Asia-menor  e  da  província  da  Natolia,  e  os  Rumes  sam  de 
Constantinopla  e  do  seu  império I        32 

UzBEQUE  he  a  província  de  Tartaria,  e  confina  com  a  China. .    II       92 

XÁ  quer  dizer  rei  na  Pérsia,  e  xeque  he  defferente  de  xá,  e  o 
xaismael  e  o  xatamaz,  se  chamam  xá,  que  quer  dizer  rey  por 
excellencia  e  os  reis  seus  sujeitos  se  chamam  paxá,  que  quer 
dizer  pé  de  rey II       q3 

Zangue  zingui  quer  dizer,  em  pérsio  e  em  arábio,  Cafre  ou  Etio- 

pio,  e  Zingue  quer  dizer  a  terra  dos  Cafres I       5i 


índice 


Colóquio  vigésimo  sexto — Do  Gengivre 5 

Colóquio  vigésimo  sétimo — Das  Hervas i3 

Colóquio  vigésimo  oitavo — Da  Jaca,  dos  Jambolóes,  dos  Jambos 

e  das  Jamgomas 23 

Colóquio  vigésimo  nono  —  Do  Lacre 29 

Colóquio  trigésimo — Do  Linaloes 47 

Colóquio  trigésimo  primeiro  —  Do  Cate 69 

Colóquio  trigésimo  segundo  —  Da  Maça  e  noz 81 

Colóquio  trigésimo  terceiro — Do  Maná 91 

Colóquio  trigésimo  quarto  —  Das  Mangas 99 

Colóquio  trigésimo  quinto — Da  Margarita 119 

Colóquio  trigésimo  sexto — Do  Mungo  e  Melam  da  índia i33 

Colóquio  trigésimo  sétimo  —  Dos  Mirabolanos i5i 

Colóquio  trigésimo  oitavo — Das  Mangostaes 161 

Colóquio  trigésimo  nono — Do  Negundo i63 

Colóquio  quadragésimo — Do  Nimbo 167 

Colóquio  quadragésimo  primeiro — Do  Amfiam 171 

Colóquio  quadragésimo  segundo  —  Do  Pao  da  cobra 181 

Colóquio  quadragésimo  terceiro — Do  DiamSo igS 

Colóquio  quadragésimo  quarto — Das  Pedras  preciosas 21 5 

Colóquio  quadragésimo  quinto  —  Da  Pedra  bezar 23 1 

Colóquio  quadragésimo  sexto —  Da  Pimenta 241 

Colóquio  quadragésimo  sétimo  —  Da  Raiz  da  China 259 

Colóquio  quadragésimo  oitavo  —  Do  Ruibarbo 275 

Colóquio  quadragésimo  nono  —  Do  Sândalo 281 

Colóquio  quinquagesimo — Do  Epiquenardo 291 

Colóquio  quinquagesimo  primeiro  —  Do  Espodio 3oi 

Colóquio  quinquagesimo  segundo  —  Do  Esquinanto 3 1 1 

Colóquio  quinquagesimo  terceiro  — Dos  Tamarindos 319 

Colóquio  quinquagesimo  quarto  —  Do  Turbit 327 

Colóquio  quinquagesimo  quinto — Do  Encenso  e  da  Mirra 35i 

Colóquio  quinquagesimo  sexto — Da  Tutia 359 

Colóquio  quinquagesimo  sétimo  —  Da  Zedoria  e  Zerumbet 363 

Colóquio  quinquagesimo  oitavo — Das  Cousas  Novas 371 

Colóquio  do  Betre 389 

Taboada , 407 


índice  alphabetico 


abada,  bada,  rhinoceronte,  3i8.  II. 

8o. 
Abd-er-Razzak,  embaixador,  yS. 
Abrahão.  II.  297. 
Abreu  (António  de),  Syo.  II.  88. 
Abrusprecaiorius.il.  i3o,  196. 
Abulfeda,  220. 
Abu  Zeyd,  219. 
Abyssinia,  187.  II.  325. 
Acácia  Catechu.  II.  79;  A.  Suma,  76. 
Acanthus,  3oo. 

açafrão,  3 1,  70; — da  índia,  278, 283. 
achar,  conserva,  66,  68,  i85,  365.  II. 

5,  i53,  159,  375. 
Achem,  17. 
Achillea,  64. 
Aconitwnferox.  II.  298;  A.  Napellus, 

298. 
açoro,  59,  141,  144-149,  355,  356. 
Acosta  (Christoval).  II.  21,  89,  168, 

192. 
Acra,  39,  375. 
Adão,  33 1,  337;  Pico  de  — ,  217, 

233;  Ponte  de  — ,  221. 
Aden,  39,  223.  II.  173,  178. 
Adil  Scháh  de  Bijapur.  II.  97,  3 10. 
Aecio  de  Amida,  auctor  do  Tetra- 

biblos,58,  i5i,  i56, 162.11.56,368. 


^gle  Marmelos.  II.  386. 
Afghanistan,  88,  91,  3i5.  II.  79,  94, 

95. 
Africa,  188-190,  228,  336.  II.  44,  78, 

1 12. 
Agaçaim  (passo  de),  295,  299. 
agaloco.  II.  56. 
agathas.  II.  226. 
agno  casto,  292.  II.  164,  166. 
Agostinho  (Santo).  II.  206. 
Agrimonia,  64. 
agua  marinha.  II.  227;  — rosada.  I. 

35,  199,  242. 
aguila,  142.  II.  48, 61, 64,65;  — brava, 

5o,  52. 
Ahmedábád  (Amadabar),  268,  277. 

II.  18. 
Ahmednaggar,  39.  II.  loi,  287. 
Akbar,  148. 

Aláed-Din  Khiljy,  128,  i33. 
Albuquerque  (Affonso  de),  89,  i34, 

139,  320,  370.  II.  10,  u,  79,  126, 

127,  176,  179. 
Albuquerque  (D.  João  de),  bispo  de 

Goa,  i5,  274.  II.  124. 
Alcáçova  (Fernão  de).  II.  259. 
alcaçuz,  76,  88. 
Alcalá  de  Henares,  352. 
Alcalá  (Pedro  de).  II.  145. 
Alepo,  202,  216.  II.  296,  297,  299. 


42  2 


índice  alphabetico 


Alexandre  ou  Ezcader,  Sy,  3 17,  SSg. 
II.  107,  1 13,  1 14. 

Alexandria,  26-28,  89,  377. 

algalia,  71. 

Algarve,  78,  8g. 

Alhagi  Camelorum.  II.  gS ;  A.  Mau- 
rorum,  gS. 

Ali  ben  Redhwan,  39. 

aljôfar,  170,  206,  217,  223,  II.  iig- 
123,  126- I 3). 

Al-mamun,  khalifa,  40. 

almecega,  35,  40,  366.  II.  16. 

Almeida  (D.  Francisco  de).  II.  11, 
41,  253,  254. 

almíscar,  71,  gy,  iSg,  i6g,  170,  206, 
223,  347.  II.  2g,  42. 

Alóe,  36,  37;  A.  abyssinica,  3j;  A. 
Perryi,  37. 

aloés,  24-42,  83,  187,  223. 

aloés  (páo  de).  II.  60^64,  66. 

Aloexylum  Agallochtim.  II.  62. 

Alpinia  Cardamotniim,  186;  A.  Ca- 
lunga, 357;  A.  officinarum,   357. 

alsi,  g6,  98. 

altiht,  75-78,  go. 

Aluf  Khán,  128. 

alvará,  para  a  impressão  dos  Coló- 
quios, 3,  14. 

alvará  relativo  aos  physicos  india- 
nos. II.  148. 

alvará  relativo  á  pimenta.  II.  256. 

Alvares  (Sebastião),  371. 

alveitaria,  29. 

Amadabar,  256,  268,  277. 

Amarello  (rio).  II.  278. 

Amato  Lusitano,  210.  II.  44,  237. 

âmbar,  36,  45,  47,  48,  55-57,  7')  97^ 
i58,  328,347. 

âmbares,  87,  g4. 

Amboyna,  25i,  383. 

ameos,  142,  148.  II.  14. 

America,  ig8,  226,  840.  II. -44,  11 3, 
129,  288. 

amethista.  II.  221,  229. 


Ammiano    Marcellino,   historiador, 

53. 
amomo,  59-63,   177,   187-igo,   207, 

224. 
Amomum  Zingiber.  II.  g. 
Amoy,  167. 

Amr-ibn-el-Aci.  II.  326. 
Amu-Darya,  ou  Oxus,  88.  II.  g7. 
Amurat  II,  i33. 
Anacardium  occidentale,  67. 
anacardo,  65-68. 
ananaz.  II.  38o. 
Anchusa  ojfficinalis,  64. 
André  Milanez,  3ii,  323. 
Andropogon,  149;  A.  laniger.  II.  3 16, 

317;  A.  Schaenanthus,  3ij. 
anfião,  g5,  97,  100.  II.  171-175. 
Angélica  archangelica,  q3. 
Angelo  Palia  (Angelus  Palia  Juve- 

natiensis),  291,  293.  II.  66. 
An-hsi  (Parthia),  219,  23o. 
anil,  68,  75,  86,  87,  g3. 
anime,  87,  48,  44. 
anjuden  ou  angeidan,  75,  go. 
António  do  Porto  (Fr.),  franciscano. 

II.  346,  347. 
Antuérpia.  II.  258. 
Aplotaxis  Lappa,  267. 
Aquilaria  Agallocha.  II.  61,  62. 
árabes,  3i,  42,  187,  2og,  2g3. 
Arábia,  228,  326,  335. 
arábica  (gomma),  25. 
Aragão  (Rebello  de),  218. 
Arai,  gi. 
Aravalli.  II.  178. 
Arcádio  (imperador),  210. 
arcebispo  de  Goa  (D.  Gaspar),  i5. 
Archangelica  officinalis,  85,  g3. 
archipelago  Malayo,  114,  162,  i63, 
3oi.II.  86,  i32. 
areca,  96,  187,  282,  325-327,  334.  II 

69,  73,  78. 
arequeira,  334,  335. 
Aripo  (praia  de).  II.  128. 


índice  alphabetico 


423 


Aristolochia  indica.  II.  189. 
Aristóteles,  28,  Sy,  48,  191.  II.  36, 

io3,  ii3. 
armada  hespanhola,  373. 
armada  de  Rumes.  II.  89. 
armadas,  276. 
Arménia,  27,  178. 
Arriano,  220,  228,  3 18,  32 1. 
arroz.  II.  371,  372. 
arruda.  II.  7. 

arte  de  imprimir,  260,  270. 
Artocarpus  integrifolia.  II.  26. 
Arum  indiciim,  285. 
arvore  triste,  69-72.  II.  396. 
asa-fcEtida,  75-84,  88,  90-93,  io3- 

io5,  iio. 
Asdepias  pseudosarsa.  II.  192. 
Ásia,  173,  256,  267,  282.  II.  42,  112; 

—  central.  I.  219;  — menor,  32, 

41.  II.  178,  179. 
Ásia,  entrada  da  inquisição,  bulia, 

i5. 
Asparagus,  64. 

assa  dulcis,  104;  — odorata,  io3, 104. 
Assam,  284.  II.  61. 
assucar.  II.  3o8. 
Assyrios,  228. 
Astragalus.  II.  96. 
Astruc,  medico.  II.  1 16. 
Asuan.  II.  227. 
Athayde  (Tristão  de),  373. 
atropina,  3oo. 

Auctuario,  290,  346,  358.  II.  159, 335. 
Auklandia  Costus,  267. 
Austrália,  252. 
Ava  II.  42,  224. 
avacari.  II.  17,  20. 
avelã  da  índia,  325. 
Avenzoar  (Abd-el-Malek  ben  Zohr), 

48,  54,  58,  179. 
Averrhoa  Bilimbi,  170;  A.  Caram- 
bola, 170. 
Averròes  (Abu-1-Walid  Mohammed 

ben  Rosch),  48,  54,  58,  78,  104, 


157,  174,  290.  II.  53,  82,  84,  285, 
3o5,  324. 

Avicenna  (Abu  Ali  Huçein  ben  Ab- 
dallah  ben  Sina),  28,  36,  39,  42, 
55-57,  60-64,  75-78,  88,  149,  i53- 
i56,  i58,  160,  i63,  166,  179-181, 
187,  207,  278,  283,  33o,  343.  II.  3 1, 
32,  54,  86,  89,  91,  106,  143,  147, 
i5o,  363,  365,367,  394. 

awál,  55. 

Ayres  (Diogo),  268. 

Ajadirachta  indica.  II.  168. 

azar,  moeda.  II.  45,  178. 

azevre,  25-29,  37,  38. 

azougue,  159,  169.  II.  207,  36o. 


Babel.  II.  93,  98. 
Bab  el-Mandeb,  228. 
Báber,  i3o,  317.  II.  79,  80. 
Babylonia.  II.  93,  97,  3i3,  397. 
Baçaim,  38,  74,  246,  326.  II.  77,  328, 

33o,  340,  342,  348. 
Bacham  (Batchian),  369. 
Badajoz  II.  85,  89,  372,  373. 
Baghdad.  II.  93,  97,  397. 
Bahádur  Schah  (rei  de  Cambaya), 

29,  97,  loi,  120,  i28-i3o.  II.  140. 
bahar  (baar,  bar),  peso,  11 3,  159, 

i65,  214,  376,  377.  II.  282. 
Baillon.  II.  278. 
Balaam,  362. 
Balagaie,  121,  i32. 
Balassia  (Badakhshan).  II.  225. 
Balk,  89. 

Balsamodendron  Myrrha.  II.  356. 
Baltanas  (Fr.  Domingos  de).  II.  201. 
bambu.  II.  3o2,  309. 
Bambusa  arundinacea.  II.  307. 
bananas,  33o,  335-341. 
bananeira,  336-340.  II.  26. 
baneanes,  3o6.  II.  52,  104-106,  1 10, 


329,  342. 


424 


índice  alphabetico 


bangue,  gS-ioo. 

Barace.  II.  252. 

Barbaria.  II.  7,  83. 

Barbosa  (Duarte),  56,  73,  114,  128, 

189,  22  5,  3 16,  369,  II.  63,  77,  129, 

i58,  177. 
Baroche.  II.  178. 
Barreira  (Fr.  Isidoro  de),  338. 
Barreiros  (Gaspar).  II.  373. 
Barreto  (António  Moniz).  II.  148. 
Barreto  (Francisco).  II.  77,  340, 
Barros  (João  de),  53,  54,  56,  127- 

129,  i3i,  i32,  i37,  188,  218,  220- 

222,  245,  247,  248,  285,  286,  369, 

371.   II.   19,  87,   III,  211,  252,  253, 

255,  288. 
Fr.    Bartholomeo,    (Bartholomasus 

Urbevetanus),  291,  293. 
Barús  (Bairros,  Fansur),  porto  de 

Sumatra,  11 5,  i53,  164. 
Bassora  (Basra),  27,  39,  219,  283.  II. 

38,  92,  95-97,  397. 
bastão  (do  cravo),  363,  374,  375. 
Batecalá.  II.  9,  26,  154. 
bazarucos,  38 1. 

Beadala,  2o5,  223,  23 1.  II.  i25,  235. 
Beatriz  (Infanta  D.).  II.  229. 
Beduinos,  353,  356. 
Behar,  i3i,  3i5. 
beijoim,  84-86,  93,  io3-ii6;  — de 

boninas,  347.  II.  34,  37. 
Beja  (Diogo  Fernandes  de),  320. 
bela,  bel.  II.  375,  376,  387. 
Bellas.  II.  216,  226. 
Belleau  (Remy).  II.  207. 
Bellon  (Pedro).  II,  299. 
Bellunense  (André),  i58,  283. 
Beluchistan,  88.  II.  95. 
Bengala  (El-rei  de),  120.  II.  154. 
ber,  118,  126.  II.  3o,  40. 
Berar,  134.  II.  210. 
Berbera.  II.  356. 
Berbéria.  II.  7. 
Berberis.  II.  77,  79;  B.  aristata,  79. 


beribéri.  II.  i65. 

Berid   (Kasim),    (Verido,  Veriche), 

I2I-I23,  i35,  i38. 
Bernier.  II.  187. 

berylo.  II.  199,  209,  221,  222,  227. 
betle  (betele,  betei),  80,  iii,  184, 

265,  325,  327,  328,  343,  35i.  II. 

69,  78,  372,  389-396,  402-404. 
Beyrut,  39. 
Biblia.  II.'273,  354. 
Bider,  121,  i33. 
Bijapúra,  i33. 

Bijayanagar  (Bisnaguer),  73,  198. 
bilimbeiro,  170. 

Biophytum  sensitivum.  II.  21,  326. 
Birdword  (Dr.)  II.  109,  354. 
Birs-Nimrud.  II.  98. 
bispado  de  Nossa  Senhora  da  As- 
sumpção  da   cidade   de  Malaca, 

276;  — de  Santa  Cruz  de  Cochim, 

276;  — de  Goa,  276. 
Blandford.  II.  189. 
Blumea  balsamifera,  168. 
Bocchus.  II.  226. 
Boissier.  II.  175. 
Bokhára  (Bochorá,  Bocora),  77,  89. 

II.  91,  97. 
bola  (boi,  vola),  28.  II.  356. 
Bombaim,  268,  326,  335.  II.  28,  356, 

369. 
Boodt  (Boecio  de),  206-208. 
Borassus,  246;  B.Jlabellifonnis,  232. 
borato  de  soda,  281. 
bórax,  277,  281. 
Borba  (Diogo  de).  II.  i25. 
Bornéo,  164,  3 16.  II.  128,  211. 
bornéol  (agua  de  cânfora),  i63,  i65, 

166. 
Bontius  (Jacob  de  Bondt),  275.  II. 

159,  i65,  166,  387,  388. 
Bosque  (Dimas),  i5,  234.  II.  146, 164, 

186,  384-386. 
Boswellia   Bhau-Dajiana.   II.   354; 

B.  Carteri,  354;  ^-  thur i/era,  355. 


índice  alphabetico 


42b 


Botelho  (Francisco  Marques),  inqui- 
sidor, i5. 

Botelho  (Simão),  128,  246,  38 1.  II. 
128. 

Brahma.  II.  1 12. 

brahmanes,  36,  100,  233.  II.  104-106, 
no,  i3q. 

Brahmaputra.  II.  42. 

branca  ursina,  207,  3oo. 

Brava.  II.  353,  356. 

brazil  (páo).  II.  283,  288,  289. 

bredos,  79,  80,  92. 

Bretschneidei.  II.  177. 

Briggs  (coronel),  i38. 

brindão,  117,  118,  i25,  126. 

Brindisi,  285. 

Brindonia  indica,  i25. 

Brinjam.  II.  90. 

Brito  (António  de),  370. 

Brown  (Roberto),  336,  341. 

Bruce,  229,  233. 

Buddha,  269. 

buddhistas,  222,  233. 

Budeo  (Guilherme),  II.  291,  299. 

Buhrán  Nizam  Sháh,  126,  127,  817. 
II.  147,  309,  3io. 

bulia  do  Papa  Alexandre  VI,  371. 

burladora,  herva,  3oo. 

Burmá,  322,  324.  II,  40,  42,  76,  225. 

Burmanno,  248.  II.  190. 

Burnell  (A.  Coke),  129,  275.  II.  80. 

Butea  frondosa.  II.  41. 

búzios.  II.  123,  i3i. 

bybo,  65.  67. 


C 


cabo  de  Boa  Esperança,  2o3.  II.  75; 
—  de  Calimere  ou  Canhameira, 
182;  — Comorim.  I.  21 5.  II.  49-52, 
63,  127;  — das  Correntes,  75;  — 
de  Fartaque.  I.  335;  — Mesurado, 
188;  —das  Palmas,  188 ;  —Verde, 
332. 


Cabral  (Pedro  Alvares),  222.  II.  253. 

Cabul,  88.  II.  94. 

caceras,  147,  149. 

cachalote,  54-57. 

cacho.  II.  77. 

Cães  de  Santa  Catharina.  II.  21. 

Ccesalpinia  Sappan.  II.  288. 

Caiado  (Thomé),  16. 

Cairo,  258,  280,  285.  II.  173,  3i3, 
323,  326. 

cairo,  do  coco,  237,  245. 

caixa,  moeda,  38o. 

cajueiro,  67. 

Calabarga  (Kulbarga).  II.  3o7,  3 10. 

Calaiate  (Kalhat),  356.  II.  3 11,  3 17, 
392. 

calambac.  II.  55,  58,  61. 

calamo,  83,  141-149,  324,  355,  356. 
II.  3 1 5-3 17. 

calandares.  II.  363. 

calcedonia.  II.  23o. 

Calcuttá,  2Õ7.  II.  i32. 

Calicut,  2o5,  220,  222.  II.  88,  286, 
393 ;  Rajá  de  — .  I.  58.  II.  403. 

Camarão.  II.  119,  126,  127. 

Cambaya,  25-27,  ^^9'  ^^^1  '^^j  ^56, 
268,  3o5,  3 10,  3 16.  II.  77,  177-179, 
294;  El-rei  de  — ,  75,  342,  403. 

Cambayete,  256,  268,  277.  II.  io5, 
140,  174,  328. 

Cambodja.  II.  63,  64. 

camellos.  II.  74. 

caminhos  que  seguiam  as  merca- 
dorias, 39.  II.  396. 

Camões,  ode  ao  conde  de  Redondo, 
7;  razão  da  lição  adoptada,  16. 
Citado  a  pag.  18,  55,  i32, 163,220, 
23o,  233,  25o,  369,  370.  II.  63,  87, 
112,  126,  172,  254,  255,  258,  290, 
355,  4o3. 

Çamorim,  2o5. 
canafistola,  193,  197.  II.  373. 
canal  de  Paumben,  221. 
Cananor,  189.  II.  10,  254. 


426 


índice  alphabetico 


Canará,  244.  II.  76,  286,  288,  3og. 
Canarium  commune.  II.  87. 
cancamo.  II.  32-37,  43,  44. 
candil,  medida.  II.  igS. 
Candolle  (De),  334,  336,  341.  II.  177. 
canela,  201-217,  223-23 1,  265,  328, 

345,  352.  II.  396. 
cânfora,  97,  11 5,  iSi-iSg,  162-169, 

187,  212,  21 3,  328.  II.  390. 
cânhamo,  98-100. 
Cannabis,  98-101. 
Cantão  (Kuang-cheu),  i56,  219.  II. 

5o. 
caparosa.  II.  36o. 
capillus  veneris,  60. 
Capra  Aegagnis.  II.  236. 
carabe.  IJ.  3i,  32,  37,43. 
Caradiva.  II.  127. 
carambola    (kamaranga,    camariz), 

161.  170. 
Carapatão,  333. 
carbúnculos.  II.  217,  224. 
Carpophaga  concinna.  II.  87. 
cardamomo,  173-190,  206,  223,  327. 

II.  i38. 
Cardoso  (Jorge),  352. 
caril,  238,  270,  284,  285. 
Carissa  Carandas,  i85,  191. 
Caryophyllus  aromaticus,  3  59-36 1, 

368,  374,  375. 
Carlos  Magno,  319. 
Carlos  V,  371,  373'.  II.  238. 
Carlos  VIII,  de  França,  11 5,  116. 
Carneiro  (Padre  Belchior).  II.  149. 
carpata,  285. 
carpessio,  289-292. 
Carquizano  (Martin  Iniguez  de),  373. 
carta  de  Affonso  de  Albuquerque  a 

D.  Manuel.  II.  176;  —  de  Felipe  II, 

128;  —  geographica.  I.  228,  25i. 
Caryota,  232. 
casa  da  índia,  210,  320,  382.  II.  72, 

248,  258,  276,  279. 
Cássia  Fistula,  34,   179,  193-199; 


C.  lignea,  201-204,  207-210,  216, 

224,  226,  396. 
cassoneira.  II.  343. 
Castanheda,  56. 
castas.  II.  342,  348. 
Castella,  195,  362;  El-rei  de — ,  36i. 
Castello  Branco  (D.  Francisco  de), 

041. 
Castro  (Balthazar  de),  218. 
Castro  (D.  João  de),  154,  190.  II. 

114,  340. 
cate,  peso  da  China,  11 3,  159,  i65, 

327,  328.  II.  69-79. 
Catechu.  II.  76,  77. 
Calhar tocarpus  Fistula,  197. 
Cathayo,  271.  II.  5o,  64. 
Catifa  (El-Qatif).  II.  119,  126. 
Cáucaso,  88.  II.  246. 
causónes.  II.  134. 
Caxem.  II.  48. 
cebar.  Vide  aloés, 
celidonia,  279,  284. 
cerca  de  S.  Domingos,  em  Goa.  II. 

169. 
cetreiros  ou  falcoeiros,  29;  medica- 
mentos que  usavam,  40. 
Ceylão,   17,   5i,  52,  56,   181,   186- 

189,  206,  210-216,  221,  222,  224, 

230-233,  3o5,  309,  3i5,  324,  335. 

II.  5o-52,  63,  125,  127,  181,  184, 

199,  224-226,  385,  386,  388. 
Chagatay  (Khanato  de),  89.  II.  97. 
Chaggi  Memet  (Hadj  Moharamed), 

mercador.  II.  278. 
Chaldéa,  23o,  23 1.  II.  353,  356. 
Champá.  II.  62,  63. 
Champanel  (Champanír),  129. 
champe,  champa,  champaka,  71,  73. 
chanquo  ou  chank,  II.  i23,  i3i. 
Charaka,  375.  II.  149,  159. 
Chatigam  (Chittagong).  II.  297. 
Chaul,  100,  214,  326,  333.  II.  9,  26, 

28,  134. 
Chauveau,  vigário.  II.  278. 


índice  alphabetico 


427 


Chavica  officinantm.  II.  25 1 ;  C.  Rox- 

burghii,  25 1. 
chego,  peso,  i3o,  i3i. 
Chelidonium  majus,  283. 
Chengiz-Khan,  89.  II.  97. 
Chevers  (Dr.  Norman),  3oo. 
Chiammay.  II.  42.  80. 
Chilam  (baixos  de),  2o5,  21 5,  221. 

II.  232. 

China,   58,   i55-i58,  166-170,   204, 

214,  219,  222,  223,  226,  229-231, 
.    260,  268,  270-272,  288,  353,  357. 

II.  64,  161,  162,179,  259,315,367. 
Chinacota,  222. 

Chincheo  (Chang-chau),  167.  II.  5o. 
chins,  204,  206,  219,  221-223,  270, 

364.  II.  285. 
Chitor,  256,  267.  II.  374. 
cholera,  272-276.  II.  388. 
chrisobalanus.  II.  83. 
christandade.  II.  108,  120. 
christãos.  II.   108,   11 5,   i25;  — de 

Socotora.  I.  37,  38. 
chrysocolla,  281. 
chumbo.  II.  207. 
cinabrio,  169. 
Cinnamomum,    198,    202-211,   2i3, 

21 5,  216, 224-230,  348;  C.  Tamala, 
349, 35o;  C.  nitidinn,  349;  C.  Catii- 
phora,  166-168. 

Cirenia  (península  Cyrenaica),  104, 

1 10. 
cirifoles,  II.  375,  376,  387. 
Cissus  vitiginea,  62. 
Citrullus  vul garis.  II.  144-146. 
Clematis  indica.  II.  190. 
Clusius,  41,  55.,  62,  72,  88,  127,  140, 

198,  253,  294,  341.  II.  5o,  65,  184, 

191,  192. 
cobras.  II.  i8i-i83,  187-191. 
cobre,  129,  169,  206,  223. 
Cocais  lacca.  II.  40,41;  C.  mannipa- 

rus,  96;  C.  nucifera.  I.  232,  244, 

25o.  í 


Cochim,  159,  190,  2o5,  373.  II.  10, 55, 

127,  235,  254. 
Cochinchina,  162,  i65.  II.  61,  62,  64, 

129,   102. 

coco,  235-252,  279,  3 10.  II.  84. 
códices  arábicos,  40. 
Coge  Çofar,  280,  285. 
Coje  Perculim,  26,  38,  77. 
Celebrooke.  II.  149. 
colérica  passio,  261,  272,  280.  II.  i3. 
Colles  ou  Kolis,  119,  128,  129. 
Colocasia,  285;  C.  indica,  285;  C. 

antiquorum,  285. 
Colombo  (Christovam).  II.  10,  ii3, 

ii5. 
Colombo  (porto  de  Ceylão),  23 1. 
cominhan,  84,  104,  109,  11 5. 
Commiphora  Myrrha.  II.  356. 
Companhia  de  Jesus.  II.  120. 
Concam,  54,  121. 
conde  da  Castanheyra.  II.  258;  — 

de  Redondo  (D.  Francisco  Cou- 

'tinho).  I.   14,   i5.  II.  382;  — de 

Villa  Nova.  I.  341. 
Congo,  247,  336. 
Constantino  de  Bragança  (D.),  i5 

II.  376,  384,  386. 
Constantinopla,  39,  53. 
Conti  (Nicolo  di),  249.  II.  62,  209. 
convento  de  S.  Francisco,  199.  II.  20. 
Cooley  (Desborough),  224, 229,  23 1. 
copal  duro.  II.  44. 
copra,  238,  239,  243,  245. 
Coptis  Teeta,  284.  . 

coqueiro,  240,  244-249. 
Coraçone.  Vide  Khorásán. 
cordierite.  II.  225. 
Cordo  (Valério),  63,  176,  188,  191, 

209.  II.  56,  323. 
Córdova  (Gonçalo  de).  II.  11 5. 
cornalina  ou  cornelina.  II.  23o. 
Coromandel    (Choromandel),    170, 

221,   222,   244.   II.  41,  182,  235, 

282,  288. 


428 


índice  alphahetico 


corte  de  Scháh  Jehan.  II.  187;  — 

de  Aureng  Zeb,  187. 
córtex  cinnaviomi,  225;  — cassia- 

lignea,  226;  — margosce.  II.  168. 
cortimento  de  peUes.  II.  154,  iSg. 
coru.  II.  17. 
Coruna,  373. 
contidon.  II.  223. 
Cosmas  Indicopleustes,  248,  368.  II. 

227,  289. 
Costa   (Christovão  da),  67,  68,  72, 

3oo.  II.  298,  309. 
costa  do  Abexim,  33 1 ;  — da  Abys- 

sinia.  II.  127;  — da  Arábia,  127; 

— de  Arracán.  I.  273; — da  Mala- 
gueta, 188,  189;  — de  Malé,  53; 

—  da  Pescaria.  II.  i25,  127;  — de 

Zanzibar.  I.  57. 
costo,  177,  244,  255-260,  267-269, 

282.  II.  79. 
Cota,  23i, 232. 
Cotamaluco   (Qutb  el-Mulk),   121- 

123,  134,  i35,  137,  3o5,  3i5,  326. 

II.  3 10. 
Cotoneaster  mnmnularia.  II.  94. 
Cottonara.  II.  252. 
Coulão,  220,  222,  375.  II.  10,  253. 
Coutinho  (Vasco  Fernandes),  317. 
Couto  (Diogo  do),  40,  i3i,  222,  373. 
Covarrubias  (D.  Sebastian),  247.  II. 

25l. 

Cranganor  (El-rei  de).  II.  36o. 
Cratceva  Marmelos.  II.  386. 
cravo,  97,  187,  201,  206,  223,  325, 

347,  352,  361-384.  II.  10,  88. 
Crawfurd,  244,  335,  368.  II.  62,  86, 

129,  224. 
Cremonense  (Gerardo),  42,  76,  166, 

176,  193,  198.  II.  95,  3oi. 
Crindle  (Mac),  322. 
crisocolla,  277,  281. 
cristal  de  rocha.  II.  197,  199,  209. 
croco  indiaco,  282,  283. 
Cruz  (Fr.  Gaspar  da),  221,  271. 


crysoberyl  ou  cymophana.  II.  23o. 

crysolitha.  II.  221,  229;  — oriental. 
23o. 

Cubeba  officinalis,  187,  287-293. 

Cucumis  Melo.  II.  144. 

Cucurbita  Citrullus.  II.  144. 

Cueva  (Luiz  de).  II.  238. 

Cunha  (Gerson  da),  129.  II.  109. 

Cunha  (Nuno  da),  38,  286.  II.  18,89. 

Cunha  (Tristão  da),  319. 

curcas,  279,  280,  284,  285. 

Curcuma,  281-284;  C.angustifolia, 
284;  C.  longa,  282,  284;  C  aromá- 
tica. II.  368,  369;  C.  Zedoaria,  369. 

curumbins.  II.  342,  348. 


Dabul,  214.  II.  6,  7,  i34,  154. 

Daghestan,  87, 

Dahlac.  II.  127. 

Damão.  II.  69,  77. 

Damarkand,  89. 

Damasco,  39. 

Darien.  II.  1 13. 

Datura,  295;  D.  alba,  3oo;  D.  fas- 

tuosa,  3oo. 
daturina,  3oo. 
dauco  silvestre,  292. 
Daugim  (passo  de).  II.  169. 
Daulutábád.  II.  loi,  204. 
David,  106. 

Deckan  (Daquem),  98,  121,  i33. 
Dehli,  75,  87,  88,  119,  120,  127,  i3o, 

i3i,  140,  256,  267.  II.  294. 
Delia  Valle,  54. 
Derbend,  87. 
deres.  II.  342,  348. 
Dhibat-el-Mahal,  53. 
diamante.  II.  195,  198,  206,  207,  209- 

212. 
Dianthus  caryophyllus,  367. 
Diarbekr.  II.  96. 


índice  alphabetico 


429 


Dicíamus,  64. 

Didjelah.  11.  93,  97. 

Dimocarpiis  Lichi.  II.  162. 

dinheiros.  II.  291. 

Dioscorides,  27,  62,  191.  II.  44,  79. 

Diu   (Tiyu),    219,  286,  320.11.  89, 

339. 
Diul.  II.  107,  1 12. 
Djazirat  al-Yacut.  II.  224. 
Djebel  Zabbara.  II.  227. 
Djidda  (Judá),  27,  39. 
Djilolo,  364,  368,  369. 
Djolfar.  II.  126. 
Dofar,  326,  335.  II.  48,355. 
dorião,  297,  298,  3oi.  II.  109,  161, 

377,  378. 
dormideiras.  II.  174. 
Dourado  (Vaz),  25i. 
drago  (sangue  de),  40.  II.  32,  34,  35, 

39. 
Drake,  navegador,  63. 
Dryobalanops  aromática,  i63,  164, 

166,  168. 
dugong.  II.  385,  386. 
Du  Halde  (Padre),  270,  272. 
dulce  ligninn,  224. 
Dultabado.  II.  392. 
duque  de  Bragança,  372;  — de  Lo- 
rena. II.  66. 
Durio  ^ibethinus,  3o  i. 
Duzgun,  91. 
Dyaks  de  Bornéo,  164. 
Dymock  (W.)  63,  91,  199.  II.  20,  25i, 

325. 
dynastia  de  Bahmany,  133;^— Han, 

375;  -Ming,  112,  170;  —  Sung, 

167;  — Thang,  219. 


E 


Echites  antidysentericum.  II.  19. 
eclypses,  36 1,  372. 
Edrisi,  37,  SS,  219.  II.  227. 


egreja  de  Nossa  Senhora  da  Con- 
ceição. II.  347;  — de  Nossa  Se- 
nhora da  Misericórdia,  347 ;  — 
de  Nossa  Senhora  da  Piedade, 
347;  — de  S.  Miguel,  341,  347. 

Egypto,  286.  II.  178,  227,  326. 

ela^omel,  240. 

El-Beckri,  89. 

electarium  de  gemmis.  II  i3i,  223. 

Elephanta.  II.  347. 

elephantes,  217,  232,  3o3-3o4.  II.  80; 
—  branco.  I.  3o5,  3 16. 

elephantiasis,  60,  63. 

Elephas  indiciis,  3 16;  E.  sumatra- 
nus,  3 16. 

Elettaria   Cardamotnutn,    186-189. 

Eleusine  Coracana.  II.  78. 

Elichpúra  (Lispor),  134.  II.  198,210 

Elliot  (Walter).  II.  19. 

Elvas,  371. 

Empoli  (João  de),  272. 

Epiphanio  (Santo).  II.  208. 

ermida  da  Piedade,  na  Povoa,  341. 

ermida  de  S.  Braz,  em  Goa,  299. 

Erskine,  historiador.  II.  80. 

escamonea,  34,  196. 

Esclavonia,  293. 

esmeraldas,  241.  II.  196,  227-229. 

espadana,  355,  356. 

espinhela,  rubi.  II.  218. 

espique,  268. 

espiquenardo.  II.  291-298. 

espodio,  3o3.  II.  3oi-3o8,  36o,  36i. 

esquadra  portugueza,  de  André 
Furtado  de  Mendonça,  252. 

»       7 

esquinanto,  356.  II.  3ii-3i7. 

Estatutos  da  Universidade  de  Coim- 
bra de  iSgi.  II.  io3. 

estipendio  ao  governador  da  índia, 
127; — ao  physico  mor,  127. 

estoraque  liquido,  107,  112. 

Estrabão.  II.  75. 

estrada  de  Santa  Luzia,  em  Goa, 
299. 


43o 


índice  alphabetico 


estreito  de  Magalhães,   3  70;  — de 

Tanjampur.  II.  211. 
Ésula.  II.  337. 

Ethiopia,  3o5.  II.  106,  112,  ii3. 
Eugenia    caryophyllata,    368 ;    E. 

jambolana.  II.  27;  E.  inalaccen- 

sis,  27. 
Eupatorio,  64. 

Euphorbia.  II.  337;  E.  Tirucalli,  3^3. 
Euphrates,  219,  23o.  II.  93,  96,  97. 
Evangelho  de  S.  João,  41.  II.  60. 
Êxodo,  227. 
Ezequiel,  227-229. 


Falcão  (Aleixo  Dias),  i5. 
Falcão  (Figueiredo),  1 1 2,  276.  II.  257, 
Falcão  (Luiz).  II.  114. 
falcoeiros  ou  cetreiros,  29,  40. 
Falconer  (Dr.)  268. 
Faleiro  (Ruy),  362,  370. 
Fallopo  (Gabriel).  II.  116. 
fanão,  moeda,  93,  378. 
farazes.  II.  348. 
farazola,  peso,  93. 
Faria  (António  de).  II.  129. 
Faria  (Dr.  João  de),  319. 
Faria  (Nicolau  de),  319. 
Faria  e  Sousa  (Manuel  de),  16. 
Fars  ou  Farsistán,  89. 
faufel,  334. 
fava  de  Malaca,  65. 
feitoria  de  Flandres,  382.  II.  258. 
Felici  (Acácio).  II.  55. 
Félix jubata,  iSj. 
Ferishta,  historiador,  i35. 
Fernandes  (Álvaro).  II.  18. 
Fernando  II,  de  Nápoles.  II.  108, 1 15. 
Ferreira  (Fernandes),  40. 
Ferreira  (Miguel),  139. 
ferro,  232. 

Ferula  alliacea,  90-92;  F.  Asa-foe- 
tida,  90;  F.  Narthex,  90. 


feruzegi.  II.  223,  228. 

festucce  caryophylli,  374. 

Ficus  religiosa.  II.  40. 

figos  da  índia,  329-339. 

Firdusi,  1 14. 

Flacourtia  cataphracta.  II.  27 ;  F. 

Jan gomas,  27. 
Floyer  (E.  A.).  II.  227. 
Fliickiger,  162.  II.  168,  176. 
Fo-kien,  167. 

folio  indo,  343-352.  11.393. 
formigas  que  lavram  o  lacre.  II.  3o. 
Forstera  magellanica,  63. 
fortaleza  de  Calicut.  II.   187;  — de 

Cananor,   11;  — de   S.   João,   de 

Ternate.  I.  370. 
Frade  de  S.  Francisco,  337.  II.  341. 
frades,    dominicos    e   franciscanos, 

271- 
fragmenta  preciosa.  II.  223. 

Francisco  I,  32 1,  38i. 
S.  Francisco  Xavier  (Mestre  Fran- 
cisco). II.  120,  125,  346. 
francos.  II.  108. 
frangues,  40.  II.  107,  11 5,  273. 
Franguístan.  II.  107. 
Fraxinus  Ornus.  II.  96. 
Frederico  II  (Imperador),  68. 
Freitas  (Jordão  de),  374. 
fructus  carpesiorttm,  293. 
Fu-chau,  167. 

Fuchsio  (Leonardo).  II.  295,  379. 
fules,  71,  73,  236,  246. 
Fu-lin,  219. 
Fumaria,  64. 
fumus  terrce,  62. 


Galacia,  356. 

galanga,  144-146,  149,  353-358.  II. 

3 1 5-3 17. 
Galeno,  179,  227,  289-292,  359.  II. 

47»  144,  245. 


índice  alphabetico 


43 1 


Galilea.  II.  3i3. 

gallas,  229. 

Galles  (Ponta  de),  221. 

Gallus  Lafayetti,  232. 

Galvão  (António),  369.  II.  252. 

Gama  (D.  Estevão  da).  II.  124. 

Gama  (Vasco  da),  53,  57,  249,  377. 

II.  1 1 1,  253,  4o3. 
ganda,  rhinoceronte,  3io,  3 18.  II.  75, 

79- 
Ganges  (Guanga),  io5.  II.  292-297. 
ganta,  peso  ou  medida.  II.  261. 
Garcinia  indica,   1 25 ;  G.  mangos- 

tana.  II.  162. 
Gardénia  lúcida.  II.  355. 
Gaspar  Corrêa,  loi,  i3i,  225,  245, 

273-275,  2q9,  320.  II.  11,  19,  80, 

89,  187. 
Gaspar  de  S.  Bernardino  (Fr.),  3i5. 
Gaza  (Theodoro).  II.  327. 
Génesis,  338. 
gengibre.  II.  5-ii,  345. 
geruda,  25i,  253. 
Ghates  (Montes  dos),  121,  i32. 
ghí,  manteiga,  126,  148. 
Gil  Vicente.  II.  io3. 
Gill  (William).  II.  278. 
Giunti  (Thomazo).  II.  278. 
Glanvilla  (Fr.  Bartholomeu  de).  II. 

66. 
Glycyrrhi^a,  88. 
Goa,  i5,  100,  122,  i39,  276,  333.  II. 

235,  385. 
Gobi.  II.  279. 
Godavery.  II.  210,  293. 
Góes  (Damião  de),  3 14,  319. 
Gogá.  II.  294. 

Golconda,  i35,  3i5.  II.  210. 
golfo  de  Manaar.  II.  i25,  127,  i3i  ; 

—  de  Oman,  126;  — Pérsico.  I. 

39,  218,  375.  II.  126. 
Gomes  (Diogo),  188. 
Gomes  (Ruy),  139. 
gomma  da  herva-babosa,  3i. 


Gonçalves  (Jorge).  II.  93,  98. 

gongs,  de  Java,  379. 

grãa  ou  kermes.  II.  39,  45. 

granada.  II.  216,  226. 

granum  paradisi,  188. 

Grão  Cão  do  Cathay.  II.  224. 

Grão-Mogol,  i3o.  II.  129. 

Grão  Turco,  124,  i38.  II.  39. 

gravura  em  madeira,  270. 

gregos,  37,  40,  229. 

Guadalupe.  II.  85,  89. 

guaiacam,  179.  II.  259-261,  270. 

Guaiacum  officinale.  II.  270;  G.  san- 

ctum,  270. 
Guardafui,  228.  II.  356. 
gubera.  II.  33,  43. 
Guibourt,  55^1  91,  269.  II.  388. 
Guiné,  2o3,  249,  336. 
Guirmon.  II.  359. 
gundras,  245. 

Guzerate,  128,  256.  II.  140,  23o. 
gymnosophistas.  II.  iio,  112. 


Haçan  Gangú,  i33. 
Haiiramaut,  335.  II.  355. 
Hadrar.  II.  356. 
Hai-nan,  357. 
hakims,  39,  42.  II.  146. 
Halicore  indicus.  II.  385. 
Haly  Rodoam,  28,  43. 
ham  (khan),  120,  i23,  i36. 
Hamadan,  134. 
Hamza  de  Ispahan,  219. 
Hanbury  (Daniel),  112,  227,  357. 
Hariz,  i55. 

Harun  er-Raschid,  40,  55,  319. 
haschisch,  99-101. 
Haussknecht.  II.  94. 
Helleborus.  II.  238. 
Hemidesmus  indicus.  II.  192. 
Henrique  (Infante  D.),  217. 


432 


índice  alphabetico 


Henrique  III,  de  Inglaterra,  3 19. 
Henrique   (Padre),   da  Companhia 

de  Jesus.  II.  385. 
Herat,  91.  II.  95. 
herba  sentiens.  II.  21. 
herva  de  besteiros.  II.  238. 
Herbelot  íD'),  100,  23o. 
Hermano  iWolferio),  252. 
Hermanno.  II.  191. 
Hermolao  Bárbaro.  II.  295,  299. 
Heródoto,  100,  227. 
Herpestes  Mungo.  II.  188;  H.  gri- 

seiís,  1S8. 
Herrera  (António),  Syi. 
herva-babosa,   25;   — cidreira,   Ó2. 
Hespanha,  38,  90. 
Himalaya,  64,  268. 
hing  (ingu),  asa-foetida,  j5,  86,  90. 
Hippocrates,  42. 
hippopotamo.  II.  80. 
Hirah,  219. 
Hirth  (F.),  219. 
Hitaspis  (batalha  de),  317. 
Hola?-rJiena.  II.  89;  H.  antidysen- 

terica,  19. 
hollandezes,  383. 
Hooker.  II.  190. 
Hormuz,  09,  71,  88,  107,  m,  219, 

220,  228.  II.  38,  94,  114,  178. 
hospital  de  aves.  II.  io5,  1 12. 
Huçpin.  II.  141,  147. 
Huen  Thsang.  II.  224. 
Humboldt,  341. 
Hungria,  260,  271. 
Hutten  (Ulrich  von).  II.  271. 
Hyoscyaimts,  100. 


Ibn-al-Baitàr,  283.  II.  23o. 
Ibn  Batuta,  53,  164,  220.  II.  63,  225. 
Ibn  Khurdádbah,  i63,  358,  375. 
ichneumon.  II.  188. 


Iconium,  41. 

Idalcam  (Hidalcão),  121,  i33. 

ilha  do  Almirante,  25 1;  — Angediva, 
46,  53,  121,  249;  — Aynam  ou 
Hai-nan,  170.  II.  129  396;  — de 
Bahrein,  126, 129;  — de  Banda.  I. 
365,  370,  375.  II.  81,  82,  86-88; 

—  do  Cabo  Verde.  I.  372;  — das 
Cabras.  II.  236;  — Chandana,  289; 

—  de  Chypre.  I.  338;  — Cômoro, 
46,  52.  II.  6;  — do  Corpo  Santo. 

I.  25 1;  —  deDelft.  II.  236;— de 
Divar.  I.  100,  246;  — de  Engoxa, 
46;  — Espanola,  199.  II.  11 3,  ii5; 
— Formosa.  I.  166;  — de  Jeru  (Je- 
run  ou  Gerun),  220;  — Kamaran. 

II.  127;  — dos  Ladrones.  I.  248; 

—  de  Mahé,  25 1;  — Manaar,  221. 
II.  129,  i32,  376,  385;  — de  Mas- 
carenhas. I.  25 1;  — de  Mindanáo. 
11.  396;  — Polluoys.  I.  252;  — de 
Pori  ou  do  Elephante.  II.  341,  347; 

—  Praslin.  I.  25i  ;  — de  Ramese- 
ram,  221.  II.  i25;  — de  Repelim. 
I.  2o5,  223,  23 1;  — da  Reunião, 
383;  — do  Sal,  372;  — de  Santa 
Cruz.  II.  385;  — de  Santo  Antão. 
I.  372;  — de  S.  Domingos,  194;  — 
de  S.  Lourenço,  2o3,  218.  II.  6; 

—  de  S.  Thomé.  I.  217,  233,  337; 

—  Seychelles  ou  dos  Sete  Irmãos, 
25 1;  — Ternate,  362,  369,  870;  — 
Tidore,  369;  — Timor,  25 1.  II.  283, 
285,  289;  — dos  Três  Irmãos.  I. 
25i;  — das  Vaccas,  232.  II.  232, 
235,  236,  383. 

Imad  Scháh.  II.  210. 
Imam  de  Mascate.  II.  127. 
Imperatoria  Ostruthiwn,  93. 
império  do  Maharadja,  187. 
império  ottomano.  II.  98. 
impostos,  74,  128,  246,  247. 
incenso,  ii3,  269,  282,  335.  II.  48 
351-357. 


índice  alphabetico     ' 


433 


índia,  38,  53,  162,  170,  182, 194,  222, 
249,  269,  272.  II.  49,  5i,  106,  107, 
1 12,  259,  282. 

índias  (Companhia  das),  5j. 

Indo  (Rio).  II.  107,  112. 

Indo-China,  23o,  3 16,  323.  11.41,61. 

inhames,  280,  285. 

iolite.  II.  225. 

Ipojncea  Turpethum.  II.  344. 

Iravaddi  (Delta  do),  324.  II.  42,  225. 

Isaac  do  Cairo.  II.  85,  89,  204. 

Ismael  Adil  Scháh,  89, 124,  i34,  i38. 

Ispahan,  88. 

Itália,  321,  333.  II.  11 5. 

italianos,  3i. 

Izidoro  (Santo).  II.  206,  245. 


jaca.  II.  23-27,  397. 

jacinthos.  II.  208,  216,  226. 

Jacquemont  (Victor),  268. 

Jafnapattam,  i5.  II.  i85. 

jagra,  236,  238,  246. 

jalapa.  II.  345. 

jambolóes.  II.  24,  27. 

jambos.  II.  25,  27. 

jangomas.  II.  25-27. 

Japão,  166-169.  II.  77,  259. 

jaqueira,  340.  II.  26. 

jarras  martavans.  II.  270,  273. 

Jasminum  Sambac,  73. 

Java,  109,  114,  190,  288,  292,  356, 

375.  II.  283. 
Jeronymo  di  Santo  Stephano,  249. 
Jerusalém,  33 1.  II.  3i3. 
Joanes  Jacobi.  II.  67. 
João  II  (D.),  352. 
João  III  (D.),  217,  371-373.  II.  89, 

124,  235. 
jogues.  II.  112,  182,  186,400. 
Johannes  de  Monte  Régio,  372. 
Jones  (SirWilliam),  349.  II.  149,  189. 


Jordão  (Fr.),  245,  248.  II.  49. 

Jorge  de  Santa  Luzia  (D.  Fr.),  276. 

Jorge  Themudo  (Fr.),  276. 

Judéa,  41,  iio.  II.  3i3. 

jujubas,  118,  126. 

Julfar.  II.  119,  126. 

junca.  II.  7. 

juncos  da  China,  2o5,  218-223,  23o. 

junco  aromático.   II.   3i5;  — odo- 

rato,  3i3;  —  redondo,  3i3. 
Juner  (cidade  de).  II.  399. 


Kabul.  II.  i58. 

Kachmira,  268,  269. 

Kampfer,  91,  1 12.  II.  237,  388. 

Kandahar.  88,  91,  92.  II.  94,  95. 

Kándésh,  i35. 

Kashgaria.  II.  279. 

Kathiawar.  II.  18,  294. 

Kayal  (Çael),  i25.  II.  128. 

Kerman  (Guirmon),  36i. 

kermes.  II.  39,  40. 

Khán,  i36. 

Khorásán,  87.  II.  383. 

Kiachta.  II.  279. 

Kiang-mai  ou  Xiang-mai  ou  Jamay. 

II.  29,  42. 
Kiang-si,  167. 

Kipchak  (Khanato  de),  89.  II.  97. 
Kircher  (Padre).  II.  278. 
Kiruan,  75,  87. 
Kishna.  II.  210. 
Kordofan.  II.  325. 
Krishna,  73. 
Kurdistan.  II.  96. 
Kyat-piyu  (Capeiam).  II.  225. 


,,  244. 


Lacadivas, 

lacca.  II,  29,  33,  39-45. 

lacre.  II.  29-45. 


28 


434 


índice  alphabetico 


Lagondhnn  vulgare.  II.  i65;  L.  lit- 

torale,  i63. 
Laguna  (André),  38,  178,  237,  35 1. 

II.  248,  259,  379. 
Landino,  190. 
Laos.  II.  42. 
lápis  lazuli.  II.  2o3,  2i3. 
laqueca  ou  alaqueca.  II.  221,  23o. 
Lar  (Província  de).  II.  237. 
Laredo  (Fr.  Bernardino  de),  352.  II. 

66. 
Laristan,  91. 
laserpitiinn,  75-86,  92. 
Lassen,  340. 

Laurus,  349;  L.  Camphora,  i66. 
leis  chinas,  260,  271. 
Lemos  (Fernão  Gomes  de),  1 39, 3 1 7. 
Leoniceno   (Nicolau),   i5o,  293.  II. 

116. 
liamba  ou  riamba,  loi. 
Libéria,  188. 
lignum  aloés,  41,  162,  206,  328.  II. 

47-67;  — sanctum.  II.  271;  — vi- 

tce.  I.  339.  II.  271. 
Lima  (D.  Fernando  de).  II.  19. 
Lima  (D.  João  de),  317. 
Ligustrum.  II.  190. 
Limadura.  II.  23o. 
limonata  smaragdonim.  II.  228. 
linho  alcanave,  95-98. 
Linschoten,  67,  247,  3oo.  II.  79,  227, 

273,  309. 
Liqiiidcimbar   altingiana,    ii3;    L. 

orientalis,  1 12. 
Lisboa,  238,  253,  259.  II.  65,  238, 
Lisboa  (Dr.),  73,  149.  II.  387. 
Littré,  359.  II.  236. 
Loaysa  (Fr.  Garcia  de),  373. 
loc  ou  looch.  II.  45. 
Lodoicea  Seychellarimt,  25 1. 
Lopes  (Duarte),  247,  337. 
louça  da  índia,  170. 
Loureiro  (Padre).  284,  367.  II.  61. 
Luang-prabang.  II.  42. 


Luiz  (S.),  rei  de  França,  319. 
Lycia.  II.  71-79. 
lycio.  II.  71-79. 

M 

Macassar,  282.  II.  283. 

maça,  da  noz  muscada,  97,  206,  223, 

345,  352,  365.  II.  81-89. 
maçans  d'anafega,  117,  118,  126. 
maceira.  II.  3o. 
macer.  II.  88. 

Maçudi,  37,  55,  187,  337.  II.  114. 
Madagáscar,  218,  35 1. 
Madrasta.  II.  235. 
Madremaluco  (Imad  êl-Mulk),  121- 

123,  i34,  i38. 
madrepérola.  II.  i23,  i32,  229. 
Magadaxo.  II.  353,  356. 
Magalhães  (Fernando  de),  370. 
Magalhães  (Jorge  Vaz  de).  II.  385. 
Maghreb  ou  Maghrib,  89. 
Magno  (Alberto).  II.  206,  207. 
Mahmud  Scháh  II,  i33. 
Mahommed  Bahmany,  i33. 
Makh:^an-el-Adyviya,    livro    árabe, 

1 13.  II.  317. 
Malabar,  53,  169,  211,  219-221,  243, 

3i3,  332,  35o.  II.  99,  252,393. 
malabathruin,  347,  349,  35o. 
Malaca,  107,  iii,  169,  214,  220,  298, 

317,  377.  II.  178,  285,  382,  388. 
malagueta,  178-189. 
Maldivas,  46,  5i-53,  236-252,  326. 
Maljaz  (pagode  de).  II.  341. 
Malum  cydonium.  II.  387. 
Malupa.  II.  147. 
Mahvá,  268.  II.  178. 
Mambré  (Michele).  II.  278. 
Manapá  (Manahpaud).  II.  i25. 
Manardo  (João),  199. 
manatus,  peixe  mulher.  II.  386. 
manchuas.  II.  255. 
Mandalay.  II.  225. 


índice  alphabetico 


435 


Mandeslo  (João  Alberto  de),  i3o. 
Mandou,  256,  267,  268.  II.  178,  294, 

298. 
manga.    II.  99-104,   109;  — brava, 

337,  343. 
mangelim,  peso.  II.  196. 
Mangifera  indica.  II.  109. 
mangustão.  II.  161,  162,  377,  378. 
mangues,  228. 

manná,  77,  ii3,  179.  II.  40,  91-96. 
Manorá.  II.  69,  77,  340. 
Manuel  (El-rei  D.),  38,  268,  3 18-82 1. 

II.   10,  41,  79,  127,  176,  229,  233, 

256. 
mão,  peso,  169.  II.  178,  195,  33o. 
Maquien  (Makian),  369. 
Alaranta  Galanga,  3Sj. 
Marco  Polo,  55,  164,  167,  169,  271. 

II.  42,  277. 
marfim,  3o3,  3o6,  3 16.  II.  378-380. 
margarita.  Vide  pérolas, 
margosa.  II.  168. 
MarignoUi  (Fr.  João  de),  240,  338. 

II.  27. 
marmelos  de  Bengala.  II.  375-377, 

385-387. 
marquez  deVilla  Real,  i5. 
mar  Caspio,  87;  — Mediterrâneo,  39, 

23 1;  —  Roxo.  II.  173;  — Vermelho. 

I.  39,  23 1,  375.  II.  127. 
Martaban,  107,  ii5,  3i6.  II.  41. 
Martin  (Andrés  de  S.),  372. 
Mascarenhas  (D.  Francisco).  II.  18. 
Mascarenhas  (D.  João).  II.  340. 
Mascarenhas  (D.  Pedro  de),  190, 299. 
Mascate,  356.  II.  3ii,  3i5,  317. 
matical,  peso,  i65. 
Matthioli,  62,  188,  234,  294,  314.  II. 

234,  278. 
Maundeville  (Sir  John).  II.  224. 
Mauro  (Fra),  18. 
Mawarunnahar.  II.  95. 
Mecca,  169.  II.  10,  53,  3i5,  317,  SgS. 
Mecia  Dandrade  (D.).  II.  229. 


Megasthenes,  814,  32i,  322. 
Mekong.  II.  42. 
melancias.  II.  144-146,  38i. 
Meleagrina  margaritifera    II.  12 5. 
Melia  Ajadirachta.  II.  168;  M.  in- 
dica, 168. 
Melinde,  57,  3o5,  3i5.  II.  49,  52,  1 1 1. 
melique,  i23,  i36. 
Melissa  officinalis,  64. 
Mello  (Martim  Affonso  de),  i3i,  272. 
melões.  II.  144. 
memiran,  279,  281,  283. 
Memphis.  II.  323,  326. 
Menam.  II.  42. 
Mendonça  (André  Furtado  de),  25o, 

252. 

Menezes  (D.  Christovão  de).  II.  18. 
Menezes  (D.  Duarte  de),  139. 
Menezes  (D.  Manuel  Tello  de).  II. 

16,  18. 
Menezes  (D.  Tristão  de),  370,  379. 
Mesopotâmia,  219,  376.  II.  97. 
Mesué,  39,  240,  294,  367.  II.  333, 

345. 
Mewár,  268. 
mex.  II.  143,  i5o. 
Michele  (Michele  San).  II.  378. 
Michelia  Champaca,  73. 
Mindanáo.  II.  128. 
Minjak.  II.  278. 
Miranda  (Simão  de),  3 16. 
Mirkond.  II.  1 14. 
Mir  Mohammed.  II.  95. 
Mir  Mohammed  Hussein.  II.  64. 
missionários,  no  Thibet.  II.  278. 
mithridato,  60-64. 
moalis  (schiitas),  326,  355.  II.  392. 
Moçambique,  217,  249,  25 1. 
Mogok.  II.  225. 
mogores,  120,  i3o.  II.  92,  97. 
mogory,  69,  73. 
Mohammed  (Hadj),  89, 
Molucas  (Maluco),  36 1-3  70,373,383 
Mombaça.  II.  1 1 1 


436 


índice  alphabetico 


Mombaim  (Bombaim),  326,  335. 

Monardes  (Nicolau),  198.  II.  206, 
237,  271,  4o5. 

monções,  52.  II.  100. 

Monpacer  (pagode  de).  II.  347. 

Monte  Corvino  (Fr.  João  de),  23o, 
248. 

Moraes  (Gaspar  de).  II.  208, 

Moringa  aptera.  II.  157. 

Mormugão  (rio  de).  II.  385. 

morphina.  II.  179. 

morxi,  261,  264,  266,  275. 

Moscovia.  II.  259. 

Moutel  (Mortir),  369. 

Moysés,  227.  II.  273. 

múmia,  40,  41. 

mungo.  II.  139-143,  i5o. 

Munster  (Sebastião),  18. 

Musa  (António),  35i,  355.  II.  56^  1 16. 

Musa  sapientum,  335,  337;  ^- Pa- 
radisíaca, 336. 

muscadeiras.  II.  87. 

mussulmanos.  II.  11 5. 

Muzaffar  Scháh,  32o.  II.  79. 

Myrepso  (Nicolau),  358. 

Myristica  fragrans.  II.  86;  M.offi- 
cinalis,  SÇ) ;  M.  moschata,  86. 

myrobalanos.  II.  i5i-i6o. 

myrrha,  28,  3i,  41,  107.  II.  3i,  60, 
352,  356. 

Myrtus  silvestris,  289,  290,  293. 

Mysore,  189,  226.  II.  289. 

N 

nachani,  naxenim.  II.  71,  78. 
Nagapattanam  (Negapatam).  II.  182. 
naique,  capitão,  i35. 
naires,  326,  334. 
Naja  tripudians.  II.  187. 
Nápoles.  II.  1 15. 
nardo,  177,  345-347. 
Nardostachys  Jatatnansi.  11.  298. 
Narsinga,  i36.  II.  41,  210. 


Narthex  Asa-foetida,  90. 

nau  Algaravia,  276;  — Assumpção, 
276;  — Chagas.  II.  257;  — Trin- 
dade. I.  373;  — Victoria,  371. 

Nebrija  (António  de),  65,  68. 

Nebuchadnezzar.  II.  98. 

Nectandra  cinnamomoides,  226. 

Nees  von  Esenbeck,  224. 

negundo.  II.  i63. 

Nepaul,  349, 35o. 

Nephelium  Litchi.  II.  162. 

Nerium  antidysentericum.  II.  19. 

ngai,  espécie  de  cânfora,  168. 

Nicodemo.  II.  60. 

Nicolau  António,  352. 

Niebuhr,  39.  II.  96. 

Nieuhof,  72. 

Nigela  citrina,  178. 

Nikitin  (Athanasio),  148. 

Nilo,  229. 

nimbo.  II.  167. 

Nipa/ruticans.  II.  io5. 

Nirukta.  II.  289. 

Nischapur  (Nixábur).  II,  228. 

Nizamaluco  (Nizam  el-Mulk),  26, 
121-124,  i33,  i34, 137.  II.  75,  141, 
309  ;  filhos  de  — .  I.  3oo. 

Noronha  (D.  Aífonso  de).  II.  307, 
3io. 

Noronha  (D.  Garcia  de),  i34,  190. 

noz  muscada,  97,  187,  223,  359,365. 
II.  i5,  16,  81-89;  — da  índia, 
coco.  I.  235,  244-249;  — de  ben 
ou  glans  unguentaria.  II.  157. 

Nunes  (António),  379.  II.  160. 

Nunez  (Agostinho).  II.  376. 

Nunez  (Leonardo).  II.  376. 

Nyctanthes  Arbor  tristis,  72. 


Odorico   de  Pordenone  (Fr.),  190, 

220. 
óleo  de  linhaça,  98. 


índice  alphabetico 


437 


oleum  cinnamomi  radieis,  227. 

olho  de  gato.  II.  222,  23o,  SgS. 

olivastro  de  Rodas.  II.  56. 

OUver.  II.  354. 

Oman  (costa  de),  220,  228,  335. 

Ophiorrhit^a  Mungos.  II.  189. 

Ophioxylon  serpentinum.  II.  190. 

Ophir.  II.  289. 

ópio,  95,  100.  II.  14-16,  171, 175-179. 

opium  thebaicutn.  II.  178. 

opus  cyrenaicum,  85,  1 10. 

Orissa,  3i5. 

Orixá.  II.  293. 

Ormuz.  Vide  Hormuz. 

orraca,  236,  246. 

Orta  (Garcia  da),  38,  119,  127.  II. 
3 10,  348;  indicações  para  a  sua 
biographia,  28  ;  viagem  á  Ilha  das 
Vaccas,  235  ;  quando  saiu  de  Por- 
tugal, 342. 

Ortelius,  18, 

ostras.  II.  i32. 

Otranto,  285. 

ourivesaria,  281. 

ouro,  223,  232. 

Ouseley  (William),  23o. 

Ovidio,  71. 

Oviedo  (Gonçalo  de),  199,  247.  II. 

1 13,  116,  271. 
Oxalis  semitiva.  II.  21. 
Oxus,  88.  II.  225. 


Pacem,   i53,  164. 

Pacheco  (Duarte),  188. 

Pachyma  Cocos.  II.  272. 

Pacifico,  370. 

Padre   Ignacio   (Santo  Ignacio  de 

Loyola).  II.  120. 
pagodes.  II.  346-348. 
Paizes  Baixos,  140. 
Paleacate  (Pulicat).  II.  235. 


Palestina,  34.  II.  i5o. 

palha  da  Meca.  II.  3 11. 

Palk  (bahia  de),  232. 

palmeira,  232,  235-237,  241,  249. 

palmitos,  240,  245. 

Paludano  (Dr.),  68,  35i. 

Pam  (Pahang,  Páang).  II.  382. 

panditos.  II.  148. 

Pangim.  II.  389. 

Panipát  (batalha  de).  II.  80. 

Panjáb,  i3o. 

Pantaleáo  de  Aveiro  (Fr.),  338. 

Papa  Leão  X,  3 19,  32 1. 

Papa  Paulo  IV,  210,  276.  II.  299. 

Papaver  somniferum.  II.  175. 

Paranda,  122. 

parava.  II.  i25. 

pardáo,  moeda,  127, 195,  38o.  II.  45. 

parizataco,  70-72. 

paros  (paráo),  barcos,  2o5. 

parvu.  II.  342,  348. 

parteiras,  354. 

Parthia,  112. 

Partibus  (Jacob  de),  33. 

parsis.  II.  342,  348. 

pashtu,  i3i. 

Passo-Secco,  299. 

patane,  i3i. 

Patane.  II.  79. 

patecas  ou  melões  da  índia.  II.  i33- 
i36,  144-146,  38i. 

pau  de  aguila.  II.  60;  — de  cobra. 
I.  241.  II.  181, 185-188;  —de  con- 
tra herva.  I.  266. 

Paula  de  Andrade,  299. 

pavão.  II.  398. 

pecegos.  II.  249,  258. 

pedra  arménia.  II.  2o3,  212;  — be- 
zoar.  I.  241,  266,  276.  II.  23 1-238, 
382-384,  388,  397;  —de  cevar  ou 
iman,  195,  202-205,  21 3;  — do  fel 
de  porco,  382;  — hume.  I.  223; 

—  de  Malaca.  II.  239,  388,  398; 

—  sanguinha.  I.  40. 


438 


índice  alphabctico 


Pedro  Martyr.  II.  SSy. 

Pegolotti,  375.  II.  160,  256. 

Pegú,  3 12,  3 16,  324.  II.  41. 

Pe-king,  271. 

Penha  (Garcia  de  la).  II.  1 14. 

Pereira  (Diogo),  52,  57,  314. 

Pereira  (Jonatham),  187,  188. 

Periploca  indica.  II.  192. 

perdas,  170.  II.  1 19-132,  195. 

Persépolis.  II.  98. 

Pérsia,  77,  88,  229. 

Peru,  340.  II.  201. 

Peshawár,  i3i. 

Pessoa  (Balthazar),  iSg. 

Peucedanum,  ofi. 

Phaseolus  Mungo.  II.  1 5o ;  P.  Max, 

i5o. 
Phenicia,  229. 
phenicios.  II.  354. 
Philippinas,  370. 
Phillips,  167. 

Phwnix  dactylifera,  232.  II.  325. 
Phyllanthus  Emblica.  II.  i58. 
Physeier  macrocephahts,  54. 
Pie  de  la  Mirandole.  II.  353,  356. 
Pictet  (A.).  II.  176. 
Piddington,  72. 

Pigafetta  (António),  247,  337.  II.  273. 
pilulas  de  Rasis,  3i;  — de  Rufo,  3 1. 
pimenta,  206,  265, 268,  287-289,  365, 

379.  II.  241-258. 
Pina  (João  de),  32i. 
Pinto  (Fernão  Mendes),  170.  II.  42, 

80,  129. 
Pinzon  (Vicente  Yanes).  II.  357. 
Piper  Betle.  II.  402;  P.  Clusii,  253; 

P.  Cubeba.  I.  292 ;  P.  longum.  II. 

25 1;  P.  nigrum,   25o;  P.  offici- 

nalis,  25 1;  P.  trioicum,  252. 
Pires  (Sancho).  II.  3o6,  309. 
Pires  (Thomé),  38,  41.  II.  127-129, 

160, 177,  278,  326. 
pityusa.  II.  335,  345. 
Planchon.  II.  62. 


Platearius  (Mattheus),  3o. 

Platina,  32. 

Plinio,  38,  41,  190,  3 18,  340,  359.  II. 

188,  206,  244. 
Plutarcho.  II.  1 13. 
polipodio.  II.  18. 
Poli  (Nicoláo).  II.  271. 
Polónia,  271. 

Polycrates  de  Samos.  II.  226. 
Pomet,  35i.II.  62. 
pompholix.  II.  307,  36o. 
Pondichéry,  275. 
Ponto  Euxino.  II.  277. 
porcelana,  170,  223.  II.  221.  229. 
Poro,  317. 
prata,  169,  282. 
Prjevalsky.  II.  278. 
Prospero  Alpino,  285.  II.  178. 
Pterocarpus  santalinus.  II.  288. 
Pterygium  costatum,  i63. 
Ptolomeo,  228,  229. 
pucho,  267.  II.  70. 
Pulegiiim,  64. 
Pyrard  de  Lavai  (Francisco),  53, 252, 

3oo.  II.  273. 
Pythagoras,  79.  II.  1 10,  1 12. 

Q 

quartzo.  II.  209,  229. 

Queda.  II.  255. 

Quercus  Vallonea.  II.  95;  Q_.  Pérsica, 

95. 
Quevedo,  25o. 
Quindur.  II.  loi. 
quintaladas.  II.  257. 
Quito,  226. 


Rabello  (Diogo),  221. 
radix  mustelce.  II.  191. 
rainha  Candace,  233  ;  — de  Coulão, 
II.  255. 


índice  alphabetico 


439 


raiz  angélica,  267;  — da  China.  II. 

259-272,  38i ;  — de  mongo,  191. 
rájá,  )35;  — de  Bijayanagar,  i36. 
Rájputana,  128. 
Rama,  221. 

Ramusio,  89,  337,  35/.  II.  129,  278. 
Rasis,  Rhazes  (Abu  Bekr  ben  Zaka- 

ria  er-Rasi),  39,  276.  II.  43,  147, 
159. 
Ratnadvipa.  II.  224. 
ratti,  peso,  i3o,  175,  196. 
Rauwoljia  serpentina.  II.   189,   190. 
Ravensara  aromática,  218. 
Rawlinson  (Henry),  23o. 
Regimento  do  hospital  real  da  ci- 
dade de  Goa.  II.  18. 
rei  de  Cranganor.  II.  36 1;  — de  Hor- 

muz.  I.  319;  — de  Porca.  II.  254; 

—  de  Xael,  19. 
Reino  da  Pimenta.  II.  254. 
reisbutos  (Rajpúts),  119,  128. 
reis  christãos,   em  Goa  ( Tabarija, 

de  Tanor,  das  Maldivas,  de  Ter- 

nate),  374;  — de  Pegu,  324. 
renda  da  especiaria.  II.  160. 
rendas  do  estado,  74,  100,  246,  403. 
rendeiro  de  Bombaim.  II.  25. 
Rezende  (Garcia  de),  270.  II.  349, 

399. 
RJiamnus.  II.  78. 
Rhede  van  Drakenstein,  244.  II.  191, 

255. 
RJieum  officinale.  II.  277. 
rhinoceronte,  3 10,  3 18.  II.  75,  79. 
RJiinoceros  indicies.  II.  79;  R.  son- 

daicus,  79. 
rhuibarbo,   28,   34,  83,  157,  179.  II. 

275-279,  367. 
Ribeiro  (João),  323.  II.  127, 188, 23o, 

236. 
Ritter,  248,  340. 
roçamalha,  109,  1 12. 
Rodolpho  II  (imperador),  252. 
Rodrigues  (Balthazar).  II.  384. 


Rodrigues  (João),  233. 

Roma,  32,  3 18.  II.  388. 

romeos,  32. 

Rondot,  168. 

Rontecalli  (D.  Fr.  António  de).  II. 

299- 
Rosa  Damascena.  II.  405 ;  — de  Ge- 

ricó.  I.  59,  62  ;  — pérsica.  II.  401, 

405. 
rosalgar.  II.  76. 
Roumea  jangomas.  II.  27. 
Roxburgh,  72.  II.  i65. 
Royle  (Dr.),  62,  267.  II.  79. 
Ruano,  19,  21. 
rubi.  II.  195,  217-225  ;  — balax,  225  ; 

—  espinela,  225. 
Ruelio  (Jean  de  La  Ruelle),  63,  85, 

191. 
ruiva.  II.  45. 
Rumes,  32,  40. 
Rúm  ou  Rúmestan,  41. 
Rumphius,  166,  198,  25o-252,  339, 
'  374.  II.  191. 
Ruscits,  2g3. 
Rússia,  271.  II.  279, 


S 


Sabayo,  i33,  137. 

Sabéa,  23 1. 

Salerno  (Fabrício  Mordente  de),  72. 

II.  325. 
Salomão,  106.  II.  289. 
Salsette.  II.  340,  346. 
Saluen.  II.  42. 

Samarkanda,  89,  91.  II.  97,  279. 
sambucos  (sambacos),  365. 
sândalo,  70,  142,  187,  206,  223.  II. 

64,  281-290;  — vermelho.  I.  325. 

II.  73. 
sandias.  II.  38 1. 

Santa  Cruz  (Vera  Cruz).  II.  288. 
Santalum  álbum.  II.  64,  289. 


440 


índice  alphabetico 


Santo  Agostinho.  II.  399. 

Santos  íFr.  João  dos),  3 14,  3i5. 

sapphira.  II.  21 5,  223;  — de  agua, 
200,  202,  2 1 5, 225 ;  —  oriental,  225. 

Saragoça,  SyS. 

sardonix.  II.  216,  223,  226. 

sarsaparilhas.  II.  272. 

Saumaise.  II.  244. 

Saussurea  Lappa,  26-j^  268. 

Savonarola  (Miguel).  II.  66. 

Scaligero,  41,  87,  i65,  166,  224.  II. 
3i,  317. 

scammonea.  II.  345. 

scháh,  124,  137;  — da  Pérsia,  89.  II. 
127,  239;  — Rock.  I.  73. 

Schans  (Terra  dos).  II.  42. 

Schat  el-Arab.  II.  96. 

Scheik  el  Djibal,  Velho  da  Monta- 
nha, lOI. 

Scher  Khan  (Scher  Schah),  i3i. 

Schirwân,  87. 

Schmauss  (Leonardo).  II.  116,271. 

Schwanbeck  (Dr.),  322. 

Scirpus  Kysoor,  149. 

Scorodosma  foetida,  90. 

Scythas,  100,  260,  271. 

Scythia.  II.  208. 

Seda,  i5o,  170,  206,  223. 

Seldjukidas  (Turcos),  41. 

Semecarpus  Anacardium,  67. 

Séneca.  II.  ii3. 

Sepúlveda  (Fernando  de),  94,  196, 
199.  II.  286,  296. 

Sequeira  (Diogo  Lopes  de),  218,  II. 
41,  255. 

Serapio,  55,  149,  166.  II.  33. 

sereias,  II.  386. 

Serra  (Correia  da).  II.  387. 

Serra  da  Pimenta.  II.  254. 

Serrão  (Francisco),  370. 

Servius.  II.  112. 

Shan-si.  II.  278. 

Sheibáni  Khan.  II.  97. 

Shen-si.  II.  278. 


Shen-nung  Pen  Ts'ao  king,  Maté- 
ria medica  do  imperador  Shen- 
nung,  23  I. 

Sião,  114,  i65,  3i6.  II.  42,  63. 

Siculo  (Lúcio  Marineo).  II.  89. 

Sikait.  II.  227. 

Silhet,  349.  II.  61. 

Silveira  (Gonçalo  da),  218. 

Silvestre  (Vida  de  S.)  32. 

Sinai.  II.  96. 

Sinf.  II.  63,  64. 

Sinforiano  (Symphorien  Champier) 
II.  66. 

singhalezes,  232,  244. 

Siqueira  (Pêro  Vaz  de),  276. 

Siraf,  219. 

Sison,  148.  II.  14. 

Síva,  233.  II.  347,  387. 

Smilax  China.  II.  271,  38 1;  S.ferox, 
271. 

Soar  (Soer),  220,  335. 

Soares  (Fernão).  II.  256. 

Soares  (Lopo),  39. 

Sociedade  Linneana  de  Londres, 
357. 

Socotora,  37,  55. 

Sofala,  5i,  2o3,  3o5,  3i5.  II.  52. 

Solapor,  122. 

Soleyman,  escriptor  arábico,  221. 

Soliman  Pachá,  286. 

Soliman  II.  II.  98. 

Solino.  II.  1 13. 

somalis,  229.  II.  355. 

Sonnerat,  218,  275.  II.  148. 

Sophi,  124,  i38. 

Sorbus  domestica.  II.  43. 

Sousa.  II.  149. 

Sousa  (Francisco  de),  276. 

Sousa  (Fr.  João  de).  II.  89,  145. 

Sousa  (Fr.  Luiz  de),  25o.  II.  258. 

Sousa  (Manuel  de),  loi. 

Sousa  (Martim  Affonso  de),  i5,  32, 
97,  i3o,  2o5,  23i.  n.  18,  125,  140, 
235,  260,  33o,  348. 


índice  alphabetico 


441 


Sousa  (Ruy  de),  218. 

Sphagnum,  63. 

spinela.  11.  225. 

Spondias  mangifera,  94,  II.  343. 

Sprengel,  63,  223,  248,  294,  349.  II. 

36,  60,  79,  335. 
Stewart.  II.  95, 
Stigmarosa  jangomas.  II.  27. 
Streeter.  II.  210,  224,  23o. 
Strombus.  II.  i32. 
Strychnos  colubrina.  II.  191;  S.  mi- 

nor,  192. 
Styrax  Ben^oin,  1 15. 
succino,  âmbar  amarello.  II.  43. 
Succuir  (Suchau,  Sukchur).  II.  277. 
sudras.  II.  139,  147. 
Suez,  39. 

Suimo  (serra  do).  II.  226. 
sultão  de  Babylonia,  285;  —de  Cam- 

baya,  iii. 
Sulu  ou  Suluk  (Solor).  II.  128. 
Sumatra,  17, 114,  i56,  233,  25i,  3 16. 

II.  29,  52,  62. 
Sumba.  II.  289. 
Sunda,  i53,  289,  292. 
sura,  236,  246. 
Surate,  268.  II.  294. 
Susrúta,  272.  II.  149,  159. 
Sylvaticus  (Mattheus),  259.  II.  246, 

293,  396. 
syphilis.  II.  107,  ii5,  259,  272,  397. 
Syria,  293,  341,  376.  II.  294,  299,  325. 
systemaVaidak.  II.  146;  — Yunáni, 

146. 
Sz-chuen.  II.  278. 


Tabarija,  373,  374. 
tabaschir.  II.  38,  3o2-3o8. 
Tali-fu  (lago  de).  II.  42. 
Tâmara  (Francisco  de),  233.  II.  201. 
tâmaras.  II.  322,  325. 
tamargueira.  II.  96. 


tamarindo.  II.  319-326. 
Tamarindus  indica.  II.  325. 
Tamarix,  64 ;  T.  gallica.  II.  96. 
Tanjampur  (estreito  de).  II.  211. 
Taprobana,  17,  233. 
Tapti,  i35. 
taras,  peso.  II.  196. 
tarifas  de  Marselha,  375  ;  —  de  Bar- 
celona, 375. 
Tartaria,  77,  271.  II.  97. 
Tártaros,  120,  271;  — Uzbeks,  89. 
tartaruga.  II.  124. 
Tavernier  (João  Baptista),  3 16.  II. 

112, 127,  209,  236. 
Teixeira  (Pedro),  57,  89,  91,220.11. 

97,  i58,  2i3,  228,  236,  36i,  397. 
templo  de  Somnath.  II.  290. 
Tenasserim.  II.  61,  255,  285,  289. 
Tennent  (Emerson),  23o.  II.  236. 
Tenreyro  (António),  iii,  139.   II. 

114,  126. 
Terêncio,  191. 
Tenninalia  Chebula.  II.  1 57  ;  T'.  be- 

lerica,  1 58  ;  7".  citrina,  1 58. 
terra  arménia.  II.  212;  — japonica, 

77;  — de  Lemnos,  212; — merita. 

I.  282;  ^sigillata,  241.  II.  212. 
Thalictruyn  foliosum,  284. 
thalisafar  (talisfar),  352. 
Thamasp    Scháh    (Xatamaz),    124, 

i38.  II.  98. 
Thapsia  garganica,  92. 
Thebaida.  II.  178. 
TTiemistio,  191. 
Theobald  (W.).  II.  40,  42. 
Theophrasto,  191,  248,  293,  339.  II. 

1 10,  229,  252,  327. 
Thibet,  170,  282.  II.  42,  114. 
thugs,  3oo. 
Thumbadra.  II.  210. 
tigres,  1 16,  i56. 
Tigris  (rio).  II.  93,  96,  97. 
tincal,  tincar,  268,  277,  281. 
Tinnevelly.  II.  i25. 


442 


índice  alphabetico 


Tipura,  323. 

toUa,  peso.  II.  lyS. 

Tombo   do  Estado  da  índia,   128, 

i35,  38o. 
tones,  barcos.  II.  255. 
Tong-king.  II.  42. 
topázio.  II.  200,  202,  224. 
toques.  II.  218. 
Toro.  II.  48,  96. 
Toscano  (Simão),  II.  loi,  109. 
transmigração.  II.  io5,  iii. 
Transoxiana,  89.  II.  95. 
Tratado  deTordesillas,  371. 
Travancore,  189,  226.  II.  255,  289. 
Trebisonda,  39. 
Tremelle  (pagode  de).  II.  235. 
triaga,  61,  63,  241,  265,  276.  II.  404. 
trigo.  II.  139. 
trindade  hindu.  II.  387. 
Tripoli,  39,  375.  II.  140 
tripolio.  II.  345. 
Trogoldita.  II.  7. 
Tiirbinella  pyrum.  II.  1 3 1 ;  T.  rapa, 

i3i. 
turbit.  II.  327-339,  344-346. 
Turcomanos.  II.  272. 
turcos,  32,  40. 
Turkestan,  88.  II.  94,  279. 
turqueza.  II.  220,  228. 
tutia.  II.  3oi,  3o7,  3  59-361. 
Tutikorin.  II.  i25. 
Tyro,  229. 

U 

ud,  109,  II 5. 

Udipúra,  268.  II.  178. 

unicórnio,  265.  II.  75,  233. 

unio.  II.  125. 

uperção.  II.  193. 

uplot,  267,  268. 

Ur,  23o.  II.  297. 

Uruk  (rei),  23o. 

Uzbek  Khan.  II.  97. 

Uzbeque,  77,  88.  II.  92,  94,  97. 


Vaidak  Hindu.  II.  149. 
Valle  (Pietro  delia).  11.  98,  1 12. 
valores  monetários,  376-378. 
Varthema  (Luiz),  106,  iii.  II.   27, 

4o3. 
Valeria  indica.  II.  355. 
Vaz  (Miguel).  II.  124. 
Vedas.  II.  188,  289. 
Vega  (convento  de  S.  Francisco  da 

cidade  da),  195,  199. 
Vega  (Garcilaso  de  la),  226. 
Veiga  (Thomaz  Rodrigues  da)  i5. 

II.  234,  384. 
Veneza,  27,  178,  199,  271,  35i. 
Venezaras,  1 19,  129. 
Verbali.  II.  283. 
vermelhão,  169. 
versões  arábicas,  latinas  e  syriacas, 

40,  42. 
Vesalio  (André).  II.  272 
Vicente  de  Burgos  (Fr.).  II.  66. 
Vicente  Maria  (Padre),  338.  II.  iii. 
Vidara,  126. 

vidyas  ou  vityas.  II.  146-149. 
vihára.  II.  346. 
Vincent  (Dr.),  227,  35i. 
Vindhya,  268.  II.  178. 
violas,  62,  64. 
Visapor,  122. 
Vishnu,  54.  II.  i32. 
Vitex,  291-293 ;  V.  Negundo.  II.  i65; 

V.  trifolia,  i65. 
Viverra.  II.  188. 
Volga.  II.  277. 
Vulgata,  338. 

.       "W 

Wadding  (Fr.  Lucas),  352. 
Wallace,  3oi.  IL  87. 
Wallich  (Dr.),  126. 
Wan-ti  (imperador),  270. 


índice  alphabetico 


443 


Waring  (Dr.).  II.  i65. 
Wedel  de  lena.  II.  77. 
Wellstead,  38. 
Wight,  Soo. 
Wilson.  II.  149,  Sog. 
Wrightia   antidysenterica.    II.    19. 
W.  tinctoria,  20. 


xadrez,   i25,   iSg. 
■Xael  (Xaer),  335.  II.  16,48. 
xaráo  (xarave,  xarope),  246. 
Xarnauz     (Sornau,     Shahr-i 

114. 
Xeque,  124,  i36. 
xerafim.  II.  128. 


Yarkand,  99.  II.  279. 
Yemen.  II.  325. 


náo), 


yoga.  II.  186. 

Yule    (Henry),   iii,   129,   i65,   167, 

223,  275,  38o.  II.  26,  63,  78. 
Yun-nan.  II.  42. 
Yusuf  Adil  Khán,  i33,  137. 


Zaidam.  II.   278. 

Zanzibar,  5^^  383.  II.  49,  112. 

zargatoa.  II.  14. 

Zaytún,  166,  167. 

zedoaria.  II.  363-369. 

Zegir,  21 5. 

Zendj,  56,  336. 

Zerumbet.  II.  363-369. 

Zingiber  officinale.  II.  9. 

zingis,  5i,  56,  21 5. 

Zi^yphus  jujuba,  126.  II.  4o;Z.  vi//- 

garis.  I.  126. 
Zuarí  (rio).  II.  385. 
Zumaco,  21 3,  226. 


RS 

Orta,  Garcia  de 

178 

Colóquios  dos  simples 

07 

e  drogas  da  índia 

1891 

V.2 

Bblorcal 

&i  ^'lrJical 

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